tu sempre foi franca com aquela com teu é. tu sempre foi justa. eu gosto de ti porque a pessoa que estava comigo, que me mandava áudios, era tu. quando tu vestia roupas, máscaras; eu sabia que tinha tu e mais alguém. esse alguém eu estranhava. mas era tu. teu timbre de voz, o ritmo da tua fala: era tu, pelada. e eu brincando na água, meio pelado, meio envergonhado. eu sabia que era tu: te ouço em outros sotaques. mas é tu. a imagem que forma na minha cabeça é do teu rosto e das tuas mãos. está comigo desde muito. é de ti que recordo: tem um cheiro, que é da água sanitária, do cigarro. tu sempre esteve. se eu fui embora, o que há de repreensão? somente o fato de cada minuto ser individual. jogo a responsabilidade no tempo, no fato de sermos indivíduos. mas é mesmo nosso problema? e se tu voltar, o que eu faço? eu continuo sem trégua, e quero que tu cavalgue sobre o que eu digo.

  é só porque nos sentimos sem poder que desejamos brasília.

 eu vou começar a falar de algo do qual me arrependo. e é por isso que falo.

o vizinho sem camisa na janela. o colega balançando a pica no banheiro de um ministério. o jovem que diz ser mais velho do que é.

se a questão é poder, por que ninguém diz que existe um limite onde isso acaba?

se a questão é preço, por que ninguém reivindica aumento?

se a questão é valor, por que todo mundo se acha a última bolacha?

eu estava com o braço dentro de uma máquina que quebrava os ossos. me perguntavam onde ele estava. e meus ossos se quebravam. eu não respondi.

eu estava na casa de amigos. ninguém sabia que eu estava ali. eu me envergonhava de estar habitando um terreno privado que não é meu. esperava ser descoberto. eu não fui.

e se essa porra não termina nunca, haverá um concurso que integrará os desejos de toda essa gente de estabilidade? a vida que sonharam? as coisas mais difíceis? ou é só ganhar o dinheiro? na greve, na troca de governo?

não me quero do jeito como estou. talvez eu queira algo que escape à vida que sempre levei: ou seja a vida que sempre levei, deslocando de cidade em cidade. quero coisas que não são o bigode, nem o despacho. onde cabe a virilha depilada e o saco sem pelo na política? estamos precisando de você [dedo voltado pro presidente]. o que eu quero não cabe na esplanada. e pensar que 11 anos atrás eu queria brasília. me arrependi de ter saído de lá. e hoje a minha morada sou eu mesmo, o tempo é a minha casa. porque brasília é só pros fortes: quem se sabe sozinho, sem poder, sem estatuto, sem consultoria, sem organismo internacional. é só porque estamos sem poder que desejamos brasília.

nessas eu me curo. é curioso: são mulheres aquelas que me impulsionam. sempre achei que fossem homens. é que a diferença estava nas duas primeiras letras: mulheres me impulsionam; homens me pulsionam. é, por exemplo, a chuva. a cerveja. as roupas. por outro lado, temos: o álcool. o perfume. o frio.

neste novo patamar ou ciclo da espiral há panturrilhas. e há beiços. o desafio que me coloco, que se coloca para mim a partir do mundo, é circunscrever o quanto as calças poderão passar por essas panturrilhas, ou não passarão. o quanto os olhos poderão passar pelos óculos, ou não passarão. o quanto os beiços poderão me beijar, ou não servirão. eu retomo uma frase que escrevi muitos, muitos anos atrás: "o beijo que te dei também é meu". não arranque nada de mim (eu não vou buscar, mas de preferência não o faça. por razões éticas). o adjetivo que uso para te chamar: ele é parte meu. não o tome de mim acreditando que é somente teu. o cheiro que eu cafungo, da tua cueca usada ou do teu perfume importado: sou eu quem cheira, sou eu quem lembra. é o nosso cheiro, pois tu exala e eu sinto.

é uma delicadeza uma mão estendida, principalmente vinda daquela mulher tão forte. eu sei: ela vai me curar. pois eu fumo com ela; nós fumamos. e se o meu peito for o mesmo dela, quem vai morrer antes?

 não quero mais nunca.

eu quero tua, tua, tua voz. ela espiraliza.

eu quero uma voz em cima da ponte.

forte. naquilo que houve.

eu estaria sequer neste domingo. só eu querendo. mas algo quis. não é só sobre mim.

deslizante, tem uma voz que lambe minhas escápulas. nas costas. e diz que eu tenho o sol em raios.

quero a mim em primeiro momento. estranha conexão com quem não sabe sobre quem é mesmo.

tem uma língua, um beijo, um hálito que me faz estar contigo.

sempre contigo.

basta ver que é contigo para quem eu canto e danço. é o filme "aftersun".

sempre meu pai, minha coisa um pouco capenga, que eu amo. meu pai.

um pouco sem resistência. é o meu pai. desistindo: é o meu pai.

criando um rosto na tela: é o meu pai. quem, afinal, enxerga um rosto na tela? que grita pela sua vida e que reivindica seu corpo na terra?

eu sei que ele vai morrer. pois já o faz.

eu estou preparado para o que meu pai me coloca. eu serei mais forte que ele.

 [...]inha no meu rosto que separa os lábios das bochechas. ela cresce a cada dia. do meu nariz saem pelos grossos, os únicos no meu corpo que ainda não ficaram brancos. das orelhas, também. as calças compradas em janeiro não abotoam. os dentes se acavalam. as olheiras incham. o pau murcha - quando não deve, ou quando eu não quero, e quando eu quero ele não se move. os joelhos doem. os olhos, neles já não confio - me enganam no que veem. e os sonhos, os sonhos me mostram um filme em super-oito de uma queda do terraço das Torres Gêmeas, que já nem existem.

há dias em que eu acordo e não sei onde estou. como quando bebemos demais na noite anterior e acordamos em um quarto de hotel. mas já moro aqui há oito meses. e por um tempo eu tento lembrar, ou entender, o que eu estou fazendo naquela cama usada, de molas desgastadas. ah, sim. eu moro sozinho em uma das capitais do brasil. observo a luminosidade do quarto, que entra pela janela pobremente coberta por uma cortina de lascas de plástico: já é hora passada das cinco e meia da manhã. o sol surge nesse horizonte que cabe em poucos olhos, como o mar. o céu nem suporta tantas estrelas. é questão de segundos para ouvir o pio dos pássaros que cantam somente, tão somente quando o sol sobe no horizonte. é uma calmaria com som e luz próprios. eu sei: eis um dia. eu sei: eu tenho um trabalho. eu sei: eu tenho o que comer. eu sei, mas não sei o porquê.

ontem eu bebi vinho tinto malbec. quarenta e dois reais a garrafa, valor que achei adequado para duas de cada. o bom de beber vinho é que tomo água concomitantemente. a ressaca deveria ser mais leve. no último gole, um rapaz perguntou se eu não queria ir num estacionamento pelas redondezas para bater punheta. eu topei. o pau dele é maior que eu o meu, e ele gozou antes de mim. eu precisei de mais uns minutos de movimento manipulatório autoinduzido para gozar. ele não tinha uma toalha, um papel. gozei no volante do carro, e me senti um pouco homem. ele me trouxe de volta ao meu prédio e perguntou se nos veríamos novamente. eu disse que sim, que da próxima eu levaria um dispositivo de silicone com fins penetrativos. ele ficou de pau duro. eu o beijei e desejei "boa páscoa" - como bom ateu que sou.

eu suo demais, talvez porque eu beba muita água. me acostumei ao hábito de tomar cerca de setecentos ml de água em jejum quando acordo. ajuda a me localizar quando não sei em que parte do mundo eu desperto. sair para pegar o ônibus para o trabalho é passar uma fase de um videogame em que eu sempre perco. o ônibus demora e, quando não demora, vem lotado. o caminho não é lógico. não é o mais curto caminho; é o mais longo. parte de mim se incomoda com o tempo perdido. outra parte admira a cidade, o céu, e o horizonte. é essa última que tenta sentir tesão de acordar, de trabalhar, de comer, de bater punheta. parte me mim consegue, de fato. mas a outra insiste: por quê?

sem resposta. houve tempos em que eu não me colocava essa pergunta e saía vivendo as oportunidades que apareciam. mas sempre ouvi esse eco de voz rouca: por quê? eu ignorava. era gostoso quando era assim. pois a resposta à pergunta era quase como um post-scriptum do que eu já tinha vivido, sem sabê-lo. seu efeito era retroativo. o problema é que hoje, neste instante, ou quando eu acordo, nada retroage. eu perdi a localização da minha história e a razão pela qual ela existe. fios de papel me ligam à água que bebo, ao suor, à punheta, ao ônibus e ao céu da cidade onde moro. uma tarde de domingo, às quatorze e trinta, na qual um pássaro do amanhecer pia. a delicada sensação de viver sem porquê.

uma nuvem me convida a subir. eu respondo que prefiro cair. o sol pede para brilhar, e eu recuso. prefiro a chuva. um vizinho me convida para punhetar, e eu aceito. prefiro beber, e eu bebo muito, consecutivamente. não prefiro mais fumar. prefiro o silêncio à música; a escrita, à fala. uma aranha me visita. só a peço que não se deite comigo na cama. prefiro molas desgastadas a aranhas desconhecidas. prefiro punhetas com vizinhos. prefiro o chão ao céu ou à água. talvez haja a raiz de "ferir" no verbo preferir.

 [..]rro, seu pai dirigia e sua mãe no banco do passageiro. ele estava atrás. falavam sobre um ramo da família que era do interior de pernambuco. o nome de um tio distante foi citado. sua mãe diz "ele é um ________, como toda essa gente que ele é". ele ruboriza, sua frio; sente vergonha; chora em silêncio olhando pela janela do carro, a estrada que passa; pensa que deveria abrir a porta e se jogar pra fora do carro em movimento, deixar-se no asfalto pra ser atropelado por um caminhão. ele me diz que até hoje não consegue lembrar daquela palavra enunciada pela mãe. é essa palavra esquecida que nomeia o que ele vê no espelho. é essa palavra esquecida que adjetiva o amor que ele sente pelo namorado. um substantivo que é a sombra de todos os verbos que ele pronuncia, gaguejando, sobre si mesmo. é um substantivo itinerante.

nenhuma carta seria suficiente. não há cep no inferno. "_______" será o princípio organizador da carta de sua vida, carta pra sempre escrita e nunca enviada.

 [...]ija sentado. bem interessante. mas quando ele levanta do vaso sanitário, ainda há gotas que pingam na sua cueca. e eu quero essa cueca.

a cueca em si é tudo e é nada. ontem à noite sonhei que eu andava por um corredor e eu sabia que ao lado havia outro corredor onde uma ex-colega professora andava junto comigo. eu gritava "não adianta se esconder, eu vejo teus cabelos novos!" a cueca não é algo que me impede de ver, ou de fantasiar ver, os cabelos.

o nariz e o poder. o olhar que retém a explosão do ódio. eu estou de pé na minha sala, de onde eu posso ver, pela janela cujos vidros eu não limpo, um rapaz andando na calçada. e ele se torna tudo: meu amigo, meu namorado, o pai do meu filho adotivo que ele tem com uma mulher, o ex-namorado da minha atual namorada. ele é alto, muito corpulento, eu o apelido de "zelensky" em homenagem ao presidente da Ucrânia porque ele é uma versão do "zelensky" aumentada, mais robusta, é um homem vantajoso. ele treina na mesma academia que eu. ele levanta a camiseta para secar o suor da sua testa. e deixa ver a barriga flácida e gorda onde eu quero me deitar, que eu quero lamber; a panturrilha grossa a partir da qual eu imagino seu pinto; os olhos azuis; o nariz.

tudo se completa de uma forma que me assusta. não é só o "zelensky" que me excita. na academia onde eu treino há uma variedade de pessoas que eu noto, que eu reconheço. tem o "pimenta", que é garçon num boteco aqui perto de casa. tem a "mara", que trabalha uma empresa de telefonia celular. tem o "santista", que é um cara que eu vi duas vezes e que me faz ficar de pau duro imediatamente por causa da sua camiseta de time. tem a "manhosa", apelido que dei pela forma como ela fala ao celular, que é toda tatuada. diferentemente do que dizem de mim, eu desejo muitos e muitas.

não sou comum ao ponto de saber pouco. quisera eu ser o amante de Michael Corleone. mas só entrei nessa trama porque o pai me interessa mais que o filho. e o filho, na medida em que encarna o pai, se dilui. eu quero a casa, e o corpo, e o dinheiro. Michael Corleone nunca aparece sem camisa. só vemos alguns pelos de seu peito no final do segundo filme da trilogia. é isso que me interessa. nessa trama, eu acabaria assassinado - e não é essa a fantasia que os viados têm de si mesmos? que algo da realidade vai rasgar seu corpo e os matar? uma inesperada, ou incalculada, revolta do corpo contra eles próprios? nem que seja microscopicamente?

