Cartas a uma jovem bicha - conversações

Preciso de tua ajuda. Gostaria muito que tu reapresentasse teu trabalho. Por várias razões, primeiro porque nos falta estudos sobre gênero e sexualidade, segundo porque teu trabalho é politicamente engajado (portanto, peço que mostre imagens que realmente tire o sexo desse pedestal do que não se comenta).

Bem, aceito o convite, claro.
Será um prazer!

Ai, que bom, que bom mesmo que aceitaste o convite. Mas não é pra observar os cânones... Enfim, é algo explicito mesmo.

É pra ser algo explicíto? Afffff, vai ser babado!

Desculpa a demora em te agradecer, mas muito obrigado pela coragem, pela desenvoltura. tava muito feliz com tudo, com o frizzon que teu certo "anti-academicismo" causava; porém, quando cheguei em casa e lembrei que na avaliação deles terá (bom, essa parte logicamente é confidencial) um trecho do Triângulo das Àguas do Caio Fernando Abreu onde um dos personagens narra que relação entre homens é cu e cu é merda - puxando o a referência da Mary Douglas em Pureza e Perigo -, fiquei um pouco receoso porque acabamos desde a fala da G MAGAZINE ( com a referência a iconografica S&M) depois a tua apresentação com um certo olhar ainda exotizante sobre o homoerotismo...O que quero dizer... será, pensando na máxima antropológica, que realmente FAMILIARIZAMOS O ÉXOTICO?

O que é exótico? É exótico pra quem? em quais circunstâncias? Enfim, discordo da "máxima antropológica" de familiarizar o exótico, isso porque o familiar nunca será sempre familiar e nem o exótico será sempre o exótico, não importa o estudo e as abordagens que façamos. Estudar homens gays bebendo urina na internet vai ser familiar ou exótico para as pessoas, assim como fazer etnografia entre índios também será familiar ou exótico. 'Familiar' e 'exótico' como categorias analíticas não têm muita funcionalidade, do meu ponto de vista. Me incomoda um pouco esse imperativo, mas concordo que cada área do conhecimento tem seus cânones e suas prerrogativas. Mais: esses usos dos corpos que apresentei, essas representações disponíveis sobre homens gays, por exemplo (que estão na G Magazine, em 'homem é cu, cu é merda' do Caio F.), elas são objetos de estudo acadêmico exatamente para mostrar que essa categoria a que damos o nome de 'exótico' é totalmente arbitrária. Eu deveria, então, ter começado pelo final, isso porque eu iria falar que aquele jeito de ser homem gay - 'exótico', demasiado "macho mijador" - é uma performance de fachada, "pros outros verem", é uma representação possível e disponível de masculinidade gay que, nem de longe, é alcançada a mantida por todos a todo tempo. Também questiono essa exotização - o processo de tornar-exótico, tornar-diferente - ou ainda o tornar-abjeto, o tornar-repulsivo, o tornar-impensável (que um homem beba a urina de outro em uma latrina.... e que publique na internet!!). A partir de que parâmetros tornamos um corpo, uma sexualidade exótica? em relação a que ou em relação a quem? em quais condições? De todo modo, tu me perguntas, então: de fato conseguimos (ou vocês conseguiram, ou tu conseguiste) familiarizar o exótico? Em resposta, como bom deleuziano que sou, faço uma pergunta ao avesso: se nós conseguimos (vocês conseguiram, tu conseguiste) fazer com que, por exemplo, algum daqueles alunos EXOTIZASSEM seus próprios corpos, seus próprios gêneros e suas próprias sexualidades? Se sim, as próprias categorias de EXÓTICO e de FAMILIAR estarão profundamente desestabilizadas nesses alunos, e isso vai refletir no modo com que eles fazem pesquisa - e no modo com que eles lêem Weber, Giddens, Marx, Rabinow. Do meu ponto de vista, pra que a "máxima antropológica" de familiarização do exótico seja levada a efeito, ela sempre (SEMPRE) tem de vir com a recíproca de exotização do familiar. Se não, corremos o risco de colocar tudo no registro do familiar, daquilo que compreendo racionalmente, daquilo que não estranho, daquilo que me é comum e, no limite, acabamos por ser indiferentes em relação àquilo que familiarizamos. Pense: se algum daqueles guris da aula sentiu-se exotizado em sua masculinidade ao ver aquele vídeo, não estaria a própria categoria de exótico, associada à sexualidade homossexual, implicada numa familiarização? Mostrar as múltiplas maneiras de viver o prazer com o corpo, de representar esse prazer e esse desejo - algo que eu acho que vocês fizeram - múltiplas formas de ser homem e de ser mulher desestabiliza aquilo que tomamos por exótico: se há tanta coisa exótica, será que eu mesmo não sou, no limite? É quase como o conto "O Alienista". Considere ou desconsidere minhas palavras. Sou uma outra coisa - qualquer coisa, inominável -, não um antropólogo. Posso estar dizendo coisas fúteis e superficiais para quem pertence a essa área do conhecimento, eu lançando questões risíveis. E se eu estiver, te autorizo a rir de mim, hehehehe!

