Um texto sangüíneo

Eu queria escrever umas palavras fortes, um texto sangüíneo. Quando me sentei em frente à folha em branco eu quis poder falar de umas sensações profundas que me acometeram nos últimos dias. Quis falar dos presentes que ganhei, dos dentes brancos que admirei, dos elogios que escutei, dos incômodos que senti, dos quilos que perdi, das promessas que guardei, de uma certa parte de mim que se foi e de um outra – umas outras – que a mim foram anexadas, que por mim foram absorvidas. Meu compromisso era com a relevância do texto, era com seu peso emocional.

Ora, palavras dessa envergadura não são facilmente escritas. Eu posso tentar dizer que trago uma mágoa, um desapontamento. Ou muitas decepções. Posso tentar dizer que aqueles que nunca lerão – ou que nunca entenderão – isso que escrevo agora são aqueles que mais me frustram, mas também aqueles que menos têm de mim. São aqueles surdos que nadam em suas próprias vaidades de sunga apertada, explodindo gordura trans, os surdos que não entendem Libras, e que não entendem porque não querem. Esses surdos que infelizmente não são mudos, que falam sem escutar, que só escutam aquilo que vêem, e só vêem aquilo que lhes falta. Posso tentar dizer da decepção em ter de escutá-los, da decepção em ter de vê-los. E logo minha decepção se transforma em irritação, em desprezo, porque não me é compreensível a pequinês e a vileza das sungas desproporcionais em corpos incoerentes. Sunga que cobre parte mínima deste corpo, que cobre suas “vergonhas”, mas que deixa à mostra uma outra infindável cadeia de absurdos grotescos, de atitudes mesquinhas, de palavras venenosas; sunga inútil em cobrir a “vergonha” daquilo que se pensa que é, daquilo que se pretende pretensiosamente ser, daquilo que jamais será porque desde já é cretino. Minha frustração, mais que com suas sungas e suas gorduras trans, é com sua incapacidade de pôr o roupão, secar-se, trocar-se e desaparecer. Desapareçam, surdos vaidosos! Desapareçam!

Mas eu também trago lembranças de olhos bem abertos, azuis, e dentes brancos. Lembranças de carnes duras, de pele alva, cabelos finos e macios, de tenra idade. Ingenuidade? Não quero acreditar. Prefiro a transparência da pele que deixa entrever as veias doces azuladas sobre uma leve camada avermelhada de tez às vezes envergonhada. Lembranças que puxo da minha memória como que para me presentear depois de um dia cinza, depois de um dia úmido, lembranças que me dou de presente na hora de me deitar, que são pequenas indulgências, pequenas gentilezas que faço para mim mesmo para que eu durma melhor e sonhe melhor. E a partir das lembranças que me presenteio vou sobrepondo versões novas para experiências antigas, vou justapondo uma às outras de modo a criar sonhos completamente novos e absolutamente falsos. Não me dói sua falsidade, todavia. Das lembranças de olhos azuis e dentes brancos construo sonhos de noites geladas e compartilhadas, de toques sinceros e secretos, o que me dá um conforto sem igual quando é chegada a noite e preciso, então, inventar momentos almofadados em que minha consciência pode respaldar-se. Já que das lembranças de olhos azuis só vêm, na maioria das vezes até hoje, asperezas sutis de quem se deleita na sua crueldade.

CONTINUA......

O(s) Cara(s) dos Azulejos

O Cara dos Azulejos está aqui em casa. Ou melhor, Os Caras dos Azulejos, pluralizando tudo.

Seu companheiro é seu exterior constitutivo: se o Cara dos Azulejos é bonito, seu companheiro é feio. Se o Cara dos Azulejos é magro, seu companheiro é gordo. Se o Cara dos Azulejos é jovem, seu companheiro é velho. Se o Cara dos Azulejos é séquissi, seu companheiro é brochante. O Cara dos Azulejos só adquire sentido quando visto simultaneamente ao seu companheiro. O que um é o outro não é. Só mesmo em conto pornô de revista gay que acontece de os dois Caras dos Azulejos serem séquissis, ao mesmo tempo e de maneira sobreposta, porque na vida nossa de cada dia temos que lidar com toda essa borda de seres antípodas, de seres que não são, de seres que se opõem e se afastam.

