Surpresas

Eu bato aqui e faz TUM. TUM. TUM. Um soco sobre a pele e faz TUM. TUM. TUM. Oco, vazio. Mas não é um vazio ruim, triste ou solitário. É um vazio que se alastra e engloba tudo, cresce e rompe. Não é triste, nem dói. é um pouco de mim que ficou aí contigo, um pouco da minha surpresa, um pouco da minha ousadia. Eu te dei a minha ousadia e nós aproveitamos. De tudo isso que é oco, de tudo isso que é vazio, de todo esse vácuo absoluto que vem se deitando sobre mim tu é a parte mais bonita e, de longe, a mais preciosa: faz TUM. TUM. TUM quando eu bato no teu peito. E mais uma vez me supreendo contigo - tu, sempre pronto para me sorrir: "não é um vazio, é um músculo que bomba o meu sangue". Eu também o tenho? "Sim, está aqui, ó": e tu bates no meu peito, com os nós dos dedos sobre minha pele: TUM. TUM. TUM. Se eu rasgar meu corpo, tu entras?

Onde teus pés sentem o chão

E ela sai, belíssima, no seu vestido de sereia. O que isso garante a ela? Nada. Sua pele bem branca, seu perfume. Sua conta bancária. Sim, garantem. Minha mão. Minha mão calejada, e a dela? E a sua voz? Taquara rachada. A minha é de barítono. Mas é isso, é real, é essa coisa concreta: essa coisa que nos jogam na cara e nos dizem que esquecemos. “Vocês esquecem que temos que fazer alguma coisa quando um paciente surta”. Sempre temos de fazer alguma coisa, não apenas quando o paciente surta – meu bem! Isso que tu diz pra mim, o vinho que tu bebe, a cerveja que tu derruba nos meus pés, o movimento das tuas mãos, o tom da tua voz, o olhar que desliza: sempre há alguma coisa pra fazer, não é apenas quando o teu paciente surta. Aí quando tu decide ser outro, quando tu mente. E ela? Mente o tempo inteiro – e a gente paga por isso. Mas há algo que me prende a ela, há algo que me liga: uma senha, uma biometria. O que ela fez por mim, por milhões, ninguém poderá fazer novamente. Outras e outros farão, mas por mim, só ela. É difícil dar-se conta que se está nas mãos dessa pessoa tão pequena (não necessariamente baixa). E estou. Só sou por causa dela, mas também sou apesar dela. Somos. Veja: agora eu estou surtando – e o que você vai fazer? Contenção? Aqui onde teus pés tocam o chão, aqui onde a materialidade do mundo chega o extremo, aqui: aqui é onde finco os olhos.

unhas

[...]os meus dedos: minhas unhas sorriem![...]

O peso

[...]minhas mãos. Eu olhei para as minhas mãos, e quantas rugas: rugas nas mãos. Não entendi direito e olhei novamente: rugas nas mãos. Pensei que talvez fosse a luz, a incidência da luz sobre meu corpo, sobre minhas mãos: não, eram rugas mesmo. Mas é que as rugas são isso: dois pontos e explicação. São marcas das dobras, dos sorrisos largos. Sorrisos largos são isso: dois pontos e explicação. Marcas de quem sorriu. Minhas mãos, a pele das minhas mãos, os dedos das minhas mãos, as unhas das minha mãos: eu admiro muito minhas mãos. Tenho apreço por elas. Fazem maravilhas, dizem mais de mim do que minha boca. Falo pelas mãos, como bom descendente de italianos que sou. Mando beijos, manipulo corpos. As unhas, as unhas são muito importantes: corte-as. Guardo uma admiração louca pelas minhas mãos: dois pontos e explicação. São como eu toco o mundo e estabeleço essa ponte entre o que penso que sou e o que os outros pensam que sou. E só fica nisso: dois pontos e explicação. Eu pensando que sou isso e vocês pensando que sou aquilo. Ninguém é o que se pensa, nem ninguém sabe o que o outro é. A coisa toda só acontece pelas mãos. Minhas mãos enrugaram muito nos últimos anos: e olha que um dos elogios que me eram dados era exatamente a maciez e formosura das mãos. O tempo passa: dois pontos e explicação. Se me tirassem as mãos eu não seria nada, eu não seria eu, eu deterioraria. Hoje eu vi um rapaz sem um dos braços empurrando um carrinho de bebê no shopping e ele se dirigia pro banheiro. Fiquei pensando como ele faria pra mijar - ou cagar, que é mais delicado. Sem uma das mãos fica complicado. E ele era tão lindo, tão bonito tão vivo. Tão cheio de vida, de beleza, ele me olhou no olho e sorriu, uma pessoa avulsa capaz de me sorrir e de me plantar qualquer entusiasmo. Ele era lindo, e sua mão que faltava (será que era falta? não! ele era plenamente ELE sem um braço) eu tinha pra dar. Tenho várias mãos: dois pontos e explicação. Sonhei com ele. Sonhei com a coisa boa que ele me plantou nos olhos. Os olhos dele tinham mãos: dois pontos e explicação. As minhas pulsam: se eu parar de digitar, dá pra ver as artérias bombando sangue. A vida é movimento. E tem gente que morre vivendo. Tu estás morto: dois pontos e explicação[...]

