Algo de errado

E de repente uma vontade incontrolável de ser eu mesmo, de escrever e gritar meu nome, de perguntar aos meus amigos se eles me conhecem, se eles lembram de mim, e o que lembram de mim. Uma vontade de olhar no espelho, de vestir minhas roupas e falar no meu tom de voz...


ai, credo! sai de mim, identidade!

Quinta-feira de cinzas

[...]erma na minha boca, e eu gosto disso, daqueles jatos e daquele gosto. Gosto do constrangimento leve e suave de olhar nos olhos e sentir que houve um prazer ali. Mas não houve naquela vez. Foi horrível, me senti péssimo. Foi embaraçoso ter que me levantar e lavar meu rosto, lavar o corpo, tomar banho junto dele. Queria fugir pra longe, mas estávamos na minha casa. Não sei se foi ali mesmo que a gente desconectou, acho que não. Acho que foi antes disso, uns minutos antes disso, nuns beijos um pouco atravessados que nos demos, numas frases um pouco truncadas que falamos. Ou foi antes ainda, quando as nossas roupas não combinaram, quando a cor dos nossos olhos não eram as mesmas, ou quando as texturas dos nossos cabelos estavam em disparate. Ou antes? Quando eu nasci e fui lavado com água benta, quando ele nasceu e teve a pele do pênis cortada? Sim para todas essas possibilidades. Não houve momento em que estivéssemos juntos. E fiquei pensando sobre esses desencontros por horas e horas, penteando com escova fina todos os fios do tempo que passamos, procurando os sinais e acenos de tudo que nos interrompeu. Procurei por desvios de olhares, procurei por palavras cuja pronúncia em Português ele havia esquecido, procurei por fotografias que não me diziam rigorosamente nada, procurei inclusive pelo tamanho do corpo dele que fazia a minha cama sobrar nos pés e na cabeça. Achei tudo, estava tudo lá. Mas nesse penteado eu também achei umas frases de promessas, ou de convites, que acabam por colonizar o futuro da relação: “quando fores assistir a esse filme, me chamas?”, “estou te devendo um café!”, “sobre isso te conto com o tempo...”. É nisso que a gente se escora, ou se agarra, pra justificar o devir-noivinha. O querer-ser-noivinha. Desejar-estar-noivinha. Como podemos nos deixar se acreditávamos que éramos, ou que estávamos, noivinhos? De um denso e promissor relacionamento de carnaval, colonizado precocemente, só sobrou de verdade o devir-viúva de uma quinta-feira de cinzas. O querer-ser-viúva. O desejar-estar-de-luto. O devir-viúva vê sinais do marido morto em todos os lugares: “isso aqui ele me deu naquela viagem...”, “nós passamos por aqui uma vez e ele me disse aquela palavra...”, “foi ele quem sentou nessa cadeira pela última vez, foi ele quem se secou nessa toalha pela última vez, foi ele quem gozou na minha cara pela última vez...”. Todos os sinais que remetem ao marido morto gritam, seja na tela da TV, no cinema, na música, na arquitetura, nos sonhos, no espelho. Em todo o lugar estão rastros do falecido. O devir-viúva é tão cruel quanto o devir-noivinha. E tudo é uma invenção nossa, uma criação momentânea pra gente ter do que se ocupar. Em menos de 24 horas já não há mais rastro, nem sinal, nem referência, nem luto, nem grinalda. Apagou-se. Nunca foi. Em menos de um dia depois, o volume de desejo caiu pelos dois terços e vagamente lembro do formato do nariz, do perfume do desodorante, da distribuição de pelos no corpo. Talvez um flash de memória de um dedo do pé que é torto, de um dente apinhado, de um beijo burocrático, mas logo que lembro disso em seguida me ocupo da receita que acompanho pela TV a cabo. Quando toca novamente o celular, uns quinze dias depois, eu olho e penso “que número é este? Não vou atender, deve ser de call Center pra vender cartão de crédito”. E desligo, e nem me dou conta que duas semanas antes eu morreria por aquela ligação. Esse talvez seja o meu devir-Alzheimer.