 [..]redo é não dar-se conta de que se está sonhando. nesse momento eu me dou conta de que tenho uma amiga muito querida e que ela está grávida. visito o lugar pra onde ela se mudou recentemente: uma pequeníssima vila de casas onde só há a dela e uma outra. observo bem as janelas da entrada, feitas de pequenos quadrados de vidro emoldurados por madeira marrom. uma casa estreita. pergunto a alguém, não sei quem, o porquê de ela ter se mudado pra essa casa. "ela vai morrer daqui a pouco, e o governo quis auxiliá-la. a criança vai continuar morando aqui." acho estranho a vila ser no campo, quase numa fazenda; penso que é muito longe de são paulo. saímos da vila e tentamos entrar em um bar, que parece fechado para quem o vê da calçada. eu chego mais perto, olho através do vidro da porta e vejo, na escuridão da parte de dentro, que há movimentações. penso que é possível tomarmos uma cerveja ali. me pergunto como vou conseguir financiamento pra um projeto cuja coordenadora, minha amiga, está morrendo.

volto pra cidade. encontro meu irmão, que é um personagem da série "Succession" - aquele que é o pai ausente de duas crianças, que está sempre se vingando do próprio pai, que é usuário de drogas, que tenta aliciar os irmãos. conversamos algo sobre permanecer na rua ou ir pra casa tomar um vinho. eu digo que vou pra casa e que o espero com o vinho. ele concorda. saio caminhando e, quando olho pra trás, ele está numa mesa de bar cheia de amigos meus. "ele estava mentindo, ele e todos os demais. não queriam minha companhia."

às vezes quero um cão, às vezes quero um gato. às vezes até penso em querer um namorado. não daria conta de nenhum dos três, mas gosto de pensar nessa santíssima trindade: eu, ele e um animal de estimação. gosto de pensar nesse triângulo porque um dos pontos vai falhar, vai faltar, e será substituído por outro ou por outros, formando imagens ou peças em terceira dimensão. relacionamentos produzidos por impressoras 3D. o gato pode fugir, o cão pode adoecer, meu namorado pode me deixar, e eu posso seguir buscando fazer linhas com outros pontos. às vezes eu quero um irmão que seja apaixonado por mim, mas que não seja meu namorado. (será que foi isso o que eu disse um dia e que provocou uma violenta reação em cadeia, em família?)

minha geladeira parece um robô do star wars.

e eu estou com dor na coluna. resultado de milênios. não quero.

eu quero morrer em paz. vocês não entendem? com minha cervejinha do lado, vcs entendem? zeca pagodinho. 

não tem mais nada pra mim aqui, alguém ouve?

obrigado meu orixá por me dizer que estou errado,

se essa palpitação de viver nunca for embora, haverá eu de explodir?

eu quero você, mas VOCÊ é bem diferente. saiba saber a diferença. há uma sutileza, além da diferença.

branco se retira do mundo. ainda bem.

ás vezes é simples assim: saia.


 [...]a rua. às vezes eu uso fones de ouvido. tenho muita coisa pra atualizar sobre política. às vezes eu ando sem fones pra saber da cidade. gosto de escutar o que está acontecendo, as pessoas, os carros, os ralos. hoje, pela primeira vez em 2 anos e meio de são paulo, passou por mim um caminhão dos bombeiros. vinha gritando há quadras antes de mim, me incomodou, foi muito estridente. mas entendo. é preciso avisar a cidade que pessoas estão morrendo queimadas pra todo mundo ter pesadelos.

eu saí do sacolão campos elíseos e tinha um homem tentando entrar ali. ele estava na porta e gritava que estava com fome, que precisava comer. nos meus próximos passos eu fantasiei duas cenas: a primeira, na qual eu era morto por uma bala perdida - que é a fantasia comum da classe média intelectualmente empobrecida, "as pessoas em situação de rua vão te matar" -, e a segunda, na qual eu dava minhas comprar pra'quele homem e saciava sua fome - que é a fantasia comum da classe média esquerda-cirandista, "eu posso fazer um gesto sincero de reparação". me envergonhei das duas. burguês safado, eu.

não há nada pior que ser um homem gay, cis, branco e solteiro, em são paulo no ano de 2023. é muita culpa.

minha geladeira tem que ficar na minha sala de estar porque não entra na minha cozinha. hoje eu virei esse eletrodoméstico fantástico levemente pra diagonal da parede. ficou perfeito. ah, hoje eu também higienizei a geladeira inteirinha. lembrei da minha mãe contando que, na sua infância, a comida era armazenada em baldes e potes com banha de porco. o avô da minha mãe, que era o prefeito da cidade, comprou a primeira geladeira da cidade, era pequena e precisava ser abastecida de gelo. e o avô da minha mãe também comprou o primeiro rádio da cidade e a primeira tevê. hoje minha mãe participa de grupos de whatsapp bolsonaristas no seu celular.

hoje eu lavei minha máquina de lavar roupas. é preciso lavar o que lava.

eu sinto cheiros. tenho vários perfumes. importados e nacionais. gosto de andar na rua e sentir os cheiros da cidade nas ondas do meu próprio perfume. tem um açougue aqui perto da estação marechal deodoro que me dá ânsia de vômito. é cheiro de carne perto de apodrecer. eu sinto náuseas em açougues. fui comprar uns quilos que carne pra minha dieta low carb no açougue Boi Legal e eu quase vomitei por causa do cheiro. a cidade tem cheiros que eu gosto de descobrir. tem um bueiro aqui perto de casa do qual sai cheiro de barata. barata tem cheiro, e eu sei reconhecer. os homens que amei têm cheiro, e eu sei reconhecer.

desodorante trés de marchand. frasco verde. no rótulo se veem duas adagas em x. é o símbolo para o gouinage, ou luta de espadas. prática sexual entre homens cis que não prevê penetração. era o desodorante que meu irmão usava. ele se matou no dia dos pais de 1988.

se eu fosse atingido por uma bala perdida, eu pediria para não chamar o SAMU.

 [...]aça como se não houve amanhã, mas o gosto me desce difícil. é só uma dose, digo eu pra mim mesmo. sabemos que não será, mas eu gosto de pensar que, sim, será. trata-se de uma bebida que marca um entroncamento, uma bifurcação interessante: no dia em que terminei com umdessesquaisquer a gente bebeu; no dia em que umdessesquaisquer levou as coisas da minha casa eu joguei uma garrafa inteira pelo ralo do tanque de lavar roupas. mas eu já bebia antes, quando eu descobri que a bebida tem 0% de carboidratos. substituí pela cerveja, que tem 100%. e emagreci. e fiquei com o abdome definido. e tive cirrose. mas depois que umdessesquaisquer saiu da minha vida, eu passei a beber vinho e cerveja, às vezes pendendo mais pro vinho, às vezes pendendo mais pra cerveja. sempre pendendo pra um ou pra outro. e foi um tempo ruim, superegoico, triste. vazio de pessoas, cheio de álcool, vazio de propósito, cheio de dívidas; vazio e cheio, ao mesmo tempo, numa desproporção. daí aprendi que, em geral, pessoas muito cheias - gritentas, efusivas, falantes, risonhas, falastronas - podem, talvez, ser bem desproporcionais. se a gente arranha o verniz, só encontra nelas salas onde não mora mais ninguém, e se um dia alguém morou ali dentro dessas pessoas já se foi embora sem deixar rastro. pessoas sem rastros de outras pessoas me assombram. umdessesquaisquer é pura superfície, nada afunda, ninguém mergulha; umdessesquaisquer só surfa. não sou surfista, sou mergulhador. prendo a respiração e exploro a parte do planeta Terra menos conhecida por seus próprios habitantes. a treva, a escuridão, a parte obscura que há na casa onde moramos: é ali que quero entrar e chafurdar as gavetas, a parte de trás dos armários, quero arredar móveis, tirar os quadros da parede. fiz uma promessa: fixar os quadros que comprei e emoldurei ao longo dos anos na parede do apartamento da cidade onde quero morrer. isso inclui quatro quadros pintados pelo meu pai. lá estarão, na casa onde hei de morrer. por causa dessa promessa, fiz uma aposta com meu pai - na verdade, não é uma aposta mas uma troca consensuada. eu disse "tu pinta um quadro pra mim, e eu escrevo um livro pra ti". eu não consigo desenhar, tampouco pintar. meu pai, artista que é, me inscreveu na aula de pintura muito cedo, eu tinha uns oito anos. de tão ruim que eu era, cheguei em casa com o primeiro quadro pintado; minha mãe gritou "que lindo esse palhaço!", ao que eu respondi "é o Cebolinha", da Turma da Mônica. eu desenho e pinto certas coisas com uma intenção, e essas imagens por mim produzidas sistematicamente falham em produzir o efeito que eu quero. mas o texto, as palavras que eu escrevo, dessas eu sei a ambiguidade e brinco com ela. escrevo por prazer. sei que o texto desliza. sei que há palhaços e Cebolinhas em cada frase. talvez eu retribua com beleza a arte que meu pai um dia me entregará. cada um experimentando a arte que lhe convém. meu pai, além do desenho e da pintura, sabe tocar instrumentos. teve uma banda quando era jovem. meu pai toca piano, violão e acordeón. eu só escrevo, mas escrevo pra academia e pra ficção. é, mais ou menos, como pintar e tocar - ou assim eu me apaziguo com os poucos dons que desenvolvi na vida. da destreza que meu pai tem em tocar instrumentos eu aprendi a escuta. pois pra tocar bem um instrumento eu sei que é necessário escutá-lo bem. minha escuta não se volta aos instrumentos, mas às pessoas. sou um jornalista que entrevista pessoas, sou um pesquisador que gosta de ouvir pessoas, faço perguntas às pessoas. peço que me relatem seu mundo - sua perspectiva a partir da qual veem e pintam, desenham seus próprios mundos. há, portanto, um entroncamento da pintura do meu pai (que só pinta o que consegue ver), a música do meu pai (que só toca o que consegue ouvir), com a minha escrita (que só escreve o que os outros relatam) e da minha escuta (que só ouve o que os outros querem dizer). não é à toa que estou estudando pra ser psicanalista. meu pai não bebe cachaça e nem é umdessesquaisquer. tampouco tem sido um super-herói. mas, à sua moda, driblou o seu próprio pai caminhoneiro, o irmão psicótico, a mãe superprotetora, um filho suicida, a esposa manipuladora, a filha rebelde e o outro filho. esse filho, o último, eu, que nasceu sem ser convidado a estar neste mundo. nasci com o DIU na mão. eu que bebo cachaça e sou viado. um filho umdessesquaisquer. mas que pelo menos lhe dará um livro.

 [...]ão me recordo de ter escrito algo nessa direção, com esse intuito, objetivando produzir esse ou aquele efeito. pois neste exato momento em que te escrevo eu lembro de um outro assíduo leitor que já morreu. nos seus últimos anos já não convivíamos; ele havia se mudado pra Garopaba ou Guarda do Embaú (foda-se qual das duas) pra envelhecer quieto. quando eu soube disso achei digníssimo. altíssima dignidade, elegantíssima. retirar-se pra envelhecer; envelhecer consigo e com o mar; envelhecer na quietude. Garopaba é quieta?, acho que não (foda-se). buenas, ele era um leitor assíduo. uma vez ele me perguntou sobre os colchetes com os quais eu começo a escrever: "tu quer nos enlouquecer?". quero. pelo menos, quero que as pessoas intuam palavras, preencham palavras com as quais se pode começar um diálogo - ou, na pior das hipóteses, um monólogo, como o que acontece aqui. é um convite a começar o texto com aquilo que, pra quem lê, faz sentido. e não é sempre assim? às vezes. minhas leitoras e meus leitores são menos obedientes. que sejam pouco obedientes com meu texto. porque assim eu peço, ou convido, que insiram vida aqui. acho que ele se mudou pra Guarda (foda-se mesmo) e morreu lá. um dia, sem saber da sua morte, pensei tê-lo visto no parque da redenção, em Porto Alegre. em seguida, minutos depois, encontrei dois amigos nossos, em comum. foram eles quem me deram a notícia da sua morte. eu arrepiei: "mas vindo pra cá eu ainda achei ter visto ele ali no gramado!", ao que um dos amigos em comum retrucou: "e por que não haverá de ter visto?". muitas das minhas leitoras e parte dos meus leitores já morreram. elas, porque acham coisa melhor que fazer; eles, porque a) morrem de aids b) morrem em acidentes de carro c) morrem de câncer d) morrem assassinados por dívidas com drogas e) morrem de overdose de drogas f) morrem em quedas de aviões g) matam-se. me acostumei a escrever endereçando o texto a pessoas mortas. não escrevo pras pessoas vivas. e quando acontece de eu escrever pras vivas é quase sempre como se eu estivesse no limiar da morte, eu mesmo morrendo: eu bêbado, eu sob efeito de remédios, eu detestando a vida. escrevo narrativas mortas ou sou um escritor nos estertores da vida. sempre num limiar, num véu, numa transparência que divide a morte da vida. e se enlouqueço, se eu quero enlouquecer alguém, é pra disfarçar que logo ali, neste próximo segundo ou nesta próxima palavra, podemos estar vivos ou [...]

duas cartas sem sangue

[não vou concluir este post, que era a ideia original, porque me descobri uma pessoa feliz.]

