olá, ghost.

por quê? por que se recolocar em rota, atravessar a zona, passear pelo meu olhar? sofrimento: capítulo dois. e eu amei. eu me refestelei de novo na vontade de estar em ti, por sobre tua pele. não quero ser a sombra da tua sombra; eu quero ser o corpo ao teu lado, tua companhia, o sorriso que sorri antes e depois de ti. [o trem é meu amigo, não posso odiá-lo.] não durmo. sonambulo na expectativa de um encontro, reencontro, novo encontro, num outro tempo, numa outra vida; teria visto em mim outro homem? eu preciso dar um destino para a força do que sinto. o que sinto é meu, minha habilidade, minha capacidade. o que isso me permite fazer com a vida; a cada convite para me desacomodar eu digo sim, sim. eu digo sim para me rasgar. eu usava roupas de tecido sintético quando nos conhecemos; eu brinquei com fogo; a roupa queimou e grudou na minha pele, chamuscada; eu te arranco de mim como tecido sintético em chamas. o que eu faço com essa força? [o trem é meu amigo, ele carrega pessoas vivas.] eu vou matar o tecido sintético queimado, arrancado da minha pele, pedaços chamuscados do que queria de ti e contigo. eu vou matá-lo como se matam todas as belezas. eu vou assassinar os pedaços sintéticos queimados de pele, da pele que encostou em ti. vou trancá-los num caixote de vidro. sem comida e ser ar. vou matar essa força por inanição e por asfixia. não vou dar de comer, não vou dar de respirar. [o trem é meu amigo, ele é o retrato de são paulo.] por quê? depois de ti só sobra meu corpo sem pele, em carne viva, viva, viva.

 [...]tei no chão do apartamento vazio. nenhum móvel. só o som dos trens indo e vindo. a coluna toda aderente ao piso. a cabeça pesando no décimo quarto andar pela gravidade que era, sem dúvida, maior que no nono. senti que tinha todo o tempo de uma vida para tentar ser feliz naquele lugar. levantei com esforço a cabeça do chão pra ver a paisagem: até a cantareira. eu estava ancorado ali. o teto mexia em redemoinhos que, percebi mais tarde, eram futuros problemas oftalmológicos. eu não flutuava, nem dissolvia. eu era uma das rochas oceânicas que permanecem através de eras, afundam navios, destroçam submarinos; uma das rochas oceânicas onde moram gerações de corais, peixes e moluscos, nobres e plebeus, sagrados e profanos. eu com toda a força de alguém que não sabe o que quer, mas quer. eu com todo o peso de quem tem o que carregar e oferecer como dád[...]

 olá, ghost.

hoje passei por uma das ruas onde nos despedimos. foi uma despedida à noite, escura, fria. evito a qualquer custo, a qualquer distância, passar pelos mesmos pontos onde coabitamos. escolho a outra calçada, a outra rua, o outro bairro. fujo, mas te reencontro como ghost em cada paralelepípedo. evito a lembrança. evito a possibilidade de cair em um túnel e ser arremessado de volta para o momento em que estávamos lado a lado, se olhando, se escutando, se tocando. sinto ser possível que o arrebatamento, que o encantamento que senti possam ter grudado, impregnado, se enroscado em cada paralelepípedo. desvio. mas sei que te procuro. como um cão que fareja: estou no teu encalço. escorei numa varanda de onde se vê a vista que te salvou, te curou. de fato, é como ter um mundo feito de tapete em concreto. e o céu tocado pelas pontas dos altos prédios, por onde passa o sol todos os dias. muito sol. não considero aquela vista curativa, nem salvadora. admito, porém, que olhar a cidade de lá é um aconchego. há tanto o que viver aqui. quis comer a cidade com uma colher, como quem a enfia com furor em um tiramisù. quero comer esta cidade em colheradas. e o trem da cptm passa bem ali embaixo. e acho que isso, sim, pode me salvar de ser Anna Karenina. é porque tem gente ali dentro. é porque assim não me sinto um fantasma no mundo. é porque hoje descobri que ser sozinho não é o meu maior problema. nunca foi. tua presença, ghost, é uma lacuna, um buraco. de todos, aquele com mais espinhos. hoje meu coração disparou e foi de tristeza. não foi de angústia, nem de pânico. foi de pesar. entristeci com o vazio. há um vazio, uma ausência. um lugar que não ganha sentido, nunca, que permanece vacante, que recusa preenchimentos e distrações. não porque estou sozinho, mas porque fiquei diante de uma parte, de um lugar que é vazio: um buraco em um paralelepípedo. sozinho eu me ouço; no vazio, entretanto, só há ecos.

 então vamos falar as merdas? ok.

