[...]enha com chorumelas", disse meu pai. uma figura contraditória, o meu pai. capaz de melindres e mágoas por um 'bom dia' mal dado; capaz de gritos e tapas por um riso atravessado. oscilante entre picos de fúria e vales depressivos. numa dessas oscilações, me disse que eu tinha que aguentar. me disse que ele já havia passado por um momento parecido mas talvez pior, pois ele tinha filhos para sustentar; eu não. (engana-se, contudo: tenho filhos que sustento, que apoio, que levo no colo, que educo. tenho filhos.) "/Acho que todos habitamos elas, vez ou outra. Nossas próprias ilhas desertas;/" é, habitamos. enquanto estamos ali, choramos um pouco. uma ilha deserta é o sonho de separação dos grandes continentes, dos grandes blocos de afeto prêt-à-porter. entre tantos, escolhemos afetos como compramos em lojas de departamento: afetos que cabem no nosso corpo mas que não são feitos para nosso corpo. são feitos para muitos, para todos, para as massas, mas não para nós nem para aquilo que desejamos do mundo. habitar uma ilha deserta é resistir à incorporação pelos grandes continentes; é separar-se; é colocar-se à deriva das grandes capturas e assimilações. habitar ilhas é não comprar afetos, mas produzi-los. por outro lado, tom hanks, em "Náufrago" (cujo instigante título em inglês é "Cast Away", isto é, o personagem foi literalmente "jogado para além", separado, posto à deriva) nos ensina a separarmo-nos das próprias ilhas. com o eventual preço da própria vida, é verdade, mas a lição é bárbara: "/Vez ou outra é interessante se lembrar disso, saber que a ilha é um refúgio provisório, não fixo./" adoro cavocar, esgarçar, esmilinguir ou artesanalmente tecer significados inesperados de grandes produtos da indústria cultural; exercício de grande valia, pois mostra que somos dotados da incrível habilidade de comprar entretenimento feito para muitos, para todos, para massas e, inobstante, separarmo-nos dos grandes continentes mesmo ao consumi-los. "/Saber que as palavras uma hora voltam."/: sim. prevendo suas idas e vindas e voltas, eu as tatuei em mim todo (nas duas pernas, nos dois braços e antebraços, sobre os ombros, na região sacra e bem na entrada do coração - essa última é um segredo que poucos conhecem). coloquei-me entre aspas e escrevi na pele as palavras que de mim não vão embora. algumas delas são "eu, astronauta lírico". meu pai jamais vai entender como e por que eu sou um astronauta lírico. ele vai sempre achar que meu lirismo é chorumela. eis um grande continente do qual me separei: meu pai. lembremo-nos que há arquipélagos: conjunto de ilhas, grupos de ilhas, complexos de ilhas, amontoados de ilhas separadas dos grandes continentes, sonhando serem astronautas. que venha todo o silêncio sem palavras, que venha tudo o que não cabe em palavras, que venha tudo o que na minha pele inscrito não se esgota ali, que v[...]
[...]erno que vivo. "Ou nas oportunidades que você negou e/ou abriu mão pra estar hoje onde está." todas, viu? eu lembro, não faz muitos anos, eu fazia planos e projetos de vida, pra vida. talvez eu já esteja velho demais muito cedo, e talvez tu seja jovem demais e muito resplandecente, mas à medida que a idade avança a gente começa a ter uma dimensão da existência que é assim: "quando eu fazia planos e projetos...." distanciando o eu de agora (que não não faz planos nem projetos) daquele outro. somos arrastados por alguma coisa, algo nos morde e nos come, nos mastiga e não engole; ficamos ali, sendo ruminados. eu neguei muita coisa pra estar onde estou. das negações mais vergonhosas da minha vida está a de não ajudar um morador de rua cadeirante a atravessar a rua. passados 11 anos dessa circunstância, às vezes eu não consigo dormir pensando que recusei um pedido de ajuda. me sinto feio, sujo, indigno; tento reparar meu crime me inflingindo uma pena. mas continua sendo feio em mim, continua sendo sujo em mim, continuo sem honra. se estou onde estou, estou com vergonha. aí tu segue dizendo: "Não seria exagero dizer que tu mudou minha vida pra melhor": seria. cada ser vivente que atravessa teu caminho é uma bifurcação, é um divisor. se pro bem ou pro mal, não interessa: todo ser vivente nos divide, divide nossa história, quebra quem somos, faz a erosão do rio por onde desaguamos. eu não tenho o poder de mudar a vida de ninguém. se tu mudou a tua por mim, este é um feito exclusivamente teu. e tu merece aplausos. porque as pessoas em geral não desejam e não se deixam mudar por aqueles quem encontram; as pessoas resistem e lutam contra isso. é exagero, sim, dizer que eu mudei tua vida pra melhor, pois o único quem fez isso foi tu mesmo. e me sinto feliz em presenciar o cúmulo da tua beleza: alguém que muda sua vida em homenagem ao outro."Tem gente do outro lado que te admira pra caralho e sente por tu estar triste nessa hora." .... os momentos mais difíceis pelo qual tenho passado são aqueles quando eu fantasio que posso ser assassinado por um ex-aluno. são os momentos quando eu fantasio que o mundo vai se tornar tão perverso e cruel que alguém a quem eu ensinei (ou tentei ensinar) vai apontar o dedo e dizer: espanquem até morrer. eu entendo a raiva inerente de alunos em relação a certos professores, mas estou falando de outra dimensão: como é possível mandar matar, ou deixar matar (o que é pior), aquele que um dia cuidou de ti? tenho pesadelos em imaginar ex-alunos, com quem converso e brinco, em relação a quem respeito a existência e dou direito a voz, possam deixar que me torturem com choques elétricos ou pau de arara. eu cuido de cada aluno/a que tenho e não faço mal a nenhum/a delas/as; eu os/as quero bem. se são vagais, desinteressados/as, se desprezam o que eu faço e o que falo, respeito; enquanto se quedam comigo, eu os/as cuido. meu maior medo é que aqueles/as a quem dispenso meu cuidado me ofereçam à morte bruta. meu maior medo é o cinismo daqueles/as a quem dispenso meu cuidado. num mundo como o de hoje, não parece óbvio que isso pode acontecer? que qualquer tipo de tortura seja imposta a quem compartilha afeto? estou me sentindo sozinho por esses dias, e não ouço essas pessoas do outro lado que me admiram, como tu diz. tenho estado um pouco surdo às reivindicações de quem me ama. nem desistir / nem tentar / agora tanto faz / estamos indo de volta pra casa. sempre achei esses versos os mais tristes das músicas que ouço. quem está indo? pra qual casa? não tentar e não desistir é estar neutro, paralisado, apenas deslizando pelo caminho já aberto que te leva para o lugar já conhecido. e mesmo assim me dá uma dor no peito ao imaginar que eu posso estar indo de volta pra minha casa acompanhado, com alguém cuja mão eu seguro, eu aperto. eu não estou sozinho ao voltar pra casa. e eu não estou sozinho na tristeza - não porque há outras pessoas tão ou mais tristes, mas porque simplesmente HÁ PESSOAS comigo, como tu. não lembro de anos tão tristes na minha vida, mas também não lembro de manifestação de carinho tão sincera. por isso eu sou grato, por isso eu não desisto e continuo tentando voltar pra casa. minha casa não é o inf[...]