A CULPA É O QUE GARANTE A UNIDADE DOS EVENTOS

[carta 1]

oi, Pequena. me surpreendi com teu email. falei com a D., e ela me disse que tu tinha voltado do rio pra sampa, que tinha encontrado outro apê na zêéle. tomei a liberdade de pedir pra D. teu endereço e te escrever esta carta a mão, comprar envelope, ir aos correios, colocar selo, tchá-tchá-tchá. quis ser analógico, romântico. "conservador", tu diria. ainda diz?

hoje o dia foi lindo, e acordei feliz. e decidi te escrever, feliz.

também sinto saudades de ti e também sofro um pouco ao lembrar da nossa criança. e acho lindo tu te referir à criança como "nossa". obrigado por me contemplar nas tuas memórias como pai da tua criança.

e agradeço também por tu te referir a mim como "a mais profunda e leal das tuas paixões, por mais que passageira". incomoda um pouco, mas é lindo. me reconheço enquanto alguém profundo e leal. e acho que o fato de eu ter sido "passageiro" diz mais sobre ti do que sobre mim. e isso não é uma crítica, é um elogio. porque tu sabe que os encontros entre as pessoas são "passagens". passamos, pois. nossa criança, passarinho.

tu fala sobre nosso fim. eu penso - sinto - ainda sobre nosso começo. tu me perguntou "o que nós temos, afinal? o que estamos vivendo juntos?". e eu respondi. dei uma definição, uma palavra para nós. a letra mata; ali morremos. tu tentou me dar uma criança, e nós dois fomos incapazes de dar um nome a ela. incapazes não; a morte foi mais rápida. nossa criança nem tocou a linguagem.


[carta 2]

não entendi esta tua msg. depois de mais de um ano tu ainda tem meu whats?

depois de mais de um ano tu ainda pensa em mim? seria ridículo se não fosse patético, sofrível. revoltante.

arrastei meu cu no asfalto quente do minhocão, sabia? e tudo do que lembro de ti, das memórias e trechos de fala, tão numa zona de muito sofrimento pra mim. então, respondendo:

não te quero mais na minha vida. qual a parte sutil dessa frase tu não entendeu?

uma amiga morreu de câncer semana passada. sabe no que eu pensei? "poderia ter sido eu no lugar dela." sabe o que mais dói disso? não é pensar em morrer. todo mundo deveria pensar em morrer, eu perdi uma criança de quem eu era pai. a morte tá aqui do outro lado da pele.

o que mais dói é pensar no que eu penso de mim mesmo a ponto de achar que não tem mais lugar na vida pra mim.

e, sim, tua passagem pela minha história tornou meu cercadinho menor. porque acreditei nas tuas mentiras e porque achava correto tu me detonar, me espezinhar e me desprezar. achava que tu tinha razão. e não tinha, e não tem.

não adianta comprar um novo chip e mandar msg. sim, eu te bloqueei.

e vou seguir bloqueando, bem como eu faço com os números de telemarketing.

porque tu não passa disto: um desconhecido que vende algo mentiroso.

e algo chato.

quer saber se sinto saudade?

então acompanhe:

0:00 sou eu correndo na direção contrária de ti.

0:32 sou eu com coragem.

1:03 sou eu na solidão da direção de um carro, pra distrair.

1:10 sou eu na distração do artesanato, pra reconectar.

1:19 sou eu tentando me apaixonar.

1:24 sou eu tentando ser mais bonito, pra variar.

1:35 sou eu esperando, sem chegar.

1:43: sou eu trabalhando.

1:51 sou eu experimentando, apostando.

2:03 sou eu com frio na barriga.

2:11 sou eu como meu pai. e sem vergonha.

2:19 sou eu.

2:27 sou eu apostando, como apostei em ti.

2:35 sou eu viajando, pra esquecer.

2:43 sou eu viajando, pra conhecer.

2:51 sou eu ouvindo aquela nossa primeira música.

2:57 sou eu fazendo as pazes com aquela cidade.

3:03 sou eu na companhia de quem não sabe que eu existo.

3:07 sou eu quando tu te aproxima.

3:12 sou eu quando tu acha que é macho.

3:18 sou eu quando me acho feio.

e assim sou eu com saudade de tu.

hoje meu coração disparou PARTE FINAL

[a trilha sonora deste trecho é "menina, amanhã de manhã".] 

não me vinguei, em fim. não sou vingativo. não fui feliz, como eu havia previsto e desejado.

não houve velório. só houve a convalescença da Pequena. alguns amigos fizeram uma cerimônia ao pôr-de-sol de despedida pra a criança. nenhum dos parentes do Rio vieram prestar seus pêsames. eu tentava apoiá-la com minha companhia, mas ela rosnava cada vez mais alto. ouvi de um conhecido que toda a situação só poderia ter sido castigo das deusas gays. percebi que meu namoro com a Pequena sempre fora objeto de piada. inclusive pra ela própria. e agora a piada tinha ficado sem graça. eu ouvia até as paredes rirem de mim, como pai. o cheiro da marginal tietê era o aroma do deboche de mim, como namorado: podre, e a metade de são paulo ainda cagando ali. suportei dividir o apartamento na zêéle até o dia em que eu ouvi a Pequena levantar de manhã cedo e ligar a caixinha de som JBL no spotify. até então, eu dormi as noites em um amontoado de colchas e edredons arrumado onde antes eu havia montado o berço da nossa criança. a Pequena dormia na cama de casal, um casal que nunca existiu, no quarto ao lado. não nos falávamos no cotidiano. no dia em que ouvi a playlist de samba às seis e meia, pela primeira vez em meses, eu refiz minhas três malas. ela voltara a desejar. ela quis me dizer algo quando me encontrou na sala, mas eu a impedi. "estou indo embora. pode ficar com os meus móveis." ela arregalou os olhos, mais de raiva do que de surpresa. vi nas rugas dela a contrariedade de não ter podido me convidar a deixar o apartamento. diferentemente de quando eu cheguei, minhas três malas estavam mais leves.

chovia naquela manhã. um mês se passou desde que eu fui embora do apartamento da Pequena, só fez sol. quero interpretar essas condições climáticas como um sinal. foi necessário, tanto pra mim quanto pra Pequena, ser livramento um pro outro. o sol é livramento, é claridade que ilumina. havia morte no meu sêmen?, morte no útero dela?, morte nos nossos corpos que não poderiam ter se encontrado para desejar vida?, o sol está dizendo que sim. porque está tudo aí exposto: a morte de uma criança que não mereceu velório, nem luto. está tudo aí exposto e a claridade mostra: não seja pai; sua vida não fertiliza outra, não nutre outra. a última vida da linhagem carregando três malas leves do tatuapé até santa cecília, onde haverá de encontrar um lugar pro seu desespero, refazer um ninho onde nada vibra, nem o assombro de perder o que tinha de mais precioso. uma criança que nunca fora sua.

e Nestor... é uma borboleta escura que cruzou meu caminho, saindo da minha cabeça. nunca o esqueci, nem quando sentia pela Pequena tudo de mais grudendo que existiu, como a lealdade de um pastor alemão. eu fui um cão pra Pequena, acompanhando-a, às vezes defendendo seu corpo. mas não senti por ela o mesmo que senti por Nestor. não, isso não foi traição. nem mentira. não escondi o que tinha acontecido entre mim e ele. porque ainda quero poder me apaixonar por outro homem como eu me apaixonei por Nestor. pelas pequenininhas coisinhas da convivência: a cueca esgarçada; o sol poente brilhando entre os fios do cabelo dele; o cheiro de chuva quente no asfalto [o hálito da cidade que eu mais adoro] que entrava pela janela onde ele se escorava, seminu. até hoje encontro os pentelhos de Nestor na minha barba - ou assim fantasio com seu rastro em mim. até hoje rio das suas piadas sobre as senhorinhas quatrocentonas, bolsonaristas de higienópolis. algumas pessoas encontram a chave de quartos na nossa memória, se acomodam lá com poucos de seus pertences, e se domiciliam. às vezes abrimos as portas desses quartos e olhamos a míngua na qual se transformaram - mas elas estão lá e ainda falam, ainda gritam. Nestor me habita nessa condição minguante, com uma ou duas malas pequenas onde cabem sua cueca esgarçada, seus cabelos desalinhados, sua barba e seu humor. e eu talvez habite um quarto, uma varanda ou uma gaveta da memória da Pequena. ela nunca foi o tipo de pessoa que revira gavetas. sempre que o fazia encontrava algo que julgava perdido, já absolutamente esquecido, e se dava conta de que ela própria tinha criado uma narrativa pra a perda daquele objeto qualquer, que era uma mentira. ou melhor, uma fantasia - a Pequena fantasiava muito. fantasiou a nossa criança. e eu acreditei na sua fantasia, naquilo que ela dizia que sentia por mim e na relação que ela queria ter comigo. não foi traição, nem se trata de mentira. eu estava em surto, atravessado por uma psicose de paternidade. um pai psicótico é risco de morte-e-vida pra uma criança. ainda bem que a nossa criança morreu antes de vir à luz. porque a luz expõe tudo. e a luz a qual a criança seria dada exporia o pai psicótico que a fertilizara. a colher de sopa de loucura que há no meu sêmen iria reluzir, como o sol por entre os cabelos de Nestor.

[a trilha sonora deste microtrecho é "adoração"]

e Nestor na Pequena... ou sobre quem eu quis que ela fosse, esse homem que eu procurei nela, eu me desculpo. eu peço desculpas por gritar truco a cada vez que ela dizia apenas "sim". fiz tudo por ti, porra, e tu me esquece, me substitui nessa criança nascida morta, o que mais tu quer de mim?, cara rasgada ou dente caído, eu te amo, ou lábio destroçado?, eu todo pra ti, teu corpo todo me serpenteando, e a flecha do ciúme sempre me acompanhando porque pra ti sou nu, sou translúcido, me pega e me atravessa, me toca, o elevador tá gritando que alguém vai descer no meu andar, eu lembro de não pegar elevador e seguir num corredor longo, amarelo, e eu dei de cara com um rapaz por quem eu poderia ter vivido a vida inteira em sorrisos e pouco dinheiro, às custas de qualquer auxílio estatal, bolsa-meu-cu-que-seja-eu-te-amo, era diego o nome dele, eu jamais quis ter outra filha, nenhuma filha, já tive um no Chile e chama-se Estebán, e minha dor mais imensa é ser sozinho, sem nenhum toque grosso, nada na pele branca, nem um arranhão teu, essa pele branquela e ridícula que não tem história pra contar que não seja de escravidão, eu te grito pra tu voltar e sei que tu não volta nem que eu pague nem que eu lamba a linha vermelha inteira, eu te lambo, eu te grito, e não tem nada na vida que faça teu samba descompassar, eu prometo que cuido da tua buceta linda, e te como, eu te como, viado que sou, tua buceta linda eu como porque eu sou tu aqui atrás, no mais lindo do teu bacanal, seu viado filho da puta, não enxergas que sou eu sustentando toda tua malemolência e acidez, porque não acho que tua putaria te garanta um lugar muito - como gato, como leão, ou como uma coisa felina que pousa as patas arredondadas na terra e marca -, tu é rio, eu sou margem, não vês?, eu sou tu ao contrário, e quando eu perco tudo [eu perdi tudo por ele, meu dinheiro e meu respeito, e é aí que ele me acha comum] tu escolhe viver a vida com outro, O OUTRO, por quem nada haverá de surgir, nada de belo haverá de iluminar a linha da tua pele quando tu não quiser acordar às seis da manhã pra trabalhar, e eu estava lá pra te fazer café, mas vejo e sinto que não é isso, "não é sobre isso" como dizem teus amigos hipsters, é sobre o quê?, seu filho da puta previsível, eu sei de todo teu desejo como quem assiste a um filme VHS, rebobino teu gozo, e vejo que tudo o que experimentei é só e tão somente essa farsa, fascinante, que é tu, e venha deitar na nossa cama, que falta faz cada pentelho teu na nossa cama, cada suspiro e ronco; volta; não posso lidar com o mínimo que tu me dá; mas que mínimo, a final, que não seja aquilo que pensamos de nós próprios; minha voz e minha pele, e meu sorriso, são todos teus pra tu trocar pelo sorriso desse OUTRO que tu pensa ser melhor que eu, e eu que não penso ser melhor que numa vez que usamos emedê, eu era todo, tu nem tanto, havia uma parte de ti que achava outras saídas de mim, e eu te seguia, te perseguia, e lá ia tu saindo de toda intimidade que eu havia criado, não era cafona nem mofada, tinha cheiro de benjoim, e tu disse que eu "procurava macho" quando era tu, apenas, que fazia todo o sentido naquelas paredes que hoje eu preciso pintar, seu filho da puta, eu tenho que pintar as paredes onde eu fermentei teu corpo e tua voz, tá tudo ali, seu filho da puta, não tem demão de tinta que dê conta do que eu senti por ti, seu filho da puta, meu cu era todo teu e minha pele rasgada, velha, caída, minhas olheiras, eu tentei te acompanhar nas drogas mas [como cão] eu uivei, e acabei num cubículo em perdizes, cep zero um dois três três, e o caralho, era tu, seu puto, que viveria comigo pra todo sempre, mentiroso, desonesto, era sobre você estar naquela casa da qual não consigo mais desapegar, e pago rios de dinheiro pra tentar desfazer, e se agora estou desempregado é por tua culpa, inteiríssima culpa, mas como sei que tu não sente culpa eu só te desejo solidão. estar consigo. porque deve ser como um dildo pequeno no seu cu quando tu pede pra ser humilhado. uma camada de nada. o pior dos fracassos. 