vou gritar mesmo, esculachar, cuspir nessa bosta de prédio, não serve pra nada de tu está dentro, eu sempre disse o que queria, O QUÊ?, eu sou uma pessoa honesta, eu te queria e tu não me quis, eu respeito isso, não rolou, mas não precisava ser escroto desse tanto, que merda caralho, e esse lixinho que tu carrega contigo, ixi, não chega nem aos pés de que a gente imaginou que poderia ser junto, e mesmo assim tu vem me esfregar essa bichinha na cara, seu escroto sem alma, eu nunca disse isso, acho que tu me entendeu mal, para, calma, vamos conversar, não foi isso, me ouve, mas não, como?, queria sim todo teu corpo, teus beijos e companhia, mas agora teu rosto já se esvai, não lembro da tua pele, como era?, era bom mas era caro, cala a boca bicha nojenta, não sou assim e não fiz isso, larga do meu braço se tu quer falar comigo, não seja estúpida, e o bafo do cigarro que tu tem me enlouquece, beija aqui e isso beija mais, sua merda escrota me deixou num apagão emocional, essa bosta desse prédio, GRITO CONTRA O PRÉDIO, porque é feio e sombrio, todo dia vou jogar lixo no prédio, não admito que tu diga que foi por pouco tempo, que nem valeu a pena, que podemos recomeçar de outro jeito, não vou, não admito, não sustente essa mentira, flácido e macio É A BOSTA DO TEU PRÉDIO, eu malho e pode não estar fazendo efeito agora mas vai fazer aí tu vai te arrepender, não me responda. não me reSPONDA. NÃO ME RESPONDA. tu nunca disse nada do que sentia, pensava ou queria, eu fiquei num apagão emocional. não. não. eu seguro. não vai. eu sei. nem um beijo?

 [...]nterrei pontas soltas. sujas de terra. enlacei uma e outra numa tentativa de amarração. esvaziaram-se sem vida. viajei, voei. busquei um esquecimento, qualquer que fosse, de ti. sonhei e não entendi o sonho. bebi. carreguei comigo essa bola murcha. não é de quilômetros que é feito o desejo que tenho. desfiz-me na água do mar. não é de carne que é feito o desejo que tenho, nem de sangue, pois nenhum tubarão me mordeu. detesto areia. colocaria azulejo em toda a praia se prefeito fosse do lugar. nadei e dormi lembrando de ti. lamentei que não estivesse comigo. o sal, o sol, as ondas e a cozinha lamentaram também. disseram-se que foi melhor assim. tive medo de cair do trigésimo andar. mas o trigésimo andar me prometeu que não me empurraria. duas pontas soltas sem v[...]

 [...]ero que sejas bem feliz junto do teu novo rapaz. faço votos de que goze bastante, ria bastante, caia de boca nesse arrebatamento que é ser reconhecido por quem estamos apaixonados. parabéns. concordo, gozar na cara é mais gostoso. que bom que se gostam. é. nossa, que rápido, né? parabéns mesmo. é, eu também acho: há algumas pessoas que passam pelas nossas vidas para ser degraus, elevadores, andaimes, catapultas. aham. é, entendo. imagina, nenhuma. ofendido eu estaria se tu não soubesse quem eu sou. é, né? verdade, sou uma pessoa muito de boas. não sei se tu te importa em eu perguntar, mas pra que perder tanto tempo comigo, então? sim, foram vários dias, várias horas. lembra? não, eu estava usando óculos e uma malha. estava frio e botei um casaco pesado. lembra? não, nunca fomos a pinheiros. não. eu subi direto pro teu apartamento. estava frio. é. eu preparei um cousz cousz com amêndoas, cebolinha, páprica. mas tu me disse que não comia peixe. lembra? ah, entendi. é. a vida passa, sim. aham. meu trabalho tá legal, acho que vão renovar meu contrato. não, ainda não fui à europa. tá difícil, né. o euro ao preço que tá. entendi. nunca mais voltei no parque buenos aires. porque não quero, não faz sentido, tive pouco tempo. isso, muito trabalho. não é no capão redondo, é no campo limpo. tu tem certeza que sabe qual é o meu nome? foi só uma piada pra ver se tu tá acordado. é. sei. então, menino, fiquei com uns guris aí, mas na maioria das vezes não rola. tu sabe bem como é, quando não rola, né? estar com quem não rola é brochante. não é? é. verdade, um dia aparece. príncipe? é. um dia ele vem. não to mais morando lá. mudei pra barra funda. não, eu morava perto da paulista. ah, é, mesmo? que bom, ótimo bairro. tranquilo pra um casal morar. aham. daqui a pouco serei feliz, seremos todos. oxalá. aham. obrigado. imagina, nenhuma. pra ti também. tenho certeza que sim. tchau.