"Pós-tu"

Existe esse pontilhado e essa membrana. Eles separam, mas não dividem; localizam zonas, mas não determinam territórios. São menos muros e mais linhas. Regiões fronteiriças, alfândegas, aduanas, espaços de trânsito.

Sinto saudades. Em Português temos um substantivo, “saudade”, para isso que sinto. Em outras línguas há verbos. Eu gostaria que fosse verbo e não substantivo, porque verbo se move e substantivo fica. Verbos podem ser pretéritos e futuros do pretérito; substantivos imóveis no tempo. Não quero que a saudade fique, quero que ela vá embora, quero esquecer. Quero saudade pretérita.

Vestígios? Rastros? Ficaram pedaços de quem na história de quem? Me pergunto qual delas será a primeira a ser apagada e reescrita, qual delas perderá por primeiro seu sentido. Porque eu agora sou um “pós-tu”, algo que veio depois de ti. Não sei se sinto saudade de ti, propriamente, ou se sinto saudade de mim antes de ti, do “pré-eu”. Meu pontilhado se rasgou. Me pergunto quem vai reconhecer o outro na rua anos depois, quem vai sorrir ao lembrar. Qual de nós vai contar a história do outro, qual de nós vai lamentar as linhas que nos separaram. Qual de nós vai ter saudade, no substantivo, e qual de nós vai sentir saudade, na sua dimensão verbal?

Não sei dos meus acordes

Tem gente que grita. Ou que gesticula, que vomita. Eu prefiro ficar quieto e esperar algum sinal, mas não porque eu esteja esperando muito, ou porque aquilo seja muito importante para mim, ou porque cultivo aquelas palavras com adubo em mim, ou porque já as escrevi na história imaginária da minha vida. Eu fico quieto porque sempre pode haver alguma coisa que, por mais que eu espere, me surpreende; e sempre tem. Sempre tem um silêncio que eu aprendi a não segurar porque ele guarda coisas maravilhosas.
E há aqueles que vão embora. Eu já fui embora, muitas vezes, e nunca é dolorido. Teve uma vez, inclusive, que me deu prazer! E mais prazer me deu depois de vê-lo com um par de óculos ridículos: é minha crueldade achá-lo péssimo (e eu o acho). Eu sei que é dolorido pra quem fica, e eu já fiquei várias vezes, mas dessa vez eu não queria ir, eu queria ficar. Ficar na tua vida como mais uma história inesquecível, como mais um sorriso incontido, como mais um brilho... Posso?
Imaginas tu contando minha história! Com teu sorriso e com teu brilho! Eu pegaria emprestado qualquer adorno, qualquer adereço ou qualquer adjetivo, porque pra mim não há – é claro que há, mas é tão mais lindo quando tu me dizes que achas minha vida linda. Pois venha e desfrute, e olhe para mim, e sinta meu hálito pelo amanhecer, e me beije, e rasgue meus cabelos, puxe, morda minha barriga, sorria com minhas cócegas... O que há em mim que tu gostas? Seja o que for, faça disso âncora, faça disso farol, faça disso latitude e longitude de onde tu deves sempre ficar. Porque, sim, eu sei, tu vais embora, tu vais pra longe e não és daqui. Nunca foste daqui. Mas fique mesmo assim um pouco cá comigo, deixe algo de ti, nem que seja um ‘x’ no mapa. Faça de mim um ponto no teu mapa. Não vá sem deixar algo, um rastro de saliva ou piscar de olhos, resquícios de olhos, telefonema burocrático, email árido. Não vá sem deixar marcas de sentimento; seria péssimo imaginar que passaste por mim e não levaste nada do que eu sinto por ti.
Eu grito, é verdade. Não acho graça nisso. Sinto sono e me rendo rápido, desanimo. Grito, mas não tão alto. Quem ouve, vai embora. Quem não ouve, acha graça. Quem acredita, sabe: só quem me marca tem direito a algumas palavras.