Sim, claro, disso eu não tenho dúvidas. Estávamos em contextos de vida bem diferentes, não havia como eu me interessar por ele, nem ele por mim. Ele vem daquele jeito intenso, furacão, tornado, ciclone do deserto de Gaza. E eu nesse meu passo lento, lago de superfície tranquila e água profunda. Ele foi tão desinteressante, tão estranho, tão inadequado. Será que o fato de eu não ter me comovido com ele é culpa da minha insensibilidade? Mas o risco é justamente esse, o de tentar alcançar algum estrato de intimidade para depois pôr pesadas compressas de silêncio nesse buraco que cavamos um no outro. O risco de tentar auscultar uma interioridade que é rasa, a ansiedade em arranhar uma peça que é folheada. Bater na porta de um apartamento desocupado. E essa vizinha horrorosa continua a falar no telefone na janela do quarto! Odeio isso, porque acompanho como ouvinte de rádio os dramas dessa vidinha ridí[...]

Cartas a uma jovem bicha - Cuidado com os redemoinhos

Eu não sei de quem é essa chamada não atendida, mas acho que o texto da tua mensagem é péssimo. Porque tudo isso já foi escrito, e tudo já foi escrito deste mesmo modo. Não há novidade. Há uma recorrência aqui, o ‘devir-noivinha’, não te parece? O que repete? Se te chega um redemoinho tu te escondes num casulo ou te jogas nele? Não, não há resposta errada para isso, mas também não há a certa: veja o que te sobrou do que aconteceu hoje pela manhã. Louças para lavar e uns restos de comida de gato para pôr no lixo. O que te sobrou de ontem à noite foi uma camisinha usada pela metade, nem muito pra dentro e nem muito pra fora, e mais alguns meses de um rubor ingênuo ao lembrar dessa situação. O que te sobrou de ontem à tarde foi dez reais e cinquenta centavos que vão te fazer muita falta no próximo mês, já que nem pra comida terás. Tu sabes disso tudo, mas mesmo assim a noivinha se esconde dos redemoinhos mais belos e rodopia junto com os mais perigosos. E foi assim sempre. Sobrou de tudo também um pouco da casa vazia – que não é ruim, mas é estranho depois de tanto vigor – que ontem mesmo estava cheia de estórias fantásticas de viagens pelo deserto, aventuras, paisagens, rostos e corpos. Deixaste ir na enxurrada de causos, na torrente de contos. A paisagem, a visage, é exatamente esta: de água, de sentimentos que vêm em explosões. Foste seduzido por experiências que nunca serão tuas, que nunca estiveram presentes, que nunca foram pensadas. Tu nunca pensaste em chegar na tua idade com tantas narrativas. Todo contador é um sedutor. E tu só escutas as estórias, as narrativas, só ouves os contos e os causos: isso que sentes agora é apenas a ressaca do “efeito Sherazade” que logo, logo passa. Penso ser importante, talvez, assinalar que gostei da tua ousadia em alguns momentos. Admito que não esperava tanta segurança em pouco tempo. Contudo, não te animes, porque ainda há muito o que fazer para deixar de ser tão prisioneiro das tuas espinhas e cravos. Quem sabe pare de ouvir e passe a contar mais das tuas coisas? É uma dica, que não precisa ser levada ao pé da letra, mas que pode te ajudar: pense menos e faça mais. Ah, não! Não ligue! Não mande mensagem! Respondendo à tua pergunta: não era a ligação que tu esperavas nessa chamada não atendida, e não conte com um telefonema de carinho pelo menos nos próximos cinco dias. Isso porque quando perto do redemoinho tu ficas pequeno e insosso, insípido. Tu estavas profundamente desinteressante ontem. Ele é de ar, tu é de terra, te falta água. Os olhares da saída que tu lançaste para ele e que ele te lançou no momento em que fechavas o portão e no momento em que ele atravessava a rua foram pra ti um rastro de interesse e para ele um selo de uma carta que foi escrita enquanto ele dormia do teu lado – e enquanto tu ficavas acordado, assustado com o peso de um corpo estranho na tua já solitária cama –, postada de última hora. Era uma carta de oi-tchau. Tudo isso para dizer que a tua noivinha deve se recolher. Não haverá ligações – nem recebidas, nem perdidas – não haverá interesse. É próprio dos redemoinhos o nomadismo. Pois deixe que ele passe por outros lados, outros lagos, pequenos lagos de vazio. Se te doi a garganta hoje é porque represaste muitas estórias em ti ontem. [Represado] estás há muito tempo. Por isso tens problemas com a fala (te dói a garganta, prendes as palavras), por isso tens problema com excreção (diarreia e prisão de ventre, prende e escorraça em ti os sentimentos), por isso tens problema com a bebida (pões muita água pra dentro da represa com o único intuito de fazê-la transbordar). A figura que te significa é esta: de uma imensa e profunda represa que de tempos em tempos abre suas comportas. Quando isso acontece, és soberbo frente aos patéticos redemoinhos.

