Retrospectiva da década - fim

São imaginações intangíveis que se materializam, e materialidades que antes habitavam a ordem do inimaginável. São surpresas, dobras inesperadas: doenças que eu ainda não tenho mas que estão vindo, postas num lugar e momento virtuais que me espreitam num dia após o outro; são um vir-a-ser que eu não intuía pra mim mesmo mas que hoje tem uma existência e uma história; são um homem idealizado que eu jamais supus (nunca quis supor) que pudesse existir mas que está ali, atravessando a rua, pedindo pra que eu toque seu interfone. São, talvez, o poder da fantasia, do poder da criação. São, quiçá, a confiança no curso da vida que nos levará ou nos trará aquilo e aqueles que estão lá desde sempre. Sem romances, nem truques aqui: são responsabilidades sobre o que falo aqui.

Retrospectiva da década - continua

Toda a vez que pego um ônibus para fazer alguma viagem intermunicipal eu desejo muito intensamente que eu sente nas poltronas mais afastadas, lá nas últimas já perto do fundo, que ninguém divida o assento comigo e que logo cruzando o corredor do veículo, numa distância não maior que dois braços, um homem bem sexy e safado se sente ali. Nas minhas fantasias, é interessante a impossibilidade do contato físico e o total voyeurismo da cena: os nossos olhos (os meus e os desse homem fictício que adquire tantas feições e carnes quanto minha imaginação é capaz de produzir) se tocam desde a espera pelo ônibus, ainda em terra, seguem durante o rápido embarque e se enroscam quando a viagem começa, numa lascívia à moda de Sade. Suamos sexo e prazer; sexo e desejo, lânguidos. Mas hoje, justamente hoje, peguei o ônibus e me sentei ao lado de uma senhora com sua neta. Esse é pior pesadelo pelo qual eu sempre nutri aversão de um dia viver. E vivi hoje. Mal o ônibus deu o arranque, eu me mudei para uma das 4 poltronas vagas. Amaldiçoei quem está no além escrevendo meu destino. Duas horas depois, já chegado ao meu destino, a surpresa: o homem com quem eu sempre fantasiei viajar junto no ônibus, o homem que construí pelo por pelo, dente por dente, músculo por músculo, sorriso por sorriso na minha imaginação depravada, esse homem já estava aqui me esperando, morando no edifício em frente. Ele surgiu pela porta da frente sem fazer barulho, foi entrando, e me surpreendeu tanto quanto pareceu ser surpreendido por mim: ele arregalou os olhos quando me viu e, em seguida, riu um riso malicioso ao ver meu corpo se erguendo logo atrás da bancada, ali onde ele não me suspeitava. Estendeu sua mão, enorme e com dedos grossos, gesto ao qual eu retribuí com a minha mão também grande, mas com dedos longos e finos: “Olá, prazer, eu sou o ...”. Apertaram-se as nossas mãos, riram-se as nossas bocas, lamberam-se as nossas fantasias. Será pouco dizer que ele se encaixa sem vazios ou apertos, com sua voz e com sua cor, nessa figura estreita e sufocante que minha imaginação criou? Porque se criei esse homem com tantos detalhes que não vem ao caso fazer desfilarem aqui, com tantas tessituras e sabores, com uma história e com um corpo tão específicos (e sempre sem rosto), fiz isso para que esse homem jamais existisse senão no interior mesmo das minhas demandas pessoais, como se ele fosse uma espécie de autossabotagem bem peculiar que habitasse minhas sessões de masturbação cotidianas. Mas se, por uma traquinagem daqueles que escrevem meu destino e que eu outrora amaldiçoei, esse homem de repente se exilasse das minhas fantasias e tomasse vida, num átimo; se ele se materializasse com força e opulência entrando silenciosamente pela porta da frente, usando como passaporte de ingresso apenas seu sorriso de dentes ordeiros; se esse homem estendesse sua mão, que é bem como eu a imaginei, para a minha, essa não é uma responsabilidade assustadora para com ele?