O tempo não para

[...]veja bem gelada, afinal de contas era domingo à noite e no dia seguinte eu não trabalharia, nem teria aula, então me dei de presente esse momento a sós com minha embriaguez, um pouco para comemorar simplesmente o fato de eu estar só, um pouco também pra eu ficar bêbado e achar respostas plausíveis pra’quela situação super inusitada que eu nunca tinha vivido antes. É, eu nunca havia estado assim, nunca nessa encruzilhada, nunca nesse tipo de atravessamento, nunca nesses caminhos paralelos em que um pé está cá e outro acolá. Quando bêbado eu penso menos, mas penso mais leve. Quando bêbado eu penso pior, mas penso menos confuso. Bebi metade da primeira lata quando tocou meu celular. Não reconheci o número, e depois achei que fosse um amigo ligando da casa de outros amigos cujo telefone não constava na minha agenda e por isso eu atendi. O tempo não parou, nunca, e me jogou de volta, com força, nesse outro caminho que eu supunha abandonado. Foi boa a noite, delicioso ter reencontrado aquele timbre de voz. Aquelas histórias e aquelas estórias, aquelas aventuras. Tantos projetos, tantas tentativas e recomeços. A gente fica velho quando tem medo dos recomeços, quando fica difícil tentar novamente, quando é um cansaço criar um novo projeto, quando é custoso inventar um novo jeito de lavar a louça ou de dispor os móveis em casa ou de largar tudo em casa e ir lá pra outra cidade, do outro lado do mundo, com outra língua e outro clima, pra ver se dá pra recomeçar e não só partindo do zero – nunca se parte do zero – mas se dá pra recomeçar por um outro caminho, com uma nova passada, pisando mais firme ou mais leve, mais rápido, em zigue-zague ou dançando. Um deles é velho, e sente medo dos recomeços. Põe a culpa na certidão de nascimento. O outro é jovem – até demais pra mim, que sou um espírito senil – e só tem medo daquilo que já viveu. Um quer me sugar pro seu buraco negro de tranquilidade, estabilidade e linhas retas com promessas de apaixonar-se; o outro nem me faz constar nas suas estórias delirantes de colores e dolores, me tangencia e me circunda, nunca sei onde está. Admito que a vida fez me curvar: nunca pensei, estou falando sério, nunca pensei que havia ainda o que esperar, o que falar e o que beijar. Nem de um, nem de outro. Pois está dando certo essa minha estratégia de sair da plateia e ir pro palco. Enquanto que com um eu rodopio, no outro eu o faço rodopiar. E, é claro, um tem minha paixão – aquele que me rodopia como boneco de pano – e outro tem meu tenro carinho – aquele que eu rodopio como vudu. O segredo da paixão seria rodopiar? O tempo não para quando eu rodopio. Acho que eu ainda prefiro apaixonar-me a fazer apaixonar. De um jeito ou de outro eu vou trocar os toques do meu celular porque eles são ridí[...]

Eclipse

Fiz a higiene da minha pele, a higiene do meu rosto. Fiz a higiene da minha boca e dos meus cabelos. Lavei, de fato, os lençóis e aspirei o colchão. Recortei, separei, extirpei; separei-me das células mortas do corpo - não do meu.
Comecei agora o apagamento progressivo daquilo que está na história, daquilo que se conta, daquilo que se narra, tudo será escondido e sombreado. Não vou mais jogar luz sobre tudo isso, e haverá o momento em que jamais terá existido porque ninguém mais vai lembrar.

Meus e maus lençóis

Eu decidi que amanhã eu vou trocar os lençóis da minha cama e tudo mais que vem junto deles. Enquanto arrumava minha cama fiquei pensando nas células mortas do corpo que semana passada deitava ali – e não falo do meu –, o que me causou profunda aversão. Não do corpo que ali pesou, mas das células mortas que ali jazem. Vou pôr tudo pra lavar. Mas antes sou capaz de rasgar os lençóis e chamá-los que covardes, de medrosos, de burros e de insípidos. Gritar com os lençóis, filhos de uma cadela vadia cheia de doenças, filhos de um porco nojento mentiroso, cretinos, ordinários, cuzão, imbecis. Até ejacular sobre eles eu sou posso. E no fim da convulsão posso olhar pra eles e dizer, tomem agora e sintam o que perderam.
Eles são verdes, os lençóis. Mas deixarão de ser. Porque estou com uma compulsão por limpeza, quero desinfetá-los, estou obcecado pela sua assepsia. Pois vou deixá-los de molho na água sanitária, e vou aprovitar pra limpar o banheiro jogando água sanitária por todo ele. Obsessão pela assepsia de todos os espaços onde podem haver células mortas do corpo - e não falo do meu. Esfregar meu peito com esponja, lavar minha cara com água sanitária, tomá-la. Apagar qualquer resquício, desinfetar, limpar, deletar. Vou começar pelos lençóis.