Os problemas gerais desta intervenção dentro dos meus limites não são estes, todavia. Os problemas são a posse do meu banheiro e a pretensa revitalização das minhas paredes. Em primeiro lugar, co-habitam dois homens no meu banheiro já há duas horas. Pode parecer gostoso, mas é péssimo porque onde, ó raios, eu vou mijar? Abalei-me ainda há pouco até o andar térreo do prédio para poder fazer xixi. Elegantíssimo, aproveitei a desculpa de ter sacos de lixo para levar para a lixeira comum do condomínio para, de maneira discreta, utilizar o banheiro das áreas comuns do prédio. O problema do xixi estaria parcialmente resolvido, contudo, se Os Caras dos Azulejos não fossem plurais, mas singulares. Mas prefiro não cogitar essa hipótese e manter a discussão em torno da posse arbitrária da peça mais imprescindível desta humilde casa pequeno-burguesa de classe média gaúcha do fim da primeira década do século XXI. Em segundo lugar, quem disse que minhas paredes precisam ser reformadas? Onde está escrito que qualquer parede cujos azulejos descolam precisam ser objeto de preocupação? Esteticamente, os espaços vazios de azulejos não podem ser uma maneira charmosa representar que tudo aquilo que não faz mais sentido pra mim descola-se de mim, cai e estilhaça? Tudo aquilo que através de tensões, extensões, contrações e contradições não combinam mais comigo, não se colam mais a mim, não mantêm mais minha unidade, passam a não mais me constituir e são desarticuladas de mim, desatachadas de mim, descosturadas de mim estão simbolizadas nos azulejos caídos. Os lugares vazios nas minhas paredes, antes de serem lacunas ou faltas, podem ser nós de possibilidades, pontos férteis, fendas de perguntas ininteligíveis que faço a mim mesmo e aos outros, lugares que potencialmente podem trazer mudanças. As paredes descascadas do meu apartamento podem, por isso, ser encaradas como um manifesto político.

Na saída para o almoço, eles prometem voltar. Como eu disse no início, um é o oposto do outro: se um me desvia o olhar, o outro me encara. E me encarando, com um olhar oblíquo de azulejista dissimulado, um deles parece me ser cúmplice de um certo crime contra a reprodução, parece ser suspeito junto comigo de uma certa contravenção dos prazeres. O Cara dos Azulejos, bonito/magro/jovem/séquissi, parece fazer uso dos banheiros em geral para algo mais que a reposição de azulejos que caem.

A máquina desejante e devedora

Fiz duas descobertas de ontem pra hoje: a primeira foi que meu cartão de crédito tem limite de $300, e não de $100 como eu pensava até então.

A segunda, que é a filha da primeira, é que eu tenho sempre mais possibilidades de me transformar naquilo que eu mais detesto e naquilo que mais me seduz: um descontrolado, uma máquina desejante que se afunda mais e mais nas suas vontades como se não houvesse mais volta. E não há, de fato.

Peças soltas de um quebra-cabeças

Quando caiu a noite, tomei mais um banho para esperá-lo. E ele chegou. Nós jantamos e conversamos um pouco. Ele tem idéias, tem boa alma. De sorriso fácil, ele constrange minha seriedade. Um bobo, um tolo, um ingênuo, um romântico que, como diz a música, “foi chegando de mansinho, se instalou devagarzinho, foi ficando até ficar”. E fomos dormir, eu e ele, abraçados, de conchinha, felizes pelo fato de não estarmos jogados soltos no mundo como pontas de um quebra-cabeças que começou a ser montado pelo miolo, mas também cientes de que a vida paralela que nos dispomos a levar jamais vai se justapor, jamais será completa, que nem tudo aquilo que um deseja que o outro seja de fato virá a ser, que nunca será como os livros e as músicas se dispõem a contar. Somos peças soltas de um quebra-cabeças, peças que não se encaixam, mas que insistem em permanecer juntas, compondo uma imagem estranha aos olhos dos outros, imagem arbitrária, desafiadora, que causa dúvidas e apreensões, mas que por isso mesmo é bela e cheia de vida. Dei-me por conta que eu era feliz. Foi com humildade e franqueza que aceitamos os limites que nos impomos mutuamente e dormimos tranqüilos para acordar no dia seguinte, prontos para escrever mais um dia das nossas autobiografias não-autorizadas.

Quatro quilos mais magro

Quando eu acordei, me levantei da cama e me olhei no espelho: meu cabelo estava comprido de uma tal maneira que há meses eu não me via tão cabeludo. Minha barba também estava crescida, me incomodava, porque meus pêlos são muitos e são grossos. Escovei os dentes e comi uma xícara de Corn Flakes com granola e iogurte de morango, tendo sempre o devido cuidado de retirar da granola todo rastro das uvas passas (porque uvas passas, pra mim, são o cúmulo da deselegância). Tomei meu café da manhã saudável assistindo à Ana Maria Braga, pois dias antes precisei fazer uma redução drástica na minha grade de canais e não tinha mais outro programa interessante para assistir às 8 da manhã. Quatro quilos mais magro que em fevereiro, me perguntava, ao comer a granola, se era mesmo necessário dar tanta atenção à formas do corpo, ao peso do corpo, à juventude e viço do corpo; me perguntei se éramos somente e apenas aquilo que nosso corpo é. Será mesmo que o avatar da nossa personalidade é nosso corpo? Será que nossa personalidade está encapsulada dentro dos limites da nossa pele? Será que eu sou algo mais que meu corpo, algo deslocado do meu corpo, de modo que eu, Luiz Felipe, sou meu corpo, mas também meu apartamento, mas também meus livros, mas também meus pensamentos e minhas idéias, será que eu sou toda uma extensão energética cujo adensamento e concentração convergem para um ponto exato, e esse ponto é o corpo?