[a trilha sonora deste microtrecho é "fina estampa".]

eu sempre me imaginei nesta situação exercendo alguma dignidade. agora, pelo retrovisor dos dias, sinto que tive pouco - e o pouco de dignidade que eu tive serviu para que todos em minha volta me achassem i) grosseiro ii) insensível iii) doente. disseram que eu "esqueci da Pequena muito rápido"; que eu "excluí Nestor da minha vida abruptamente"; que eu "mudei e des-mudei como um homem cis branco católico pequeno burguês safado e arrogante, que monta e desmonta casas como se de cartas fossem". não gostaria que pensassem isso, pois é menos de um quinto do que se passou em mim. mais que trepar [também trepar!], eu gosto de contar segredos sobre mim. mais que andar na rua de mãos dadas [e andar na rua de mãos de dadas é pra mim obrigatório!], eu gosto de compartilhar uma noite de sono. eu preparo refeições e as ofereço. eu planejo e executo viagens. se necessário for, eu até canto, até declamo versos da Florbela Espanca. eu monto berços. conduzi com dignidade meus sentimentos por Nestor e por Pequena. aquele escolheu outro; aquela não quis minha criança. isso não é pouco. repito: atravessei meus sentimentos por Nestor e por Pequena com dignidade, o que não significa que eu habitei uma casca, nem que dissociei. tenho cá minhas doenças; nenhuma delas me impede de me apaixonar. e o fiz, duas vezes, na sequência. tive essa habilidade. e fui engenhoso a ponto de me acreditar pai. não segurei minha criança no colo, mas fui seu pai; pai de uma criança que cuidei e nutri. tenho cá minhas misérias neuróticas; nenhuma delas me impediu de me conduzir com dignidade pelos labirintos de Nestor e pelos dreads da Pequena. houve felicidades banais. se me calei, se sumi, se arrumei três malas leves e saí com muita rapidez, foi porque estava a ponto de perder a dignidade. o que vocês veem é uma fina estampa. mesmo quando eu choro, e há algumas noites eu agachei no piso do box chorando no banho, de soluçar, até nesses momentos eu o faço com sobriedade, com motivo. eu perdi minha criança, uma criança cujo sorriso eu desejei. e mesmo tendo enterrado uma criança natimorta, eu ainda me sinto capaz de me apaixonar, de desejar vida pra outra criança, de montar berços, e de arrumar malas leves pra ir embora se for preciso. se amar não for encontrar a morte no corpo do outro, doer com isso e continuar apostando na vida encontrada no outro [apesar da sua porção de morte], nenhuma forma de amor vale o canto. se amar não for isso, nenhuma forma de amor vale a viagem da barra funda à itaquera. se amar não for isso, nenhuma forma de amor sobrevive a são paulo.

[a trilha sonora deste microtrecho é "noite de são joão"]

nas primeiras noites depois do último minuto que passei com Nestor, depois do último minuto que passei com a Pequena, eu só conseguia dormir com remédios. desses fortes, tarja preta, que consegui porque desagreguei das duas vezes e fui atendido em clínicas por médicos que não pouparam receitas controladas. não conseguia ficar em casa sozinho. não conseguia lidar com o escuro, nem com o silêncio. das duas vezes. por isso, eu quase não dormia. e fui criando bolsas de retenção de líquido embaixo dos olhos. e não conseguia comer, o que me fez emagrecer. das duas vezes. meu rosto desmanchou: bochechas caídas num andar abaixo das olheiras inchadas. eu parecia um bulldog em luto. das duas vezes. bebia demais, muita cerveja, porque já que não conseguia ficar em casa [quando eu desesperava era durante os pores-de-sol, quando o lusco-fusco entre dia e noite sinalizava "fim" em toda a cidade], eu apelava pela companhia de amigos em botecos, quaisquer botecos, desses com mesas e cadeiras de praia na calçada. bebi demais das duas vezes. e, com isso, gastava meu salário todo antes do dia 20 de cada mês. quando acordava, tomava café passado no coador e fumava um cigarro bolado [essa prática foi mais intensa nas centenas de milhares de minutos depois do último que passei com a Pequena, porque me lembrava dela]. isso me deu azia. das duas vezes. virei um monstro bêbado. todos esses sintomas de conversão, em verdade punições, passaram depois de meses. quando eu entendi que Nestor e Pequena eram, assim como eu pra eles, substituíveis. sem rancor, sem ressentimento. das duas vezes. passei duas oitavas acima nas minhas canções de amor. e meu corpo também se regenerou. não sinto raiva nem de um, nem de outra. senti pena de mim, às vezes, porque eu era atravessado, no meu próprio corpo, pelo metal da decepção. nem um, nem outra foram decepcionantes. mas eu tinha lá minhas expectativas em relação a ele e à ela, que vinham em tsunamis de frias lâminas. era meu corpo soterrado. não foi só tempo que exerceu cura. foi, também, a humildade de suportar a contradição da decisão, a escolha pelo erro. das duas vezes. me reconhecer humano no erro e na contradição foi o que me curou. pra essa cura não há tempo; há postura. aguentar calado a rocha da imperfeição sobre os ombros. ouvir o grito de quem existe, mas que por sua vez não sabe que existimos, e não tentar se fazer conhecido. conviver com a ignorância do outro sobre nós, e tomar chá com nossos demônios [chá de picão].

hoje meu coração disparou PARTE VI

[a trilha sonora deste trecho é "não é céu".]

chorei por horas e dormi ao lado do berço. acordei de madrugada. a porta do quarto permanecia fechada, e eu não ouvia nenhum som vindo de lá. talvez a Pequena tivesse pegado no sono. peguei a caixa de ferramentas que tinha comprado pra a montagem do móvel-ninho. heranças materiais pra nossa criança - as ferramentas, o ninho. compreendi que era necessária a desmontagem naquele instante, e nos próximos, até que a porta do quarto se abrisse e voltássemos pra o hospital. um parto induzido; um aborto espontâneo. dar à luz uma criança morta. um viado gaúcho pai da criança de uma sambista carioca. estava tudo ao contrário, tudo contradizendo o que a vida poderia ser, deveria ser. um quase-pai de uma quase-criança que indesejou vir ao mundo.

tirei os parafusos e desencaixei as peças de mdf. empilhei uma a uma, da maior pra menor. a cabeceira do berço deixei de pé, encostada na parede. facilitaria sua remoção. eu não suportaria fazer isso. chamaria amigos pra me ajudar. ou contrataria o mesmo carreto que levou minhas poucas coisas pra zêéle, quando fui morar com a Pequena. ou jogaria pela janela ainda à noite. ou poria fogo em tudo assim que a Pequena fosse pro hospital. ou serraria tudo em pedaços, em retângulos, pra fazer um dominó ou um quebra-cabeças, um xadrez que comporia o rosto imaginado da nossa criança. ou construiria um caixãozinho onde nossa criança seria velada. aquele já estava sendo parte do meu velório enquanto pai indesejado.

abri as portas do armário e as gavetas da cômoda. uma a uma, tirei de lá as roupas pensadas para vestirem a criança. eu as desdobrava, abria os panos com as mãos e sentia o tecido, roçando minha pele em cada peça que jamais cobririam o corpo da nossa criança, já morta dentro da mãe. voltava a dobrá-las para colocá-las dentro de uma mala. a Pequena quereria doar tudo para uma nova mãe, para uma criança viva. eu rasgaria tudo, cortaria partes como mangas e punhos, costuraria as peças desmontadas formando um grande tecido bricolado, revestido com as fraldas RN, preenchido com os montes de algodão, e jogaria nele todo o shampoo e essência "com cheiro de bebê" que eu havia comprado pra nossa criança. e enrolaria o corpo da nossa criança nesse grande patchwork sombrio e perfumado. e poria fogo em tudo. um ritual definitivo de cremação para uma criança quase-viva, realizado por um pai indesejado.

hoje meu coração disparou PARTE V

[a trilha sonora deste trecho é "i get a kick out of you".]

cheguei na casa da Pequena com três malas, quase não conseguia carregá-las. contratei um carretinho pra levar até o apartamento na zona leste, zêéle, meus móveis. fui morar na zêéle, onde o berço da nossa criança estava montado. eu quis tanto um berço, um lugar de conforto e acolhimento; uma manjedoura onde nutrir nossa criança (a criança dela, em verdade); um ninho. a Pequena desprezava ninhos, assim como raízes. ela estava mais pra cardume do que pra matilha. navegava em águas tristes por aqueles dias, eu não entendia o porquê. houve uma manifestação feminista no vão do MASP na tarde mais fria do ano. ela tremia, e eu a abracei. e perguntei a razão pela qual ela não sorria. ela disse que estava cansada, talvez por causa da gravidez. a vida que ela carregava na barriga estava pesada demais pra um corpinho que mal sustentava os dreads do cabelo. mas a Pequena seguia sambando, como numa apresentação de teatro em que o show não poderia parar. o cansaço da Pequena era de outra ordem já ali, e eu não percebi. como sempre, a Pequena me escapava, de mim desviava, onde eu estava quase entendendo o que nela se passava. voltávamos pra zêéle de metrô, a Pequena calada desde a estação Marechal Deodoro. quando paramos na estação Anhangabaú, ela disse: "posso te pedir uma coisa? não precisa lavar a louça todos os dias. nem dobrar a roupa pra guardar no armário. não quero que a minha criança seja toda certinha e sem graça". do Anhangabaú até o Tatuapé quem permaneceu calado fui eu.

esse foi o primeiro momento em que um par de pensamentos me ocorreram. um: a Pequena estava cansada de mim. dois: teria sido melhor permanecer viado.

passei a desconectar da Pequena a partir da estação Anhangabaú. e segui desconectando, a cada dez minutos mais, até nos separarmos. se fosse uma imagem no espaço, isso daria pra muito além de Itaquera. mas a nossa criança estava dentro do seu corpo, e eu continuei orbitando, perto. o movimento de desconectar da mãe e ainda estar com a criança criou uma bifurcação que me rasgou ao meio. a Pequena desejava a criança, a sua criança, e não a mim. tudo bem. era uma forma de reparação histórica, pois meus antepassados usaram o corpo de mulheres pretas por séculos, indesejando as crianças que vinham desse encontro. eu sofria, mas entendia que era melhor assim do que ao contrário: que a Pequena desejasse a mim, e não a criança. pois uma mãe que não deseja sua criança confisca a possibilidade da criança se inserir no mundo, na vida. então aceitei a triangulação. a mãe e o pai desejavam a criança; a mãe não desejava o pai. o pai estava sozinho e sustentaria essa solidão em nome da vida da criança.

a quem eu e Nestor desejaríamos em uma triangulação? passei a pensar em formas de relação aberta, não monogâmica, entre homens. fantasiava com surubas gays enquanto escolhia fraldas RN e pomadas pra assaduras. não ficava de pau duro. porque não se tratava de gozar com e pelos outros. eu queria ter gozado pelo Nestor.

