[...] tudo o que escrevo é uma carta. pequenos trechos, idas e vindas, pulando nos círculos da espiral: debruçando-me no mezanino do tédio, olhando para o andar de baixo com desprezo. tudo o que escrevo é um fragmento de cartão postal para os amigos. um recado de onde estive, para onde gostaria de ir. e continuo indo, me deslocando, saltitando de uma dimensão a outra. mas quem olha de fora me enxerga mais como um touro pesado, um búfalo enlameado, que se move devagar e sempre na mesma direção, com dificuldade nas curvas mais fechadas. babando e bufando. encarando pesadamente o horizonte. touros não escrevem cartas e búfalos não mandam cartões postais. eu mando. posso estar enlameado, mas não sou lento. a velocidade na qual me transformo é rápida demais para os olhos leigos. e vou mandando cartas aos amigos desde os diferentes pontos de paragem dessa minha viagem louca.

hoje meu coração acelerou. que frase bonita, essa. poderia vir entre aspas, pra posar como início de um romance digno do jabuti: "hoje meu coração acelerou". mas não quero, não posso, enganar meus amigos. eles sabem que meu coração não acelera. a não ser com bebidas geladas, com raspas finas elétricas, fumaças perfumosas. e estou santo, estou limpo; não obstante, hoje meu coração acelerou. poderia ser a primeira sentença de um romance romântico, arrebatador. não o meu romance. meus amigos não se deixariam enganar: eles sabem que eu não amo romanticamente. não caio no engodo do par, do eterno, do complemento. sou como uma frigideira que cozinha melhor sem tampa mesmo. apesar disso, hoje meu coração acelerou. terá sido a cafeína? a caminhada? o peso de um passado que me acorda todos os dias com um estridente grito de fracasso?

meus amigos não seriam tão facilmente engambelados. eles são espertos e conhecem minhas estratégias de disfarce - que são poucas, mas funcionam com os leigos. tudo o que escrevo é uma carta endereçada aos meus amigos, e eles entendem cada linha. victor heringer me entenderia; ele me entendeu, entendeu toda a gente da minha estirpe, e decidiu que já tinha vivido o suficiente. tomou pra si a decisão sobre a vida. nenhum amigo meu faria o mesmo. mando cartas para meus amigos porque eu preciso me explicar, explicar pra eles, tim-tim por tim-tim, pra que eles entendam. não sou bom frente a frente, cara a cara, corpo a corpo. prefiro enviar cartões postais, colar selos com a saliva e jogar o envelope num buraco da parede. a distância eu funciono melhor. escrevendo eu me explico, deixo minha fragrância no mundo: escrevo meu cheiro como aquele perfume que fica na última camiseta usada por um falecido. é sangue com notas amadeiradas. jamais cítricos; florais são um acinte.

os livros fechados na estante, eles aceleram meu coração. os pingos da chuva no vidro da janela, os trovões à noite, saldo da conta bancária com mais de cinco dígitos também. dia ensolarado sem nuvens no céu não acelera meu coração. nem dias quentes. o silêncio do meu apartamento, sem amigos que me visitam, paralisa meu coração. o desemprego acelera meu coração. lembranças do passado paralisam meu coração. as cenouras sobre o fogão, à vista para eu não esquecer de assá-las: aceleram. a louça suja na pia pra eu lavar, à noite, antes de dormir: paralisa. quando há uma história ainda a ser feita, a ser contada, meu coração dispara. mas quando algo retém o tempo ou simboliza o fim de um momento, meu coração para. meus amigos sabem: eu vou morrer num dia de inverno, sobre o asfalto. não sou do tipo que morrerá numa cama, numa maca. no momento antes da minha morte meu coração baterá com força. meus amigos entenderão. [...]

preciso deixar a torneira aberta, senão a água limpa não vem.

[carta aos amigos]

ao dobrar a esquina da avenida joão pessoa e entrar na josé bonifácio, eu quis morar naquela paisagem que vi, pra sempre. as árvores (ipês amarelos?) exibiam folhas e flores robustas, que projetavam sombras discretas por toda a extensão dos canteiros. havia um cheiro leve de ano que se aproximava do fim. era surpreendentemente fresca a temperatura apesar do sol brilhante. havia certa luminosidade inclusive na sombra das árvores. isso porque alguns raios de sol atravessam as flores, as folhas, que caíam em arco por sobre a calçada. um túnel verde, amarelo, resplandecente, fresco, me convidava para atravessá-lo. não havia trânsito pesado naquela ponta da avenida. por isso, só percebia um silêncio que deixava transpassar toda a tranquilidade daquele momento preciso, isolável. uma calma tão harmoniosa que se confundia com o asfalto, os paralelepípedos, o vento ameno, a luz e o verde, o cheiro de final de ano. paz, enfim, entre as coisas vivas e inanimadas que faziam possível aquela paisagem. eu quis morar naquele momento.

porque havia um dulçor, uma frescura naquela sombra. uma vida, então doce e levemente fria. era onde eu queria morar, era como o mundo deveria ser pra mim. fresco e doce. não foi por pressa nem por preguiça, mas minha vida tomou outro rumo. meus ombros queimaram ao sol. ardiam. minha pele converteu-se em pelanca. todo meu perfume ou se evaporou ou virou o cheiro forte que exalam os corpos velhos - a velhice tem um cheiro. rolei pela rua. me vi morto. me arrependi de quase tudo. nenhuma tomada de decisão estava certa. eu estou trancado num momento que não vai acabar, nunca. só mais desespero, só mais choro. antes de vir ao mundo eu desfiz minhas ilusões - para aquilo que seria minha vida, minha pessoa, meu caráter e a estima que as demais pessoas sentiriam de mim. mas agora as decepções passaram de qualquer limite. não há modalidade de rancor, de pena, de lástima que não caiba tão perfeitamente em cada segundo que passei na estrada, à noite, sustentando aquela realidade. eles são a medida do arrependimento que pesa amarrado aos meus pés. eu caí e rolei na rua. ninguém me ajudou.

eu sei, amigos: não é sempre que minha companhia é fácil. eu sei: às vezes dá vontade de não me ajudar. eu sei: dá vontade de me fazer sofrer. eu sei, amigos: inclinam-se para que a vida me ensine, pelo mal, o seu valor para que eu, quebrado, constitua o meu próprio. eu sei. é por isso que os mato quando posso. porque querem me ensinar pelo mal. desculpem-me.

o tempo não me passa, não me atravessa. o tempo pra mim é espacial. habito o tempo como quem habita um quarto, uma sala. o tempo da infância foi um quadrado cercado, largo, amplo - porém vazio, úmido. abri uma porta, passei para outro tempo: de paredes espinhentas, anoitecidas, teto mofado, chacoalhado por terremotos - a adolescência. atravessei um corredor longo, estreito, asfixiante: o tempo na faculdade. desemboquei num grande, imenso balcão que dava para um bosque a terminar no horizonte, um balcão de um palácio no qual ventava e o vento, em curvas, uivava nos meus ouvidos - a jovem adultez. de onde caí em degraus de uma escada que só permitia descida: a adultez em si. e a adultez velha, ou a jovem velhice, é este trecho público da rua josé bonifácio num mês de outubro, com árvores, luzes e sombras radiantes. cada tempo tem sua sala.