Ai.... Como começar? Bom, primeiro é dizer eu que não me fiz claro como deveria, tampouco, fiz jus ao legado antropológico. A máxima do meu campo é sim, essa inevitável via de mão-dupla, "estranhar o familiar e familiarizar o estranho (ou exótico)". E tal reflexão se encontra desde os nossos, por assim, primeiros "manuais" de formação e é repetido insistentemente (a título de exemplo pode-se falar do Roberto DAMATTA em Relativizando: uma introdução à Antropologia Social ou mais claramente ao Gilberto VELHO em Observando o familiar). Portanto, não estamos meeeesmo em direções contrárias na produção do conhecimento. Só fiquei um pouco preocupado, é que pedagogicamente (não sei se o termo é bom) instauramos todo um bombardeamento de assuntos que tangem o homoerotismo que sempre culminavam em práticas ainda mais liminares. Então, numa dupla-negativa podemos ajudar a fortalecer a estereotipização de sexualidades não-heteronormativas como, por exemplo, necessariamente vinculadas no limite a sadomasoquismo ou correlatos.Tua apresentação isoladamente, portanto, nos leva a estranharmo-nos/ familiarizarmo-nos de maneira muito salutar; entretanto, quando penso na trajetória acumulada dessas representações na disciplina suspeito de possíveis efeitos colaterais. É claro que ao suspeitar acabo por pensar essa turma alheia ao que referi acima como práticas limares... E como disseste, liminar para quem? Em que situação? Será mesmo que todos ali são alheios ao mundo que narravas? Ou seja, meu esforço aqui é para dar conta do que nos é exigido ao construir representações para uma audiência especifica (ou falar dentro de uma comunidade de sentidos especifica, que nem é a comunidade antropológica, mas seu embrião). Na real, é um esforço para que o discurso sobre o político que há no fazer acadêmico vá além. Enfim, obrigadão, me ajudou muito.

oi!
tava lendo uma matéria no le monde sobre o aniversário do Lévi-Strauss e lembrei de te responder, hehehe
foste ontem no DaMatta? Eu queria ter ido, mas não rolou.
sobre o caráter exótico das práticas homoeróticas, que pode ser um "efeito colateral" das discussões feitas ao longo da disciplina... bom.... isso é tão difícil de agarrar, de controlar. Como avaliar isso? De fato, é algo que eu tb me pergunto quando vou aplicar prova pros meus alunos. É doido isso, mas eu acho que o importante é colocar a questão pra ser discutida, e não simplesmente não falar nela. Enfim, meu "anti-academicismo" passa muito por ae. É claro que a gente tem que se questionar sobre como, por exemplo, as discussões sobre sexualidade são feitas na academia. Mas eu acho importante que as discussões sejam feitas. Pouco tempo atrás isso era impensável. Sobre os efeitos. O binômio ensino-aprendizagem é tãããão insondável... Sabe-se lá o que a turma acumulou ao longo das discussões. Mas o que acho salutar - o que me orgulhou muito, me lisonjeou, me envaideceu - foi o fato de a minha pesquisa, bastante pouco etnográfica, pôde ser apresentada na antropologia. E eu acho que esse contato com diferentes maneiras de produzir conhecimento, tanto da minha parte quanto da parte dos alunos, é sempre bom. É claro que algumas críticas e desprezos são sempre lançados, de uma direção para outra mutuamente, mas pensemos que isso seria impensável há um tempo. Como tu mesmo sabes, há professores aí na antropologia que não concordam muito com essa interdisciplinaridade; há vários aí que são "essencialmente puristas". O intercâmbio, por si só, foi ótimo!!!

Peço pro tempo correr.

Essas mal tecladas linhas... só pra dizer que eu desejo muito honestamente que essa semana passe, e que chegue a outra, e o próximo mês, e o próximo ano, com suas respostas, portas fechadas, novas e velhas alternativas. Mas, por favor, com o direito à paz, direito a chegar à noite sem a tensão do dia seguinte, sem a obrigação de mais um página escrita e mais um texto lido, sem a obrigação de mais uma aula dada, de mais uma palestra, mais um seminário, mais uma oficina, mais uma reunião. Sem a obrigação de tomar decisões. Deitar no sofá e só apertar no botão do volume. Sentar em frente ao computador e só clicar em conectar. Sexo: aqui, acolá, com ele, com eles, com eles e elas, mas sem a obrigação de atuar como ator pornô. Sem a obrigação de ser super, de ser relevante, de dizer ou escrever coisas inteligentes. Porque não digo, nem escrevo: me esforço, me concentro para dizer e escrever é por isso que me consome tanto essa obrigação. E quase nunca consigo. Só o próximo final de semana, mais uma semana, mais um mês, mais um ano: sem obrigações.

Ingênuo

Eu só queria que desse certo.
Perdão, errei.
Mas tu também não foste o que eu esperava.
Vá, então, nem penso em querer novamente.
E se eu pensasse, seria tão bom quanto nós queríamos?
Pois vá, nem quero. Nem queremos. Nem quiséramos.
Era isso né?
A gente se fala.