a Pequena já não queria trepar fazia semanas, e estava cada dia mais cansada e triste, calada. eu sustentava cada segundo do seu cansaço, em nome da criança que eu e ela desejávamos. porque a criança nunca teve nada a ver com gozo, com buceta molhada ou com pau duro. a criança tinha a ver com um projeto de vida em parceria, que eu sabia estar em demolição. mas quando uma parede parecia desabar, um teto parecia rachar ou uma viga parecia trincar, eu corria para segurar tudo. porque a criança precisava de uma casa onde ter seu berço. e teve uma manhã de segunda, quando chovia, em que a Pequena desmaiou em casa. disse que sentia náuseas. eu a levei ao pronto-socorro e chamei a médica que a acompanhava no pré-natal. a Pequena foi atendida, levou soro na veia, e uns outros medicamentos coloridos porque, ao que parecia, ela estava anêmica. samba demais, ferro de menos. quando a médica chegou, questionou a Pequena sobre o porquê de ter interrompido as consultas periódicas. a médica estava soturna. foi quando eu soube que havia mais de seis semanas que a Pequena não fazia o acompanhamento. na maca de um quarto coletivo da enfermaria, ela virou o olhar para a janela e chorou. a Pequena estava indesejante. temi pela nossa criança.

algumas horas depois vieram os resultados dos inúmeros exames. a criança estava morta dentro da Pequena. má formação fetal, ou algo assim, que misturava a maldade com a gestação e com um feto espremido dentro de uma barriga, que já não era mais ninho. não seria possível fazer o procedimento de retirada naquele momento, mas dias depois por meio de um parto induzido. nossa criança estava grande demais, ocupando espaço demais, abrindo o buraco da morte fundo demais. para tirar um corpo morto de dentro de um corpo vivo seria preciso todo o cuidado, pois a morte se alastra. e se alastrou. a Pequena e eu tivemos que aguentar conviver com o cadáver da nossa criança por algumas horas, as piores das nossas vidas, até que o parto da nossa criança natimorta fosse realizado. quando chegamos no nosso apartamento na zêéle, a Pequena se trancou no quarto. eu não ouvia sequer seus soluços quando bati na porta e pedi pra chorarmos juntos. ela não respondeu. eu sentei no chão, ao lado do berço que eu tinha montado. e, de novo, senti saudade de Nestor.

hoje meu coração disparou PARTE IV

por coincidência, reparei naquele homem barbudo na praia. eu já tinha tomado algumas caipiroskas; a Pequena já dançava funk. conhecia aquele jeito de parar de pé em uma perna só. as mãos entrelaçadas sob a bunda. mas eu poderia estar bêbado. ou os óculos escuros poderiam estar embaçados pela maresia. ou poderia ser uma miragem, uma fantasia. ou seria a Pequena que chamava muito a atenção do entorno. mas o perfil daquele homem, o nariz de bolota, os cabelos em desalinho, o sol queimando aquela pele: eu já havia estado ali.

Nestor e Pequena estavam na mesma areia, no mesmo mar, sob o mesmo sol. haviam estado com o mesmo homem, eu, que se interpunha aos dois. uma ignorava a presença do outro.

neste dia eu poderia ter tomado rumos mais interessantes pra a vida que seguiria. nem com uma, nem com outro, eu poderia ter escolhido outro alguém. eu poderia ter escolhido ir embora. eu poderia ter escolhido devolver ao mar o que do mar é. poderia, em paz, ter escolhido morrer. de certa forma eu escolhi morrer. prolonguei, entretanto, minha morte. a minha, a do Nestor, a da Pequena. acho que nós três morremos. no dia em que coabitávamos a praia foi quando, talvez, estávamos mais felizes. a Pequena já estava grávida e Nestor estava com seu namorado. e eu, sozinho. não chamei por Nestor, não nos cumprimentamos, acho que sequer ele me viu. eu não informei sua presença à Pequena. ela estava tão feliz, enfim. feliz em fim: no estertor de dia de sol que seria seguido de uma míngua até o golpe mais baixo, até a manhã de maior desespero. até o canto entre paredes onde o escuro desfaz a pele do peito, e os órgãos se dissipam, se estilhaçam, porque o escuro tem boca de piranha e arranca partes de nós em silêncio, em sofrimento. e em primeiro lugar o escuro-piranha morde nossa garganta para não gritarmos. e em segundo lugar o escuro-piranha morde a boca de nosso estômago, por onde vomitamos um sentimento que nem supúnhamos ali. deslizamos a parede do canto onde estamos encurralados sem garganta e sem estômago, sendo atacados pelo escuro-piranha, desejando que no próximo golpe a morte já venha, mas aí ele se retira e nos deixa sob o ar da solitude, do esquecimento, tentando costurar os pedaços das cordas vocais pra gritar, chamar mãe ou pai, ou pra tapar a boca do estômago pra parar de vomitar a lava. e em terceiro lugar ele volta, o escuro-piranha, pra arrancar nossos olhos, pra entrar na nossa boca e morder nossos dentes, alimentar-se da nossa língua, arrombar nosso cu e rasgar nosso reto, nós comidos por dentro pelos dentes de serra de um escuro que não para, e não para, e não para. é aí onde estou hoje, sem Nestor e sem Pequena. cada um de nós com nossos escuros-piranha, sendo devorados por dentro.

hoje talvez tenha sido o pior dia desde esse, no qual Nestor e Pequena, sem saber, estavam lado a lado. se eu soubesse o que viria, teria fugido. teria morrido. teria matado. mas eu não sabia. por isso, morreram no meu lugar.

hoje meu coração disparou PARTE III - alínea b

 [a trilha sonora deste trecho é "grávida"]

"não vai ter chá de fralda merda nenhuma, mermão", gritou a Pequena. ela falava ao telefone com a família, do RJ, e negociava a vinda deles para conhecer o rebento. com os meses passando, ela me dava notícias a conta-gotas das opiniões e expectativas sobre a criança - e sobre nós, os pais. perguntavam pra ela como era possível um viado engravidar uma mulher. ela respondia: "é possível porque sou muito fértil". uns queriam uma guria; outros, um guri. os motivos para desejarem um ou outro eram invariavelmente machistas: gurias sofrem mais, é mais fácil de criar guris. as razões de ser mais sofrido ou mais fácil permaneciam inquestionadas. eu dizia que a gente criaria nossa criança tendo como critérios a honestidade e a responsabilidade - eu tinha excluído o amor e a humildade porque não combinavam em nada com a própria Pequena. eu nem tocava no tema da liberdade, pois nela eu não acredito mesmo. a Pequena ouvia eu falar isso e me olhava com desdém. ela nunca dizia como queria criar sua criança - sua criança, ela afirmava, nunca a nossa criança. eu sempre respeitei, pois reconhecia nessa linguagem uma afirmação preta, feminista. e a sustentava. à Pequena caberia o lugar do corte, da separação; a mim, o da religação, da comunhão. nós dois só concordamos com orgulho em um aspecto: nossa criança seria preta.

a Pequena não queria saber o sexo da criança. nem eu. nada que estivesse ligado àquela biologia, àquele amontoado de carne, definiria o gênero daquele ser. a Pequena achou que assim estaríamos afirmando a liberdade da criança. um dia eu disse que ninguém era livre, nem a nossa criança. ela respondeu: "a minha criança será a pessoa mais livre deste mundo". e foi. a criança da Pequena pode ser tudo, pode ser todos, pode ser todes. eu, como pai, só queria que a criança pudesse ser ela/ele mesma/o, com suas dores e lutas, e vitórias, e choros. eu queria que a minha criança tivesse história para contar de si já desde muito jovem. porque quem tem história pra contar de si é quem se joga na vida. e eu queria isso pra minha criança porque essa seria a herança ética da mãe. uma mulher que é uma força da natureza, uma tempestade. eu também sou uma força da natureza, mas de outra ordem. eu sou a terra e a rocha, aquilo que sustenta. a minha herança ética seria responsabilidade pelas escolhas. os progenitores perfeitos, pois.

já era vigésima, vigésima primeira semana de gravidez. a Pequena e eu tínhamos comprado um berço de madeira. combinamos de montá-lo num domingo. chovia, pois era março. eu me embrenhei por entre parafusos e martelos. suava. tirei a camiseta. me senti homem: seminu, construindo a cama da minha criança - digo, da criança da pessoa que me pediu em namoro. pensei que eu não havia sido homem com Nestor, em nenhum momento. pelo menos não na intensidade com a qual estava sendo com a Pequena. grávida, eu sentia mais tesão nela. ela, pelo contrário, se afastava. no entanto, no momento em que terminei de montar o berço, a Pequena me perguntou: "vamos morar juntos?".

hoje meu coração disparou - PARTE III alínea a

[a trilha sonora deste trecho é "perfume do invisível"]

já não lembro direito. mas parece, ao que tudo indica, que Nestor parou de responder minhas mensagens. é, acho que foi isso. eu lembro de estar almoçando com uma amiga em um restaurante de Higienópolis, era um sábado. eu havia mandado mensagem pra ele pela manhã. já eram três da tarde. eu insisti: "tá tudo bem por ae?". ao que ele replicou dizendo que havia trabalhado, que estava cansado, que estava sem rumo, que estava nublado... o que se diz geralmente quando se quer fazer com que alguém acredite que "não é problema seu, é problema meu". fiquei puto e deletei a conversa com Nestor. faço dessas. com a Pequena, ih, fiz milhões de vezes. só guardei seu último texto, tal como Madame Curie guardou o pedaço do crânio do seu marido. o último texto que a Pequena me mandou ainda está aqui no meu whatsapp, e fede como o osso de um cadáver.

não me recordo com precisão. talvez seja efeito dos remédios psicotrópicos que tenho tomado. mas Nestor passou uma semana sem nem dizer um "oi sumido rs". ou talvez eu não consiga resgatar essas memórias porque já faz bastante tempo que isso aconteceu. ah, sim: ele me mandava mensagens sobre seu trabalho, dia sim, dia não. nunca perguntava como eu estava, se já tinha limpado a casa ou se já tinha batido punheta. segunda sim; terça não; quarta sim; quinta não; sexta sim; e eu mandei à merda. porra. respirei. peguei uma folha de papel, um lápis. fiz um roteiro do que dizer em um áudio curto. porque sou desses que manda áudio de três, quatro, até dezoito minutos. sou mesmo. escrevi:

  • que legal, teu trabalho está sendo reconhecido e será um sucesso;
  • entendo que não queira mais encontrar;
  • eu gosto muito de ti;
  • eu vou seguir minha vida;
  • vá para o mar e aproveite a água, que tu tanto adora.

bem cognitivo comportamental, pois a psicanálise eu deixei pra depois, com a Pequena. parece que seria rápido, mas foram um minuto e trinta e sete segundos. eu ainda queria estender mais, só pra protelar esse pequeno fim. aquela preta cueca esgarçada que eu nunca mais tiraria; a barba em que eu nunca mais roçaria. queria que ele ficasse grudado no celular com aquela orelha onde passei minha língua, só pra ouvir minha voz. alguém mais termina uma pegação de quatro meses com um áudio de um minuto e trinta e sete segundos baseado em um roteiro? sou desses. e mandei. ele respondeu "positivo e operante. desculpe de encher o saco. sucesso na vida".

eu desfaleci. não lembro, mas acho que quase desmaiei. pro Nestor, eu não merecia nem quinze segundos de resposta pela sua própria voz. resplandecia, por isso, o lugar que eu ocupava em sua vida. fui pra academia e caí na esteira enquanto ouvia o mais recente número do Foro de Teresina. tropecei no cadarço do tênis. virei chacota, saí de lá e fui pra um boteco qualquer. bebi a noite toda. e no outro diz amanheci na sarjeta da avenida paulista com a rua augusta, aos pés do banco safra, nas condições já relatadas.

eu havia me tornado invisível. eu não lembro direito, mas acho que foi isso.

hoje meu coração disparou - PARTE III

eu e a Pequena trepamos três vezes por semana, por três meses. ela chegava na minha casa como uma pombagira de rua. no início eu ignorava com desprezo sua intensidade. achava que era só uma casquinha que ocultava o vácuo e a dor da vida que a trouxe até mim. ao final dos três meses, percebi que eu não estava tão equivocado, mas que tampouco acertava no alvo. o alvo da Pequena era móvel, cigano; quando eu acreditava ter encontrado uma fragilidade, algo mais intenso vinha em seguida que dirigia minha atenção para outra paisagem, e outra, e outra desse cenário em tempestade. 

ela entrava pela porta jogando a bolsa no chão, tirando os sapatos, deixando um na cozinha e outro no banheiro. às vezes ela não usava sutiã, e eu me perguntava como sustentar aqueles encontros. mas seguia encontrando. ela tomava banho e deixava o tubo de shampoo de ponta-cabeça. ela tomava água em diferentes copos, que ia esquecendo em cima da mesa, da escrivaninha, da geladeira. ela abria latinhas de cerveja e deixava pingar o líquido no sofá. ria quando isso acontecia. foi introduzindo o caos aos poucos, sempre me perguntando se podia, acreditando que eu nunca diria “não”, e eu consentia. de tão revolucionária com sua própria vida, me pediu em namoro. talvez acreditando que eu não diria “não”. e eu não disse.