Ética do dia de hoje

Treme minha mão, treme. Tremem essas coisas que eu tenho pra escrever, e elas transbordam e caem, se espalham, a garrafa cai e eu bebo do chão. Porque nada pode ser desperdiçado. Lá longe tem uma coisa boa, uma coisa linda, que eu fico olhando e me perfumando se é pra isso mesmo que eu estou aqui, mas eu daria tudo para estar na pista de dança, no som alto, junto do cheiro que mistura perfume e cigarro – eu adoro o cheiro de cigarro, eu gosto do cheiro que fica no tecido. Eu gosto – sim, eu gosto – do non-sense, do vácuo, do momento. Eu fui até lá e vi tudo, me virei e saí de forma elegante. Não tinha como eu me acampar. E não acampei. Fiquei sobrevoando, jogando sementes. Não me interessa saber se haverá frutos, mas só o silêncio e os olhos que deslizam, que não me encaram, ou que me querem, que se recolhem. É tudo, e é isso também: uma vontade imensa de deitar ali, de estar nessa cama que eu recém estendi, de me enrolar nos cobertores e habitar o quadrículo todo, é um pequeno quadrículo, mas de esquentar a coisa toda com meu corpo que não é nem vulcão nem geleira, mas só isso que deita. E que deseja também, mas essa semana eu não desejei – que mentira, desejei, desejei profundamente, aquelas bermudas de futebol, aqueles panos, aquelas camisetas suadas, aqueles tênis de futsal. Tu é muito lindo. Duvido que haja alguém mais apto a te dizer isso que eu. Porque tu percebeste, tu sabes que eu te olho, e tu até me deste tchau. E eu respondi: “OI!”. Não dou tchau a quem eu quero cooptar. Não é feio, nem triste: é morno. A garrafinha de long neck está congelada por fora. E eu ainda nem bebi. E é isso que é legal, ir pra um outro lugar onde o gelo nem se forma e o banheiro é movimentado, ah o banheiro, cada entrada é uma aventura. O hálito que sai da minha boca, esse ar morno com um cheiro estranho, esse hálito seduz. Mas hoje eu não quero muito mais que isso: uma cama estendida, uma televisão, dois travesseiros e uma vontade louca de mergulhar num futuro tão bonito. Tão Tranquilo. Tão Calmo. Tão Eu. Porque eu sou calmo, eu sou muito discreto: não transpareço o monstro que sou. Sou discreto. Um beijo, uma risada: eu vou ficar em casa hoje. Desculpe. Nada mais tem brilho, nada mais tem aparência: tudo se mostra como é. E que crueza é essa, que obscenidade. Obsceno, obsceno o teu eu! Eu deslizo pra esquerda e vou contornando, superando. Minha barba está longa, mas pretendo ir até suas raias. Vamos? Quem vai comigo? Eu queria estar lá, mas já esgacei a calça de moleton, o casaco de lã, a pantufa. Mentira, não uso pantufa: meus pés são gelados desse jeito mesmo porque fico sempre descalço. Eu fico sempre descalço! No verão e no inverno! Porque meus pés são muito sinceros, são o que são, e habitam minha casa – minha casa não é minha, minha casa é dos meus pés (tenho Netuno na casa 4): entra aqui e vê que coisa linda, que coisa morna, que coisa cheirosa. Sorrio e pisco os olhos. Há algo de profundamente novo nascendo em mim, há algo de muito inesperado que eu afogo, que eu encubro e disfarço. E volto pro mesmo medo de sempre. É tu que vai me tirar disso, é tu que vai ver isso e que vai me dizer, que vai me avisar. E eu vou escutar, porque eu escuto a tua voz. Eu vou escutar e vou deixar verter: me ajuda? Eu também te ajudo! Porque eu também vejo isso tudo em ti, e mais e mais, e eu vejo uma sintonia, e eu vejo uma propulsão, eu vejo uma vida, eu vejo uma admiração, um respeito, um carinho que vão muito além do “teu corpo é só meu” ou “tu me esconde coisas”. Eu não escondo nada de ti. E me orgulho de me mostrar assim do jeito que te apareço, do jeito que me mostro – e se me mostro é porque quero ser visto desta ou daquela forma. E tu me viu, que bonito. Que bonito. Tu é muito lindo. E contigo eu sou feliz porque amanhã eu vou poder acordar e trazer um café, um bolo que eu fiz, um pão que eu fiz, uma flor que eu colhi e um beijo que eu guardei pra ti. Nem sempre foi pra ti – em outros momentos guardei pros outros também. Mas agora são teus e eu tenho tanto orgulho de ti aí dentro desse corpo lânguido que se deita na minha cama. Agora chega: vou desligar a luz e dormir com ele. E nesse resto de consciência antes de dormir, eu encaixo no seu corpo (e ele no meu), e a gente pensa em milhares de outros corpos que não são nem eu nem ele, desejamos milhares de outras palavras que não foram aquelas que a gente se disse, mas somente essa cama é nosso denominador comum. Queremos outras coisas, outros corpos, outros beijos e eventualmente conseguimos. A gente vai lá longe e volta; nos Anéis de Saturno e volta. Porque é bom estar aqui – mas é melhor viajar até os Anéis amando alguém que fica.