Sonho

Sonhei com um tsunami. Sonhei com um mar revolto que invadia a praia onde eu morava. Minha mãe estava indo para a beira-mar, com seu maiô anos 50 e chapelão, na bolsa um bronzeador filtro 4 da Payot, quando foi engolida pelas ondas de água negra que vinham do oceano. Eu tentei chamá-la, tentei avisá-la, mas ela queria muito pegar uma corzinha. Corri para a casa onde eu morava, eu e meu pai, e subimos correndo para o piso superior. Em poucos instantes a água era tanta e tão raivosa que inundou o andar térreo, e pela janela víamos que o mar havia sido transposto para terra firme. Dava pra ver entre as golfadas de água os corpos mortos das pessoas incautas que foram vítimas da invasão imprevista: os corpos pareciam peças de roupas que tombavam em círculos, como que dentro de uma máquina da lavar. De repente, dei-me conta de que somente eu e meu pai havíamos sobrevivido em todo o planeta daquela catástrofe natural. Abrimos, então, uma pequena janela que dava para um deserto sobre o qual brilhava um sol alaranjado. O cenário era solitário, desolador. A responsabilidade que tínhamos era pesada: iríamos reconstruir o mundo.

Repulsivo?

O dinheiro me abandonou. Pôs suas vestes e deu de costas, seguindo em linha reta, sem olhar pra trás, até virar um ponto difuso num horizonte sem luz. Atravessei o limite da minha conta.

Vocês já viram o preço do pão 7 grãos? $4,19! O preço do leite desnatado Santa Clara, o das vaquinhas? $1,49! O preço do quilo da mussarella? $21,90! O preço do requeijão? Chega a obscenos $4!!!!

Claro, isso pra quem se importa com gorduras saturadas, gorduras trans e com seu abdome tanquinho. Porque pra quem tem simpatia por vermes, cartilagens e pedaços de osso moídos junto com a carne de segunda, a vida é sempre (foi sempre) mais barata. E mais longa também, porque assim as pessoas convivem diariamente com condições adversas, o que faz de seus corpos os mais resistentes. Hoje pela manhã, quando eu estava indo pra faculdade, passei por um morador de rua que estava deitado na calçada, exibindo uma ereção de dar inveja ao Rocco Siffredi. Belo o rapaz, cujo rosto conseguia manter intactos os longos e curvados cílios, as sobrancelhas grossas e a boca carnuda, os cabelos encaracolados, desgrenhados de castanho claro, com uma barba por fazer, apesar da bem provável história de dureza que aquele corpo tem pra contar. E apesar de todos os seus piolhos, chatos e berne que ali se escondiam. Que corpo é esse, meu deus, que a despeito de todas as provações rompe com seus próprios limites e consegue fazer latejar o membro, ou ostentar beleza? Duas vovós que vinham atrás de mim ficaram chocadas. Não sei se com a beleza do rapaz ou com o estado geral de sua excitação, aposto nesta última, porque uma disse pra outra “ai, que horror, não olha! Que horror...” Acho que em toda suas vidas elas jamais pensariam chegar tão perto de algo tão assustadoramente sedutor e, ao mesmo tempo, tão repulsivo.

Repulsivo? O que nos é repulsivo? O que nos é limítrofe, o que nos leva às raias de qualquer sentimento? Pensando mais perigosamente ainda, o que nos leva a atravessar as fronteiras do desejável, do factível, do aceitável, do repulsivo e do abjeto? O que se esconde para além da linha que proibiu a mim ou às vovós de nos deitar ali com o morador de rua, perguntar por seu nome, saber se queria comer, tomar um banho, escovar os dentes, ir pro colégio, faculdade, especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado? Minha sugestão é que, para além desta linha, definitivamente nada disso que recém elenquei está. Porque tudo isso que recém elenquei é o caminho centrípeto das fronteiras, é o caminho para seu interior bem-organizado, e não seu caminho centrífugo, para onde reina o impensável. Porque tudo isso que recém elenquei vai do abjeto para o desejável, direto e sem escalas, e não do desejável para o abjeto. E acredito ser mais interessante pensarmos o quanto tudo isso que nos rege, que nos gesta e que nos administra, todas as normas que, num tom degradê de silêncio, vão do desejável ao abjeto são construídas, contingentes e reversíveis.

Nesse caso, prefiro não dar indícios do que poderia existir para além da linha que fez a mim ou as duas vovós observar com estupefação o corpo indócil daquele morador de rua. Porque, para além das linhas do aceitável, já no domínio da repulsão, é que fica o caos nosso de cada dia, é onde fica o desespero e a delícia de atravessar limites. Prefiro deixar o morador de rua, com sua ereção e com sua beleza, lá onde estava. Admito aqui, com os neomarxistas, que essa frase deixa implícita uma conformação com a pobreza, com a injustiça social e com o capitalismo. Mas ressalto que prefiro deixá-lo lá onde estava para que ou eu ou as vovós fôssemos até ele. Fazer do morador de rua um pós-doutor é muito brega. Fazer as vovós - ou eu mesmo - desposar o morador de rua é infinitamente mais interessante e provocador.

Tudo isso pra dizer sobre limites. Limite negativo da conta bancária. Não é cheque especial, é universitário, mas mesmo assim é o caos e o desespero quando cruzo a linha que separa o – do +.