viajamos. algo parecido com uma lua-de-mel, mas com muitas drogas. até hoje não sei se é possível fazer uma lua-de-mel com drogas porque aquela não foi inteiramente uma lua-de-mel. nem tão lua, nem tão mel com os sintéticos, lisérgicos e estimuladores. nada com a Pequena foi inteiramente algo. havia sempre um deslize ou um vazamento, uma escorregada: uma ideia que se perdia nas suas divagações; uma espuma de sabão que escorria na louça enxaguada; um olhar para a tevê quando eu me declarava; um bolo de cabelos num canto recém varrido. ela parecia não-toda. não porque fosse incompleta, mas porque ela desviava. ela estava ali, mas também estava em outros lugares. ela sempre pegava um detour, um atalho para fazer o que queria. e fazia. isso, com o tempo, me fez sentir paixão.

sem sutiã e sem vergonha, passamos a nos ver todos os dias. pequenas gotas de caos pingaram no meu piso vinílico. seu corpo, que eu vinha aprendendo a manipular tão bem pro meu próprio deleite, também tinha seus jeitos de escorregar. seu corpo pulsava em um lugar, pra onde eu ia com minha boca, mas então ele já pulsava em outro, que eu tentava agarrar com minha mão. nunca consegui abraçar sua vida. mas quase o fiz.

a Pequena chegou do trabalho pelas sete e meia da noite de um dia de outubro. me deu um “oi” entre os dentes. estranhei. ela não tirou os sapatos. pediu água, que eu dei. segurou o copo em silêncio. e me disse: “estou grávida”.

hoje meu coração disparou PARTE II - alínea d

 [a trilha sonora deste trecho é "absolute beginners", na voz da Carla Bruni.]

nos encontramos na rua Itambé com a rua Alagoas. era manhã de um sábado, quase primavera. a cidade arranhava: muitas pessoas em situação de rua nos pediam dinheiro, comida; uma transexual nos pediu papel higiênico e sabonete, e demos. caminhamos até o Parque Buenos Aires. Nestor e eu nos deitamos no gramado atrás da recém restaurada fonte, na entrada. o sol não esquentava, só iluminava. havia uma claridade naquela manhã que fazia tudo ter um brilho esfumaçado. quando nos deitamos na grama, Nestor se incomodou com o orvalho. eu sorri.

- tiozão de esquerda reclamão, rotulei.

nos demos as mãos. havia pássaros que voavam e cantavam entre as árvores. e pessoas em situação de rua que se escoravam nas grades em torno do Parque. e ônibus que subiam e desciam a Avenida Angélica - "a Terrível", complementava Nestor, porque era onde morava um dos seus ex-namorados com quem não falava mais. essa era uma das passagens do seu labirinto na qual eu adorava entrar: a dos romances do passado. sempre eram becos sem saída, e eu precisava voltar de onde eu viera. eu insistia porque havia algo naquele paredão, o paredão que me impedia de seguir, algo de quente. eu insistia porque sabia estar perto de algo pulsante na história de Nestor. as passagens dos romances do passado sempre me levavam ao paredão quente. Nestor dava sua versão dos primeiros encontros, das primeiras trepadas, dos momentos mais bonitos, dos mais delicados de suas relações prévias. mas cessava de articular palavra sobre o fim, ou os fins. como se houvesse um segredo sobre o término de suas relações, ou vergonha, ou culpa, ou crime. eu notava me aproximar dos paredões do seu labirinto quando ele começava a preencher com silêncio o tempo entre as frases das narrativas sobre suas relações do passado. entre uma e outra havia segundos nos quais ele olhava pro chão ou pro céu. e as pausas aumentavam na medida em que as narrativas se encaminhavam para os últimos dias do convívio de Nestor com os ex-namorados: não mais entre frases, mas entre palavras, que ele passava a escolher com muito cuidado (ou simplesmente lhe faltavam [impossível que lhe faltassem, tão rico que era em verbos e adjetivos, tão cheio de recursos de ironia e deboche.], pois há experiências para as quais não se têm nomes). 

- ... nos vimos num domingo ... eu mandei mensagem ... naquela noite ... senti que tinha algo ... de errado ... por isso, eu acho ... que mandei ... a mensagem ... agora sei que não ... não devia ... ele respondeu ... na ...  segunda-feira ... ... ...

e de repente quase dois minutos de silêncio. me senti constrangido, deitado na grama, com as costas molhadas, achando que havia forçado demais um assunto sobre o qual Nestor não queria falar. eu estava diante do paredão quente, eu ouvia a pulsação, eu sentia as ondas de calor. estendi o braço e toquei com as pontas dos dedos: fiz carinho na sua barba. ele fechou os olhos sem sorrir. um trio de senhorinhas em trajes de atividade física caminhava pelo Parque. romperam nosso silêncio. comentavam com furor que o PT não poderia voltar em 2022. seus cães yorkshire e lhasa-apso latiam, talvez pra discordarem delas (gosto de pensar que todos os cães são de esquerda [eu também.], especialmente os vira-latas). diziam, porém, que do jeito que estava não era possível continuar. que usariam máscaras até a pandemia acabar. que tomariam quantas doses de vacina fossem necessárias, "menos a coronavac", assinalou uma delas. Nestor virou o rosto pra mim e riu:

- essas senhorinhas conservadoras de Higienópolis (risos).

- sim, e as jovenzinhas lacanianas discursando sobre desejo e recalque (risos), eu retruquei.

- que devem ser suas netas, e tem também os netinhos jovenzinhos são-paulinos ou palmeirenses em quem eu gosto de dar uns beijos de vez em quando.

ele sempre escapava. ele sempre tinha um jeito de baixar a cancela, impedir meu fluxo. sempre tinha um modo de dizer que eu coexistia com netinhos jovenzinhos são-paulinos ou palmeirenses de Higienópolis, em quem ele às vezes dava uns beijos. eu era uma mosca rebatendo no vidro da janela; uma perereca grudada em uma janela tentando entrar em um quarto. havia uma blindagem. mas naquele dia, naquela manhã de sábado, ficamos quase 3 horas de mãos dadas, deitados na grama. e almoçamos. e tomamos café com torta de limão e merengue. e voltamos ao minhocão. e tomamos mais café. e escolhemos um restaurante pra janta. e tomamos mais vinho. e rimos e gargalhamos. e nos demos beijos públicos. mesmo quando eu não planejava, era arremessado contra o paredão quente e pulsante de Nestor. eu percorria com destreza seu labirinto; ele permitia que eu ali estivesse; entretanto, a cada encontro e a cada nova passagem eu ficava, em vários momentos, diante do seu paredão. eu recuava. não o acessava em algum lugar, algum lugar dele onde era quente, onde latejava o Nestor namorador, cheio de romances passados. foi assim por meses, mas eu me divertia no labirinto. e achava estar próximo do meio, bem do meio, do meio onde havia vibrações. porque, desde o primeiro dia, houve café, vinho, boa comida. monólogos de Nestor sobre sua relação com a irmã mais nova, que adorava; sobre seu pai, que era um mistério; sobre sua mãe, que era, afinal, mãe, presente como um incômodo às vezes. da irmã mais velha, de quem ele não gostava. e me fascinavam, os monólogos de Nestor. ele parecia declamá-los pra mim, só pra mim. fui me perdendo em seu labirinto de monólogos, vestindo somente tanga e segurando uma tocha, por 4 meses. da última vez que o vi ele vestia uma cueca preta esgarçada, estava parado perto do parapeito da janela assistindo ao por-de-sol. havia chovido o dia todo e, naquele fim de tarde, o sol abria passagem. tínhamos trepado com a chuva batendo na vidraça.

- a minha vida toda poderia ser assim, um por-de-sol depois da chuva, me disse o Nestor de olhos fechados e sem virar o rosto do sol.

eu me arrabatei por aquele homem em quem eu não conseguia entrar. eu apostei, eu topei; de tanga e tocha no seu labirinto escuro. eu disse sim pra um paredão.

hoje meu coração disparou PARTE II - alínea c

 [...]sseram que cê é viado. por mim tudo bem", me conta agora a Pequena. os amigos que fizeram o churrasco foram gentis, segundo ela, e quiseram apenas colocar em pratos limpos algo que estava difícil de engolir. mastigavam, assavam, fritavam, cortavam com a faca, mas era de difícil deglutição, o sabor era amargo. nossos amigos em comum tinham me conhecido ficando com homens, nunca tinham visto a Pequena com outras mulheres (embora ela tivesse tido uma história lésbica com uma colega de faculdade por dois anos [algo que somente eu, a colega e a própria Pequena sabiam, parecia que a Pequena tinha vergonha disso.], era um segredo), menos ainda com um homem viado. nossos amigos em comum têm pouco em comum conosco. serviram pra nos apresentar um ao outro. mas agora deixam de fazer sentido. há 3 meses eu estou conhecendo a Pequena, 3 meses desde o churrasco em dia nublado com cerveja, cachaça e maconha; há 3 meses me desloco pelo seu corpo cheio de curvas e derrapo. ela parece gostar ou, pelo menos, não se importar. há 3 meses nossos amigos incomuns fazem comentários jocosos sobre o homem que sou. e sou um homem. pararam de nos convidar para encontrar nos finais de semana. alegam que estão se resguardando das novas ondas da pandemia e de todas as variantes do vírus. o único vírus variável é a escrotidão, com o qual eles já se contaminaram. há 3 meses meu pinto branquelo broxou, esse pintinho murcho, mas a Pequena pediu pra eu dormir de conchinha naquela noite. e fiquei. na manhã seguinte, acordei de ressaca. ela estava pior. eu deitei de barriga pra cima na cama, nu; ela pôs a perna esquerda sobre as minhas e encostou a cabeça no meu peito. seu cabelo feito árvore frondosa cheirava a lavanda e... um pouco de baunilha. fiz carinho naquela cabeleira macia e cheirosa. ela veio pra mais perto de mim, e eu a apertei contra meu tórax. ela murmurou algo, e eu pedi ao senhor (sou ateu [nessas horas recorro até a Buda se necessário], mas que há uma energia que corre entre os corpos, há!) que meu pintinho branquelo ficasse duro. ela me deu uns beijos no queixo e mordiscou meu mamilo. duro, ufa, pelo menos em processo de endurecimento, o que já é um ganho. nos beijamos, e parecia que tínhamos mil línguas. ela apertava minha bunda. eu gostava. eu apertava seus peitos. ela gostava. a cor marrom da sua pele fulgurava, emitia faíscas quando o sol da manhã entrava pela fresta janela e a tocava. eu preciso de beijos pra endurecer, de línguas, de mil línguas, e de mil faíscas feito fogos de artifício; disto é feito meu pintinho branquelo: beijos, línguas, faíscas e sol. até que a Pequena se virou na cama, abriu as pernas e demandou "me chupa". eu vacilei: "eita", pensei. encarei a Pequena. ela agarrou meus cabelos "vou te dizendo como". ela com a cabeça entre os travesseiros, de barriga pra cima, pernas abertas; eu fui lambendo os peitos dela, a barriga dela, até que cheguei lá e ouvi um "oi, mané, você é novo por aqui". aquela protuberância rosa, cheia da força feminina, parecia muito segura de si. "oi, beleza? ahn... sim, cheguei hoje. ontem, na verdade, mas acabamos dormindo e", "sei, mais um broxa?", "não exatamente, é quê", "olha, queridinho, faz teu corre. compra maca peruana, toma guaraná, cialis, faz injeção de hormônio pra cavalo", "sim senhora, perfeitamente, senhora, é quê", "não precisa ser grande, não, até ajuda, mas a questão é se entregar, entende?, investir, gostar de estar por aqui", "claro, entendo, é sobre isso quê", "nos trate bem, esteja conosco, quando estiver comigo você está também com ela, você gosta de mim? aqui na ponta e nas beiradas é onde me espalho, é onde me arrepio", "ah, certo, na ponta e nas bordas, obrigado, senhora, é quê", "nós somos o infinito, nós somos uma força da natureza, nós somos a resposta ao universo", "a respos..., certo, entendi, senhora, é quê", "é uma magia, uma bênção mística estar em face do mais feminino que há numa mulher", "sim, senhora", "deixa eu ver tua língua, mostra a língua", mostrei, "hum, boa língua, hein, ela abre e estica?", fiz que sim com a cabeça, "cê tem cara de bobão, mermão, mó mané você, de onde você veio?, onde ela arrumou você?", "eu vim do vale", "que vale, seu trouxa?", "do vale dos homossexuais", "eita, porra", "desculpe, eu sou viado, mas rolou um troço intenso entre nós ontem", "sei", "eu já estive por aqui antes, quer dizer, não aqui aqui, estive no aqui de outras mulheres, mas foi muito rápido e agora eu to aqui de de novo e eu to nervoso porque sei que é uma atividade que demanda experiência, trajetória, acúmulo, expertise, savoir-faire, know-how, que eu não tenho", "e rola, cê chupa?", "chupo, sim, senhora", "aqui é mais difícil, mané, aqui é arte, aqui é glória", "eu sei, senhora", "merda, nem sei como ensinar viado", "peço a gentileza de ter paciência, senhora", "mas então cê quer mesmo?, tá a fim mesmo?", "tô, senhora", (silêncio), "vai ver viado pode fazer melhor que os últimos héteros que passaram aqui, porque eu vou te contar, bando de preguiçosos", "prometo me esforçar", (silêncio), "seu beijo é molhado?", "sim, senhora, bem molhado", "e cê enfia a língua na boca quando beija ou roça a sua língua na outra língua", "um pouco dos dois, senhora, mas prefiro roçar a língua na outra", "ok, porque enfiar a língua é mais ali embaixo", "ah, disso eu sei, senhora", (silêncio), "é sério que cê é viado com essa cara de bobão?", não respondi e fiz cara de cachorro pidão, "tá bem, vai, de alguma coisa há de servir ter chupado rola, mas aqui não é rola, não, seu mané, aqui o sabor é Pachamama, vai aos poucos, reverenciando cada dobra, e presta atenção nela, ela é o foco, viado com cara de bobão, e cai de boca", "sim, senhora, com licença, senhora".

