[...]sde janeiro, muito e pouco mudou. estou morando em são paulo, na consolação - nada poderia ser mais adequado pra mim do que morar no consolo. consegui trabalho, não emprego. desqualificado, trabalhoso, pesado, demorado, arrastado. um consolo sacrificial depois de seis anos de pura exploração, depois de seis meses de desemprego. mas não reclamo. estranho, não reclamo. passeio por higienópolis, centro, jardins, barra funda e santa cecília, conheço as ruas desses bairros e a posição solar da cidade como se a palma da minha mão fosse a terra plana. e é, em certa medida: meu mundo é um terreno plano, um pouco inclinado, dentro de uma redoma. entre maio e agosto escrevi um diário a mão, só pra exercitar. dei de presente a um amigo. um moleskine inteiro de letra cursiva, romântica. desde a primeira semana de agosto estou escrevendo outro diário, também a mão, também em um moleskine, mas menor. mais um presente para outro amigo. minhas amizades mais próximas são canibais, pois dou a elas partes de mim para se alimentarem. na verdade, o canibal sou eu.

são justificativas do porquê não tenho escrito mais aqui. mas estou escrevendo, estou escrevendo muito, talvez mais sinceramente do que nunca. talvez até devesse pensar seriamente em publicar um livro sobre tadzzio. ou sobre uma ilha deserta. por ora, decidi voltar aqui para não enlouquecer. não posso me dar ao luxo de ficar louco, nem de oferecer essa pequena vitória a quem contribui para minha loucura.

*

são três e meia da tarde de uma sexta-feira que já dura quatro dias. foi o horário em que nos falamos da última vez. desde então, desagreguei, desabei, desorganizei. em algum milésimo de segundo desde esse big bang, eu não suportei o apartamento que dá para um paredão, o escuro, o silêncio. em outro, eu caminhei de um lado pra outro, da sala para o quarto, depois para a sacada com vista para um bloco de concreto, olhei para cima e para os lados, para baixo, em busca de outros apartamentos com luz, com movimentação humana. queria ouvir músicas vindas de outras casas, gritos. não vi nem ouvi nada. meu coração palpitava, e me escorei no parapeito: segundo andar, muito baixo. eu não suportaria ficar sozinho. vesti qualquer coisa surrada, peguei uma máscara grande e óculos escuros. andei pela rua augusta, sentei em três botecos diferentes para tomar café e ver pessoas caminhando, sentir o sol. chorei por detrás de tudo, um choro de quem fragmentava e não conseguia coser os trechos de emoções muito, muito antigas. chorei com café, com pão de queijo e com pão na chapa lambuzado de cream cheese. fui subindo a augusta do centro em direção à avenida paulista. não conversei com ninguém simplesmente porque eu não conseguiria articular palavra sequer. quando choro minha garganta fecha: não comunico para fora. só via imagens da barba e dos cabelos desalinhados entrecortadas por choques que eu sentia no peito, na boca do estômago. talvez eu estivesse vivendo em um pesadelo e alguém no mundo acordado tentava me reanimar com desfibrilador. não deu certo. quando cheguei à sede do banco safra eu desabei. sentei o mais próximo do asfalto e do concreto que pude, no meio-fio. a avenida paulista nunca decepciona, pois sempre há transeuntes dispostos a te ignorar. é para lembrar que tu precisa ser discreto. e naquele momento eu era um escândalo. eu chorei pela confusão, pela rejeição, pela incompreensão. ninguém de fato viu, pois essas são emoções comuns no meio-fio que une a paulista à augusta. eu era só mais um em mais de um século. senti revolta e medo. derreti naquela dor estranha onde eu havia molhado meus pés.

eu estou muito cansado. é um dia muito longo, esta sexta-feira que não acaba. esse desprezo que repete o gesto em looping. a indiferença paralisa o tempo na melancolia, que é um gás. é uma gravidade que me impede de levantar. minha cabeça dói e pende pro chão. sinto que vou desfalecer, entrar no sono regido por uma dor de cabeça forte. ouço a voz dele e acordo. é de madrugada. o escuro do quarto é insuportável, e ligo a luz num movimento de desespero. venho à sala, abro a janela da sacada: paredão. lá longe vejo dois apartamentos com as luzes ligadas. fixo neles o olhar, já lacrimejando, pedindo para que alguém se levante do sofá, ou ande até a cozinha. não suporto estar sozinho. ninguém se movimenta. o terror que ejetou de mim precisa ser filtrado; é parte do que sou. o desespero é uma serra que separa membros e eviscera corpos: meus braços e olhos flutuam no teto. o que resta de mim está preso ao chão na mesma gravidade que torna difícil eu correr, gritar e até mesmo bater nele. porque ele não disse uma palavra de carinho. ele delegou a mim a atitude de botar um ponto final em uma frase quando eu queria escrever junto com ele um livro inteiro. será que ele estava certo, afinal? foi demais, muito rápido, muito pesado? ou foi de menos, muito ingênuo? o que eu fiz e o que eu deixei de fazer para que essa história encontrasse seu fim em palavras minhas - minhas palavras, eu, que estava disposto a tudo com ele? o luto existe para que possamos encontrar nossas respostas para perguntas deixadas em aberto pela ausência do outro, do outro que desejamos e que foi arrancado (arrancou-se) da nossa vida. do desespero à raiva; depois à conformação; depois à indiferença. nesses degraus, devo resgatar os pedaços rasgados e os reintegrar a um novo corpo. porque ele me manteve no escuro e se despediu sem nenhuma palavra de carinho. eu rasguei sua dedicatória e coloquei seus papéis no lixo reciclável. a mais triste tristeza é esta em monólogo. o silêncio e o escuro: ainda não sei o que fazer neles. ainda estou no subsolo do desespero.