guri/18cm/25a

Não houve resposta dos bonitos. Nenhuma. Mas houve quem se incomodasse com a pertinência do negócio, os bonitos ficaram brabos: "vou permanecer com minha índole firme e intacta; não vou sair trepando com todo mundo por ae".

pois eu vou, sabe? sair trepando! no parque, no cinema pornô, na internet. Vou me aprimorar nisso, cada vez mais, cada vez melhor. Cada vez mais profissional em abrir e vestir a camisinha, cada vez mais hábil em passar o gel. Perfurar orifícios, boca e ânus. Exercitar dedos. Não é necessário nenhum apelido ali: vale apenas chegar, e de preferência não falar nada. Bonitos? Não vale nada, ou muito pouco. O negócio é sair trepando.

isso é ruim pros bonitos porque não reproduz. não prossegue. não cria uma linha linear, consecutiva, pros bonitos: "o fulano é filho do fulano bonito com a fulana bonita, que são filhos de..." Isso rompe, interrompe, sectariza, rizomatiza. Porque posso adotar qualquer um como sendo meu. Posso escolher quem é 'meu', inclusive um feio. Posso escolher. Posso surpreender. Posso, inclusive, escolher que não quero, que não vou, que termina ali, que ali é o fim. Posso escolher meu fim - ou dos bonitos.

e daí aparece essas "minha índole, minha moral, minha consciência". Somos chamados a servir, e alguns servem...... (como já diria o velho francês).