a Pequena se levantou e vestiu uma calcinha, sem sutiã. foi pra janela. me surpreendi observando sua silhueta contornada pelos raios de sol. Pequena linda. Nestor era assim também, uma extensão do sol vestindo somente uma cueca preta de elástico esgarçado; porque havia uma luz que percorria o encaracolado bagunçado dos seus cabelos e os fios desordenados da sua barba da última vez que o vi; uma luz que se expandiu e implodiu como supernova; uma luz de por de sol, moribunda; uma luz que eu não sentia já havia 6 meses. doí de saudade de Nestor. a Pequena virou pra mim, eu nu, deitado na cama, com os lábios molhados, língua cansada demais. ela me perguntou, se espreguiçando "vou fazer café, vamos tomar café? tenho tapioca e queijo, uns ovos. vamos fumar um baseado? preciso tomar água. café forte ou fraco? vou por uma música. que música cê gosta? cê tem uma cara de menininho de bossa nova". ela ligou a caixinha de som, que começou a tocar "braille", do Rico Dalasam.

hoje meu coração disparou PARTE II - alínea b

 [a trilha sonora deste trecho é, como não poderia ser de outro modo, "freguês da meia noite", na voz de quem fala de espera, angústia e desejo.]

então marcamos de encontrar no Largo do Arouche, número 346, às dezenove horas, quando a temperatura chegasse aos oito graus Celsius. frio. às dezoito e quarenta e três já fazia nove. e lá o esperei. Nestor chegou mal agasalhado pra aquela noite.

- você é sempre pontual?, ele perguntou se aproximando do meu rosto para um abraço (foi quando senti o mau hálito [aguento ou esqueço ou fujo; ele bebe demais e eu também; algo temporário ou permanente; e de manhã cedo, será que é pior?], e pensei em interromper o encontrinho ali mesmo mas ele sorriu ao tirar a máscara, e eu por aquele sorriso eu fiquei, eu ficaria, eu ainda estou).

- sempre, respondi, e tu é sempre calorento? 

- vim pra me aquecer.

arrá!, meu cão não late em vão. fingi ser democrático e perguntei qual vinho beberíamos. eu já havia escolhido: uma garrafa do novo mundo, África do Sul. ele sugeriu um vinho português, mas eu argumentei que a noite pedia uma uva densa. ele concordou. sugeri o sul-africano. ele concordou.

- e de entrada? terrine com pistache?, Nestor quis e completou: j'adore.

e eu quis vomitar ali mesmo porque detesto fígado, ainda mais de pato. fui democrático e aceitei. e até comi um pouco quando chegou à mesa trazido pelo garçon, engasgando ao engolir, sorrindo de leve ao tocar a faca na beirada do prato, tomando um cheio gole das uvas importadas pra disfarçar o gosto impregnado na minha boca. um beijo, naquele momento, na boca de Nestor pra dissipar aquele mal estar de fígado - eu queria o fígado de Nestor, e o sumo fermentado das suas uvas, e todo o mau hálito dele espalhado na minha virilha, e sua máscara caída ao lado da minha cama como se estivesse ali esquecida, e o seu cabelo encaracolado sobre meu travesseiro, furta cor de prazer -, e pousei a taça de cristal sobre a toalha de linho branco que cobria a mesa e levantei o guardanapo de pano do meu colo e limpei com cuidado a gota de vinho que caía do meu lábio. falamos de música, e de música passamos a falar de política, nos detemos no assunto política brasileira pós-golpe de 2016.

- quando foi que tu beijou um homem pela primeira vez?, perguntei.

- (riso, um riso que era um risco), o que isso tem a ver com o bozo?

- tudo!, (gargalhada, joguei minha cabeça pra trás).

ele também gargalhou. contou do tesão e do receio em se aproximar da boca de outro homem aos 16 anos de idade. que tinha sido hetero até então. "era outro tempo", ele argumentou, o tiozão de esquerda. ficou em pânico quando o fez, mas repetiu no dia seguinte. e no outro, e repete até hoje. os homens, sempre mais diretos que as mulheres, com menos curvas e menos becos sem saída nos diálogos, com menos simbolismos e com menos duplos sentidos. "uma linguagem mais plana", ele disse, uma condição masculina que possibilitaria relações mais simples, com inícios e desfechos menos dramáticos, menos barrocos. pra Nestor, ser homem era ser menos, era ser minimalista.

- e você?

- viado, sempre fui viado, mas hoje sinto que to velho porque estranho os quia.

- (riso, um riso que era um risco), os quia?, quem são os quia?

- a sopa de letrinhas, os elegêbetêquiamais. é muita gente pra pouco sexo.

houve um tempo em que ser viado era glamouroso, um requinte. sempre foi desconfortável, mas também sempre foi gostoso. era uma marca distintiva: ler livros que poucos liam, ouvir músicas de acordes complexos, vestir roupas coladas no corpo esbelto, empostar a voz de barítono para dizer sagacidades bem-humoradas. já eu sou de uma geração em que ser viado se tornou desculpável por causa da Xuxa. Rainha dos Baixinhos, Lua de Cristal, Super Xuxa Contra o Baixo Astral, Meu Cãozinho Xuxo, as Paquitas (e, mais tarde, os Paquitos [ah, sim, os Paquitos, hm, delícia.], por quem eu aguardava uma noite inteira só pra ligar a tevê pela manhã e vê-los, fingindo pros meus pais que o Praga e o Dengue eram quem me interessavam), tudo fez com que uma geração de guris fosse viada e a culpa recaiu sobre a Globo, não sobre o fato de que ser viado é gostoso, apenas. e teve a Madonna também. sabe, ouvir Madonna no início dos anos 1990 no interior do Rio Grande do Sul, quase fronteira com a Argentina, era uma atitude de guerra. era militância no talo, ativismo no pelo. ser viado era simples: era um guri gostar de outros guris. mas aí veio a internet em linha discada - o som da conexão do modem ainda ecoa na minha cabeça. e vieram as salas de bate-papo do UoL. e vieram os sites de relacionamento. e vieram as webcams, e a internet banda larga. e a aids, que nunca nos deixou. imagine tu que assisti a "Filadélfia" em 1993 e, com 9 anos de idade, saí do cinema com a certeza de ter HIV. não tenho até hoje, mas, está vendo?, a sopa de letrinhas está grudada na história de ser viado. agáivê, elegêbetê, quiamais, a ou p?

- cê tá me perguntando se sou ativo ou passivo?, Nestor me interrompeu.

- tenho outras perguntas pra te fazer que podem ser mais interessantes.

- (riso, um riso que era um risco), eu tenho uma primeiro. posso?

- vá lá, peguei a taça e fui virando um gole demorado de um vinho que grudava na língua, na garganta.

- existe amor em essepê?

- existe amor com emedê, (gargalhada, joguei minha cabeça pra trás ainda segurando a taça).

- (gargalhada, jogou a cabeça pra trás), olha nós com a sopa de letrinhas!

cinco graus Celsius no Mercado das Flores. eram dez da noite. ainda pedimos mais uma garrafa de vinho, o mesmo, pois Nestor havia gostado das uvas do novo mundo. minhas gargalhadas, acredito hoje em retrospecto, me permitiram entrar no labirinto da intimidade de Nestor. ele deve ter sentido que era possível me deixar passar. aceitei uma única entrada sem garantia de saída. lá dentro era cavernoso, escuro, úmido, e às vezes rajavam ventos de furacão; e eu no labirinto de tanga, com uma tocha, ouvindo seus relatos da relação com o pai, com a mãe, com as irmãs (eram 2, uma mais velha e outra mais nova, mas ele só se dava bem mesmo com a mais nova). os homens por quem foi apaixonado; maremotos e tsunamis no labirinto. eu desfilava como uma modelo nas passarelas da semana de moda de Paris por aqueles túneis de Nestor. eu fazia nado sincronizado nas ondas do mar revolto das suas memórias.

- aliás, sou versátil, disse Nestor.

- legal, eu também. mas nem sempre curto penetração.

- nem sempre... como assim? (riso, um riso que era um risco).

- ser viado é mais simples do que dar ou comer. e vai mais além também.

silêncio. nos encaramos ao som do tilintar dos talheres e taças do restaurante, do sussurrar das risadas e conversas dos outros fregueses, do craquelar do frio à meia-noite.

- eu gosto de você.

- eu gosto de ti também, Nestor.

e não há como negar que o prato a se ofertar não o faça salivar.

hoje meu coração disparou PARTE II - alínea a

 na página 100 de "copo vazio" eu escrevo a lápis "TODAS assediam o mundo espiritual para trazer o macho de volta". como se aquela piroca fosse a única das galáxias. na página 108 eu comento "a gente faz dessas", sobre quando Mirela vai pra debaixo da mesa e grita alto o nome de Pedro na tentativa ilógica, incoerente, de trazê-lo pra sua vida novamente. nas páginas 72 e 84 eu puxo setas e escrevo nas margens "eles dão sinais"; "eles nos avisam". esses homens que vão embora têm suas formas de vazar resquícios, rastros, pistas de que algo vai dar mal pra nós. a gente percebe e, na hora, finge que é auto-sabotagem. finge que é neurose. finge que é vício de experiências anteriores que deram errado. Mirela doida no enorme pinto flamenguista de Pedro, no seu sotaque de Minas. compreensível. rogo, por outro lado, que possamos fazer pequenos avanços, talvez em uma sequência de workshops ou em breves sessões de coaching, de modo a habilitar esse faro que temos (e temos [nem todas tão aguçadamente.] em algum lugar) para sentir o odor da cafajestada.

depois da tirada de cartas na casa da minha amiga, perdi noites com a imagem das nove espadas perfurando um corpo - o meu corpo. "a crueldade". achei por bem não abrir minha intimidade para mais ninguém. seria melhor manter-me discreto emocionalmente: sofrer em silêncio pela saudade de Nestor, passar os finais de semana lendo romances e assistindo a séries no Netflix. apagar os perfis dos apps de pegação. impedir, ou pelo menos dificultar muito, que outro homem se esgueirasse pelas frestas da minha fragilidade. só não pude supor que uma mulher o faria. pois foi quando aceitei o convite para ir ao churrasco. e lá tinha uma diva fumante.

hoje meu coração disparou PARTE II

[a trilha sonora deste parágrafo é "socorro", cantada pelo Arnaldo Antunes.]

"bora lá, não tem sofrência boa sem um tarô", disse a amiga que me acolheu em seu apartamento dias depois do meu meltdown emocional por Nestor. ela tem razão. a mística das cartas, da astrologia, tem tudo a ver com uma dor de cotovelo. "põe as cartas pra esta macabéa", eu ratifiquei. eu quase havia precisado ir a um atendimento psiquiátrico de emergência. queriam me dar lorazepam, diazepam, um mata-leão qualquer pra me fazer parar de chorar e calar a boca. na sexta-feira anterior, depois de uma semana inteira de mensagens territorialistas, ambíguas, e sem nenhuma intenção de me ter no colo, Nestor mandou um meme. não, não era um meme; era um post de um perfil aleatório do twitter que brincava com a letra de "vambora", da A. Calcanhotto. só poderia ser um deboche, uma ironia. eu digitei "é uma piada?", ao que ele respondeu "não faz a Maysa", que eu supus remeter à cantora de "meu mundo caiu". ainda pensa que sou um romântico brega, esse calhorda. mandei logo um áudio de um minuto e vinte e três segundos. pápápá, somos dois adultos, bibibi, não é culpa de ninguém, tananã, eu vou viver minha vida, e isso e aquilo, gosto demais de ti. era por volta das três e meia da tarde. nunca mais recebi notícias de Nestor.