Moral do dia de hoje

Nunca vi vontade de ficar deprimido que desse mais errado que a minha nos últimos dias. Eu tentei de tudo pra me achar um corrupto, mas não houve ficção que me convencesse. Comecei caindo na sarjeta com um estranho. Fiquei ali com ele um tempo, vendo o dia nascer. Um frio delicioso, e não tínhamos roupas suficientes. A noite que passou fora quente. Convidei o rapaz para dormir comigo, ele não quis. Começou a ter uma viagem interna bem ruim, provavelmente devido ao abuso de drogas ilícitas, e quis sair correndo. Eu me ofereci, então, para levá-lo até a parada de ônibus. Ele entrou onde devia, e eu peguei um outro ônibus que nunca tinha visto antes, mesmo sabendo que eu não tinha dinheiro para pagar a passagem. Apostei que seria jogado para fora do ônibus. Porém, o motorista disse que eu poderia ficar ali na frente desde que não tirasse o lugar de nenhuma pessoa que precisasse. Daí eu fui com esse ônibus até uma zona da cidade que eu não conhecia, que eu não sabia nem perto do que ficava. Casas, ruas e pessoas totalmente estranhas. Pensei que talvez se eu ficasse vagando por lá meio moribundo, um pouco com cara de mau (do que eu julgava ser mau), talvez aí as pessoas me achariam criminoso. Mas uma senhora teve pena de mim, e eu ia passando pela porta da sua casa simples, e ela me chamou. Eu voltei, exagerando na cara de mau, e ela me perguntou meu nome. Eu respondi, meio que rosnando. Ela disse o nome dela e me convidou para um café. O cheiro chegava até ali a porta, onde nós dois estávamos parados com os braços cruzados bem rente ao corpo porque fazia muito frio. Eu não pude resistir àquele cheiro. Desfiz a cara teatral e entrei na casa humilde, onde tomei o melhor café do mundo. Eu agradeci àquela senhora com um abraço bem quente, um abraço que só as manhãs de inverno guardam pra gente. E ela me disse que conhecia um vizinho que estava indo pro centro da cidade por aquela hora e me perguntou se eu não queria carona. Eu respondi que sim. Ela me levou até a segunda casa humilde logo depois da sua, e vi um carro bem antigo estacionado dentro de uma garagem que era apenas um puxadinho de madeira. A porta do carro estava aberta e prestes a entrar nele estava o motorista. Que rapaz lindo! Lindo daqueles de doer de tão lindo, de deixar a gente nervoso, meio anestesiado, com vergonha de falar muito alto senão era capaz de fazer quebrar aquele rosto talhado a facão, toscamente, de barba meio ruiva e meio negra, de dentes fortes, de cílios longilíneos e curvos, de dedos grossos. Ele aceitou me dar carona. E eu aceitei o desafio de me fazer odiado também por ele: vi reluzindo a aliança dourada em uma de suas mãos e armei uma estratégia para seduzi-lo durante o longo percurso que partia daquele nada imemorial onde eu estava até o centro da cidade. Durante o percurso eu abusaria dos meus olhares e dos meus toques no corpo daquele belo homem casado para, então, provocar uma situação de violência, para ser espancado por ele, agredido por ele, xingado por ele. Entramos no carro, trocamos algumas palavras (a voz daquele homem estremecia as partes ocas do meu corpo, que eram várias), e esperei a primeira sinaleira. Pus a mão na sua coxa direita. Ele não se mexeu, e o sinal continuava vermelho. Apertei sua coxa direita. Ele continuava quieto, e o sinal continuava vermelho. Não era possível que ele não faria nada! Abusei: fui deslizando minha mão em direção à sua barriga. O sinal abriu, ele acelerou o carro, eu tirei minha mão por um instante e ele me disse que eu poderia continuar com ela ali onde estava. Eu pedi pra que ele repetisse aquilo, que eu não tinha entendido. Ele me disse que já me conhecia da televisão, que já tinha me ouvido falar em um programa de rádio, que eu era muito mais bonito ao vivo e que eu podia continuar com a mão na sua coxa. Eu perguntei da aliança: era a aliança do pai, já morto, que deu para ele, seu primogênito, para que lembrasse de cuidar da mãe até que ela morresse. Então não havia casamento? Não. E na tentativa de ser odiado, eu acertei minha seta no alvo que eu não queria: o de ser feliz.