As viagens pra fora e as viagens pra dentro

[...] para isso, e eu acho que a ida foi bem tranquila. Eu não bebi na noite anterior e eu acordei cedo, bem antes do que eu imaginava. Deu tempo e vontade de comer granola, a granola mais insossa e pastosa que já comi. Eu sempre tenho essa esperança tola, porém plausível, de comprar a poltrona 37 e viajar ao lado de um homem que esteja disposto a se entregar aos prazeres da viagem, se é que me lês com atenção. Tenho esse paradigma de viagem perfeita, de viagem que dá certo, de viagem que rende. Nunca aconteceu, é claro. E eu acho que nunca aconteceu porque eu não entendo o corpo como um fluxo. E corpo é fluxo. É uma coisa que vai crescendo de dentro pra fora, que vai escamando e se regenerando, que vai gastando, produzindo poeira de corpo, pó de carne. Corpo é como o ato de urinar, falando em termos sadeanos. É um fluxo contínuo, denso, colorido, que sai de algum lugar e vai parar em outro que não sabemos. Produz-se em condições insondáveis, não sabem o que estamos mijando. E sai, precisa sair, não fica contido por muito tempo. Não pode ficar contido por muito tempo. Corpo é isso, é uma coisa que não se contém. Que não fica sempre assim, que muda, que pressiona, que tensiona. Imagine aquela vez, daquele porre de cerveja, daquelas 6 latas de Polar que tu bebeste sem janta e sem ir ao banheiro: lembra do alívio em mijar? Aquilo é o alívio do corpo. O corpo é um alívio. Mas eu vou costurando fio por fio porque na verdade não quero me perder, não quero me desagalhar. Um agasalho feito com tricot de ponto frouxo e esparso é estético, mas não é útil: não esquenta. Meu problema com o corpo é exatamente este: pra mim o corpo é um ponto frouxo, só serve pra estética. Erro com isso. Não vejo o corpo como um fluxo – pra mim ele é frouxo –, não o vejo como algo que vem e muda, que explode e que se torna outro, que já não era o que eu pensava e imediatamente depois de eu achar que o sabia já não me pertencia mais. Não sei do meu corpo, não o vejo. Pessoas dizem “ta fortinho!”, ou “que pancinha!”, ou “muito magro”, ou “não curto magricelos”, ou “muito peludo”, ou “tu é circuncidado?”, ou “que sacão”, ou “fica melhor de cabelo raspado”, ou “que lindo teu cabelo cheio”, e nada disso compõe meu corpo. Nada disso é meu corpo, não traduz meu corpo de modo legível. Não há corpo traduzido. Tenho horror do meu cabelo ‘escabelado’, tu bem sabes. Pois ele ‘escabelou’ meu cabelo na hora do boquete. Pegou meu cabelo e esfregou, desarrumou, puxou forte, entrelaçou pelos dedos e ainda sobrou por entre as mãos, os fios escorregaram e foram pulsados junto com a cabeça. Meu cabelo e minha cabeça, minhas mãos e meus dedos, minha língua, todos engajados num boquete. Terminou gloriosamente, como (quase) sempre termina: num esguicho na minha bochecha. E o corpo? Cadê o corpo? Tava perdido na sala, mas não estava no boquete. O corpo, tal como urina, também é gota que escorre, que sobra do fluxo. Há corpo que é resquício do fluxo, que é reticência; há corpo que é reticente. É o silêncio constrangedor do gozo com estranhos, é a vergonha da gordura no primeiro dia de academia, é a vergonha da fraqueza, das linhas longilíneas e curvilíneas do corpo. Tudo muito burguês e classe média: academia? Gordura? Colesterol? Circuncisão? Corpo-fluxo? É tudo classe média, essa filha do capitalismo e afilhada da psicanálise, mãe do individualismo. Silicone nos peitos, métodos pra aumentar o pênis, depilação a laser, clareamento anal, (circuncisão, eu diria), lente de contato, pintar cabelo, cortar cabelo, fazer a barba, tudo isso é uma invenção da classe média. Somos um grupo prodigiosamente dotado de criatividade inútil. Meu corpo, por exemplo, é uma gota. Um resquício de corpo. E quando meu corpo está perto do dele, do corpo dele, com aqueles cabelos anelados e nariz gigantesco, de homem com dote, com voz rouca de cigarro e bebida (quem disse que cigarro e bebida fazem mal? São adornos da estética musical), com os erres arrastados, os olhos que se fecham, cílios que se tocam, olhos que se abrem com um sorriso e os dentes brancos – nem tão brancos, pela bebida e pelo álcool – que rasgam a cara, que rasgam os lábios, os versos cabem nos dentes amarelados e nos anéis dos cabelos, em curvas, palavras curvadas, sons amarelados. Um microfone, uma mão, uma boca e uma voz. Ou várias vozes. Uma voz canta e uma voz que me fala, uma que me diz ‘oi’, uma outra que te diz ‘oi’, uma que me conta dos resquícios deste corpo – que não é gota, não! Que é fluxo, que é urina, que é tensão! –, uma que cala e outra que canta bem baixinho, pra nenhum público, já de madrugada sobre o palco dos travesseiros, voz protagonista de um chamego e de um beijo – ou dois ou três [sou capaz de mais, mas será que é demais pro fluxo? Pra minha gota é sempre demais]. Esse é o mesmo desejo que me faz comprar sempre a passagem pra poltrona 37. O desejo ingênuo de que um olhar escorregue da poltrona 40 para a poltrona 37. E que o corpo da poltrona 40 entre no fluxo – na gota – do corpo da poltrona 37. Não houve nada durante a viagem, nem na de ida nem da volta. O que eu queria era férias, mas sempre programo o despertador do celular para às 8h do outro dia, isso porque o número 8 é meu número de sorte... [...]