"então, amigo, vamos ver o que as cartas dizem", "elas mentem sempre", "hoje não vão mentir". ela embaralhou, pediu pra eu cortar o monte em três. eu cortei. ela reuniu novamente os montes, embaralhou. abriu as cartas em um semicírculo sobre a mesa de madeira. ela tinha colocado um incenso fedorento pra queimar, de cravo, meus olhos ardiam. "escolhe cinco." peguei três da ponta esquerda, uma do meio e uma da ponta direita da fileira. o assento da cadeira praticamente não tinha mais estofo, minha bunda doía contra a madeira, afundada. ela colocou quatro cartas em cruz e uma do lado superior direito. "esta separada aqui é a que manda no jogo."

1a carta:

A Diva: uma mulher forte, poderosa, vai entrar na tua vida. ela é muito magnética. ela brilha. certifique-se de que ela te enxergue, te perceba, te aceite na vida dela como tu é; do contrário, ela será um rolo compressor.

2a carta:

A Pêssega: uma série de atitudes ingênuas e orgulhosas podem levar a um grande mal entendido, um grande ruído de comunicação. perda de valores por vaidade.

3a carta: 

A Falsiane: cuidado com a mentira e com a ilusão. o fascínio cega. palavras doces podem estar encobertas de segundas intenções, prenhes de veneno. alguém quer o suco da tua vida e vai fazer de tudo para vampirizar tua energia.

4a carta:

O Funkeiro: amante do sexo, drogas, samba, rock'n'roll. o ser errático que requebra os quadris na velocidade cinco do créo, que faz quadradinho de oito invertido. nascido do proibidão, desconhece a regra e a moral. pode ser a alma da festa ou o estraga prazeres.

5a carta:

A Sofrida: imersa na dor, não distingue tristeza, melancolia e cansaço. é a carta que rege o jogo. está enforcada, sacrificada. deu mais do que tinha e agora não tem como pegar de volta. deve aos traficantes da biqueira. entregou-se, mas foi rejeitada. chora e ninguém a ouve.

"achei um jogo pesado. quem sabe tiramos mais uma por descargo de consciência?", "a macabéa aqui aceita", "seja lá o que for, vai passar", "tem tanto sentimento, deve ter algum que sirva, cantou o arnaldo."

6a carta:

9 de espadas: a crueldade. nove espadas perfuram seu corpo. é mais que dor: é terror, é pânico, é horror.

"agora vou ser atropelado por uma mercedes?"


hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

 [a trilha sonora deste parágrafo é "eu bebo sim", na voz da Elza Soares.]

quando eu cheguei no churrasco dos amigos, no dia nublado, e reparei na Pequena, acho que conectei também com a força da sua ancestralidade. a força das mulheres negras é um repuxo de mar. eu achava que a isca do isqueiro esquecido era minha, quando na verdade ela sabia que se tratava de uma forma de eu começar a conversar com ela. desde o início era ela quem me queria, quem queria o meu destino, quem queria a minha vida na dela. e desde o início eu, um branquelo insípido, não tive outra escolha senão entrar nesse redemoinho de algodão e lavanda que era sua voz, seu cabelo. ela estava enérgica naquele dia. a Pequena gosta de beber, e eu tentei acompanhá-la na cerveja, primeiro, na cachaça, em seguida. sem sucesso. mas bebiriquei o destilado mineiro acompanhado de água. "cê não aguenta, não?", me questionou a Pequena. "aguento, mas hoje eu quero estar o mais lúcido possível." "por quê?", "porque hoje eu quero dormir pelado contigo." ela sorriu e pegou um baseado que circulava de mão em mão entre nossos amigos. "quer um peguinha?", e eu calculei rapidamente que sim porque sabia que havia docinhos e uma torta de chocolate com sorvete de creme de sobremesas. então: cerveja, cachaça, maconha, chocolate; só drogas leves. a Pequena me contava do seu trabalho, da mudança do Rio de Janeiro para São Paulo. da dureza da adolescência, isso sem nenhuma cor de drama. à medida que falava da sua história abria um sorriso porque conquistou tudo o que havia se proposto a conquistar: a mudança do interior pra capital, a entrada na universidade federal, o ingresso nos primeiros estágios de trabalho - sempre os melhores, muito bem posicionada nos processos seletivos. não porque era esforçada, mas porque tinha tesão em fazer o que fazia. e disse "eu até vou em manifestações anti-bozo, mas a maneira mais radical de mudar esse país é botando mais gente pra viver, é botando mais gente neste mundo, é dar sequência à linhagem de luta que me trouxe até aqui". fascinante, impetuosa. meus amigos presentes no churrasco passaram a me censurar. diziam que eu queria chamar a atenção dando beijos em uma mulher só porque eu estava com dor de cotovelo. repetiam que eu tinha nascido viado e que aquilo era heresia. que iam tirar minha carteirinha de passiva. que iam me excluir do decanato dos adoradores da Cher. um deles, já no final da noite, sussurrou no meu ouvido que não era com uma pepeca que eu iria tapar o buraco que o pinto do Nestor deixara em mim. o comentário nojento não teve réplica, mas merecia. a Pequena daria uma resposta à altura, mas quando ela chegou do banheiro eu já havia esquecido da grosseria e dei um beijo nela. minhas amigas queriam saber de onde eu havia tirado a lábia, a malemolência, a sedução. uma delas só soltou um "ai, se eu soubesse antes...", que eu também esqueci de comentar com a Pequena porque estava muito, muito, muito loucão. eu comi 3 fatias da torta de chocolate com 4 bolas de sorvete de creme. a Pequena só tomou mais uma dose da cachaça mineira e deu mais umas baforadas no baseadinho. fomos a pé pro apartamento dela. ela é bagunceirinha. nos beijávamos muito enquanto tirávamos a roupa um do outro - que, pra mim, levou um tempo longo e bem aproveitado. naquela noite meu pinto branquelo broxou (assim mesmo, com x [um uso chulo e desaconselhável pelos dicionaristas.], porque meu pintinho branquelo é chulo). perguntei se ela queria que eu fosse embora. a Pequena não se importou, "fica do lado de fora da conchinha pra eu pegar no sono?". e dormimos.

hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

[a trilha sonora deste parágrafo é "everybody's gotta learn sometimes", cantada por Beck. Ah, para ler "hoje meu coração disparou" é necessário ter assistido a esse filme também. do contrário, nada acontecerá nessas almas moles de vocês.]

leio "copo vazio" com um lápis. sempre leio romances com um lápis em punho porque tenho a mania de comentar, corrigir, encontrar pequenos erros de digitação, sublinhar o que me impressiona. eu estudo a narrativa de ficção. vou atrás das referências, confiro as intertextualidades. monto a rede de histórias na história - não para entender melhor, mas para espalhar o que leio. esparramo a narrativa. escrevo na margem de vários parágrafos de "copo vazio": "eu todinho", "eu inteirinho", "puta merda"; faço emojis de coração ao lado de "ele se deitou de cueca" na página 29; assinalo asteriscos nas ruas por onde passei; comento na página 31 "gata, você é uma trouxa"; discordo da narradora, na página 43, quando fala em "abandono", pois não acredito que Pedro tenha abandonado Mirela, e escrevo "desinteresse", "desprezo", "condescendência", "despaixão" nas margens. converso com Mirela, pois me identifico. trouxa, ingênua. adoro Mirela. caiu no conto do flamenguista. Pedro é meu Nestor - com sutis diferenças. eu o conheci no minhocão, num dia estranhamente quente depois de uma sequência de dias frios. amanheceu aquele domingo de sol morninho, um domingo que aconteceu, assim mesmo, como se acontecimento fosse. eu vesti regata e bermuda displicentemente, fones de ouvido e celular, paramentado para caminhar. era metade da manhã. o minhocão é energizante. os grandes murais dos prédios carcomidos, com mensagens de emancipação e revolta e autoafirmação, as pessoas estranhas nas janelas e sacadas, as pessoas mais estranhas ainda usando o asfalto como se praia fosse (e é [não é, mas serve.], a praia santa cecílier). caminhei e li "eu sabia que você existia"; "no país da corrupção pixação é crime", "hoje não vou me ferir", e eu sorria. naquele domingo eu estava ali e em nenhum outro lugar. não estava radiante, eufórico. estava só aproveitando a bondade do domingo, que era um acontecimento. decidi me sentar nos bancos improvisados próximos à praça Roosevelt. e notei o rosto por trás da máscara (às que lerem isto anos no futuro, houve uma pandemia causada por um vírus entre 2019-2020-2021 e todas as pessoas do mundo precisaram usar máscaras como forma de prevenção [o que foi uma chance para quem era feia e uma dificuldade a mais pra quem era apenas normal mas tinha harmonia facial, como eu.]), cujos olhos me acompanhavam. Nestor estava sentado a poucos metros num platô de madeira. eu me deitei em algo que parecia uma espreguiçadeira, de tal forma que o rosto por trás da máscara estava no meu campo de visão. escolhi um podcast de política para ouvir no spotify. e cuidava daquele rosto por trás da máscara que, sem cansar, sustentava o olhar em minha direção. boné, bermuda jeans, chinelo de dedo, camiseta verde da osklen. nesse primeiro instante eu não tinha certeza de gostar daquele homem que me encarava. eu o achei jogado demais - mas o que é ser jogado? era eu quem vestia displicentemente regata e bermuda, seminu. e o rosto por trás da máscara ainda olhava. "a política externa de bolsonaro, pipipi-pópópó, a descrença nas instituições democráticas, patati-patatá", eu ouvia o podcast certo de ser alguém que, mais que sustentar um olhar, poderia sustentar também uma conversa. o rosto por trás da máscara se levantou e veio caminhando devagar até um espaço vazio próximo de onde eu estava deitado. sentou-se e arrumou a camiseta verde da osklen amarrotada. olhou pra frente, virou pra mim, o rosto por trás da máscara sustentou o olhar em mim. decidi retribuir, simulando aquelas brincadeiras de quem-piscar-primeiro-perde ou quem-rir-primeiro-perde. eu perdi porque eu ri primeiro. ele percebeu, mesmo que eu também estivesse usando máscara (só naquele momento me dei conta de que eu poderia ser uma boa ou má supresa pra ele quando eu tirasse minha máscara [e ele também pra mim.], então a tirei, um pouco envergonhado). "eu sou Nestor. o que cê tá ouvindo?". tirei um fone do ouvido, "desculpe, não te ouvi". "eu disse que sou Nestor. o que cê tá ouvindo aí?" "ah, uns podcasts sobre política. é sempre um horror." "é sempre um horror. eu deixei de ouvir. prefiro viver, fazer coisas boas. porque se esse cara continuar como presidente..." e foi então, vendo e ouvindo Nestor articular as primeiras palavras, que me fixei nos pelos pretos e brancos da barba se movendo por entre os elásticos que prendiam a máscara pelas orelhas. um tiozão de esquerda nove anos mais velho que eu. Nestor foi se espalhando, e eu fui dando entrada. de política trocamos de assunto pra cinema; de cinema pra literatura; e já era início de tarde, e eu o convidei pra conhecer uma cafeteria ali perto onde há café e também livros; nos demoramos na literatura; de literatura pra música; de música pra adolescência; e a tarde já virava noite, e do café passamos pro vinho; da adolescência pro primeiro beijo; do primeiro beijo pras saídas do armário - pra família, pros colegas de trabalho, pros novos amigos; de saídas do armário pros grandes medos. eram dez da noite. tínhamos passado doze horas conversando. o café estava fechando. pensei em trepar com ele na rua mesmo. mas ele, por outro lado, pareceu querer preservar alguma coisa de vitoriana daquele momento. pediu, apenas, que eu mandasse um oi no whatsapp e disse que responderia quando chegasse em casa, pois a bateria do celular tinha acabado. de pronto registrei o número nos contatos e corri pro aplicativo pra conferir a foto de perfil que ele escolhera. um pouco decepcionante. mesmo assim escrevi: "conforme o prometido, oi". como sempre, eu mantenho minhas promessas. eu aposto.

paramos nos grandes medos, e Nestor é isso pra mim até hoje.