E hoje eu também aprendi que ......

É fundamentalmente diferente tirar o pó dos meus móveis hoje do que foi tirar o pó deles quando eu recém cheguei aqui onde moro, há 9 anos. Porque pó, pó mesmo, esse grosso e ruidoso pó que quando cai e assenta sobre meus móveis faz aquele estrondo de madeira caindo, esse pó pra mim não existia. O pó que se coloca hoje sobre meus móveis, camadas arqueológicas de meses sem espanar: esse pó não era pó há 9 anos. O pó de hoje fora rocha, depois pedra, depois pedregulho, depois pedrinha, depois chão batido. O pó de hoje me é totalmente estranho e estrangeiro. Amigos me aconselharam a manter as janelas do apartamento sempre fechadas para que o pó não entre. Meus amigos e minhas amigas não vêm mais me visitar porque as camadas de pó dentro do meu apartamento só me permitem entrar e sair dele, e circular aqui dentro com certa dificuldade. Minha autoestima, por exemplo, precisa dormir na sacada porque não há mais espaço entre as camadas de pó que eu fui deixando cair sobre os móveis da minha casa. Os móveis mudaram de 9 anos pra cá: novas estantes, novas televisões (4 no período de 8 anos, média de 1 a cada 2 anos, sou pequeno-burguês classe média). Novos computadores (6 novos, contando com 2 notebooks). A cozinha foi toda refeita. A área de serviço também. O quarto se mantém pelo roupeiro – que é um dos móveis que mais acumula pó. E a sala se mantém pelo sofá, que é o mais desconfortável que eu conheço. Pessoas fogem do meu sofá só de ouvir falar que ali onde agora se vê marrom já foi branco um dia (não há 9 anos, mas talvez há 11 ou 15 anos). Hoje meu banheiro foi reformado e ganhou rejuntes brancos novinhos. E um novo cano para a descarga do vaso sanitário. Plantei flores nos espelhos, e das centenas de livros que tenho aqui eu fiz quatro pés de uma mesa de centro com tampão de vidro grosso que se apoia nos pés feitos de livros. À mesa sentam até 13 pessoas: minha Santa Ceia particular, com direito a Judas Iscariotes e água em vinho saindo das torneiras das pias, do chuveiro e da descarga do vaso sanitário – pelo menos foi isso que me garantiu o rapaz que veio reformar meu banheiro. Tem coisas que até deus duvida. O teu deus, e não o meu deus ou minha deusa - porque o teu duvida de tudo. O meu deus ou a minha deusa sabe quem eu sou.

E hoje aprendi que .....

É fundamentalmente diferente voltar caminhando pra casa pelo lado da calçada da avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, que costeia o parque da Redenção ou que margeia o comércio, residências dos bairros Centro e Bom Fim. Nunca se encontram os mesmos carros, nem os mesmos corpos. A luz do sol é diferenciada: ela incide mais perpendicularmente do lado do comércio e das residências que do lado do parque. O clima nunca é o mesmo, pois posso escolher chegar em casa suando em bicas ou morrendo de frio. O clima sou eu quem faz e pra isso basta eu escolher a roupa e o ritmo com que quero voltar pra casa. As pedras nas quais eu piso, a folha da árvore que cai no meu rosto: nada é igual àquilo que foi na semana passada, nem no dia de ontem. Porque ontem não me caiu uma folha no rosto: ontem eu não tinha rosto, e nem havia ali uma árvore. Porque ontem eu fiz um percurso por cima dos coqueiros da Osvaldo Aranha, saltando de copa em copa. Parei instantes ali em cima dos coqueiros para admirar o parque, o Auditório Araújo Vianna, e lá adiante o sol que já se punha. O sol estava verde ontem, retangular. Eu estava nu para fazer fotossíntese. Quando cheguei em casa, fui bater uma massa de bolo e distribuí, depois de assado, aos/às moradores/as de rua que se avolumam aqui por perto do Supermercado Zaffari e do Hospital de Pronto Socorro. Fiz quatro formas de bolo. Faria mais se minha cozinha suportasse, mas como conto apenas com um fogão à lenha no meu apartamento de um quarto no bairro Bom Fim, precisei racionar minha vontade de ser caridoso.