Retrospectiva da década

Acordei com o ronco do meu estômago. Não era apenas fome, mas saudade e nostalgia. Doíam um pouco minhas amígdalas, talvez por causa de uma recente infecção que poderia mudar toda minha vida. Era sempre assim: eu criava doenças pro meu corpo, elegia momentos infecciosos, de desprevenção, mergulhava nesses líquidos e secreções fantasiosas cheias de vírus de todas as cepas e densidades. Saía delas renovado, como que vacinado contra qualquer sanidade. Eu seria sempre um doente em potencial, um hipocondríaco. Mas será mesmo que esse é só mais um caso de hipocondria, ou será algo mais perverso e insidioso que me faz crer que se colocam uma ou outra doenças no meu destino como inexoráveis, necessárias, somente por eu ser quem eu sou?
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Era fim de ano, fim de década. Fiz uma eletrizante e ultrarrápida retrospectiva, não deu outra: me surpreendi com o caminho, com as esquinas dobradas, com os esforços e com os perigos. Acho que, dez anos atrás, se tivessem me apresentado numa bola de cristal o que e como eu sou hoje, eu-ontem se apaixonaria por eu-hoje. Nada narcísico; é que hoje eu sou algo tão diferente, tão inusitado, tão inesperado e inimaginável que eu-ontem se fascinaria com facilidade por eu-hoje (é preciso considerar que o eu-ontem era ansioso e inexperiente, caía facilmente em ciladas e engodos. Talvez eu, eu-agora, esteja projetando nele, no eu-ontem, o que eu-hoje sente por ele próprio: paixão avassaladora). Fui muito mais longe do que eu previra, me espraiei muito mais pros lados, alarguei minhas margens, cresci e adensei. Nunca consegui me ver no futuro, sempre programei meus objetivos a médio prazo. Como um touro, pesado e preguiçoso, fui dando um passo de cada vez – mas quando dava, dava com segurança e vontade. Não me vejo daqui dez anos, não me projeto pro futuro. Talvez essa dificuldade seja um pouco o produto da incapacidade que tenho de me ver como sou hoje. É raro eu parar pra pensar nisso. Eu só vou indo, como touro, aos poucos e com segurança, fazendo minhas medições cuidadosas pra não descansar demais, nem ir muito rápido. Eu daqui dez anos é uma bruma, uma imagem desfocada, um brilho fosco; ainda bem que já consigo me conceber, ao menos, como um brilho. Eis minha principal mudança de dez anos atrás.

O lugar do rei

Há alguma uma realeza, alguma majestade? Sem dúvida, há um reinado esperando seu monarca. Um trono vazio e uma coroa pousando sobre ele, sem cabeça. Uma coroa sem cabeça; um trono sem bunda.
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Uns vacúolos se tornam bolhas e vêm subindo, rompendo a pele. Estouram na superfície e vazam lava feita de sangue. Isto não é um corpo, mas quer tornar-se um; isto não tem vida, mas a deseja. Esta é uma existência que tem desejo, mas que ainda não alcançou a vida.
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Era um desfile macabro: torsos com as vestes arrancadas, pernas seccionadas do tronco, quase nenhum deles tinha mãos ou dedos e suas peles exibiam a mesma ferida em forma de flor, profunda e purulenta. Pedaços ocos desarticulados. Era a composição de um Frankenstein pulverizado em milhões de fotos repetidas. Mas havia uma opulência ali, uma pulsação... Não é certo que tenha sobrevivido.
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O vazio do trono era o próprio rei; erradamente supúnhamos que ele tivesse abdicado da sua coroa, mas estava ali o tempo todo, nos controlando, reinando, governando.

Anjos

No meio do caminho havia uma encruzilhada. Havia uma encruzilhada no meio do caminho. Tomei a esquerda. "Vai, Tadzzio!", me disse o anjo de uma asa só, "Vai ser gauche na vida!". Mesmo sem poder voar com graça, o anjo de uma asa só foi capengando para longe em busca de outro abraço. Na minha barriga, borboletas.
Nos meus olhos, suor.

Aprisionado

Ai, não, dessa fantasia não estou liberto, mas também dela não quero fugir! Não me tire essas fantasias todas, não me subtraia o poder da imaginação. É tão lindo e tão gostoso. A ponto de eu ir dormir mais cedo e acordar mais tarde somente pra ficar no sabor, no gosto, no exercício de fantasiar. Não me liberte disso. Liberte-me dessa merda de ciúme que verte de ti, ou da insegurança que secreta tua personalidade; mas não confisque os momentos em que eu não sou eu, momentos em que eu sou uma outra coisa que eu fantasio, que eu crio e parodio! Não me tire o momento de falar sozinho, de argumentar com meu-outro-eu: esquizo, porém feliz e inteligível. Não sinto falta de ti. Hoje, sentado no vaso sanitário, dei graças a deus por não te ter mais por perto. Não porque tu sejas menos, porque tu sejas ruim, porque tu sejas mau. Mas porque não quero, não combino, não sou da mesma raiz que tu. Me deixe ir, preciso andar. Não me aprisione nessa gaiola que tu criou pra ti. Eu tenho as minhas: elas sempre estão de portas abertas pra quem quiser entrar q pra quem quiser sair.