hoje meu coração disparou PARTE II - alínea d

 [a trilha sonora deste trecho é "absolute beginners", na voz da Carla Bruni.]

nos encontramos na rua Itambé com a rua Alagoas. era manhã de um sábado, quase primavera. a cidade arranhava: muitas pessoas em situação de rua nos pediam dinheiro, comida; uma transexual nos pediu papel higiênico e sabonete, e demos. caminhamos até o Parque Buenos Aires. Nestor e eu nos deitamos no gramado atrás da recém restaurada fonte, na entrada. o sol não esquentava, só iluminava. havia uma claridade naquela manhã que fazia tudo ter um brilho esfumaçado. quando nos deitamos na grama, Nestor se incomodou com o orvalho. eu sorri.

- tiozão de esquerda reclamão, rotulei.

nos demos as mãos. havia pássaros que voavam e cantavam entre as árvores. e pessoas em situação de rua que se escoravam nas grades em torno do Parque. e ônibus que subiam e desciam a Avenida Angélica - "a Terrível", complementava Nestor, porque era onde morava um dos seus ex-namorados com quem não falava mais. essa era uma das passagens do seu labirinto na qual eu adorava entrar: a dos romances do passado. sempre eram becos sem saída, e eu precisava voltar de onde eu viera. eu insistia porque havia algo naquele paredão, o paredão que me impedia de seguir, algo de quente. eu insistia porque sabia estar perto de algo pulsante na história de Nestor. as passagens dos romances do passado sempre me levavam ao paredão quente. Nestor dava sua versão dos primeiros encontros, das primeiras trepadas, dos momentos mais bonitos, dos mais delicados de suas relações prévias. mas cessava de articular palavra sobre o fim, ou os fins. como se houvesse um segredo sobre o término de suas relações, ou vergonha, ou culpa, ou crime. eu notava me aproximar dos paredões do seu labirinto quando ele começava a preencher com silêncio o tempo entre as frases das narrativas sobre suas relações do passado. entre uma e outra havia segundos nos quais ele olhava pro chão ou pro céu. e as pausas aumentavam na medida em que as narrativas se encaminhavam para os últimos dias do convívio de Nestor com os ex-namorados: não mais entre frases, mas entre palavras, que ele passava a escolher com muito cuidado (ou simplesmente lhe faltavam [impossível que lhe faltassem, tão rico que era em verbos e adjetivos, tão cheio de recursos de ironia e deboche.], pois há experiências para as quais não se têm nomes). 

- ... nos vimos num domingo ... eu mandei mensagem ... naquela noite ... senti que tinha algo ... de errado ... por isso, eu acho ... que mandei ... a mensagem ... agora sei que não ... não devia ... ele respondeu ... na ...  segunda-feira ... ... ...

e de repente quase dois minutos de silêncio. me senti constrangido, deitado na grama, com as costas molhadas, achando que havia forçado demais um assunto sobre o qual Nestor não queria falar. eu estava diante do paredão quente, eu ouvia a pulsação, eu sentia as ondas de calor. estendi o braço e toquei com as pontas dos dedos: fiz carinho na sua barba. ele fechou os olhos sem sorrir. um trio de senhorinhas em trajes de atividade física caminhava pelo Parque. romperam nosso silêncio. comentavam com furor que o PT não poderia voltar em 2022. seus cães yorkshire e lhasa-apso latiam, talvez pra discordarem delas (gosto de pensar que todos os cães são de esquerda [eu também.], especialmente os vira-latas). diziam, porém, que do jeito que estava não era possível continuar. que usariam máscaras até a pandemia acabar. que tomariam quantas doses de vacina fossem necessárias, "menos a coronavac", assinalou uma delas. Nestor virou o rosto pra mim e riu:

- essas senhorinhas conservadoras de Higienópolis (risos).

- sim, e as jovenzinhas lacanianas discursando sobre desejo e recalque (risos), eu retruquei.

- que devem ser suas netas, e tem também os netinhos jovenzinhos são-paulinos ou palmeirenses em quem eu gosto de dar uns beijos de vez em quando.

ele sempre escapava. ele sempre tinha um jeito de baixar a cancela, impedir meu fluxo. sempre tinha um modo de dizer que eu coexistia com netinhos jovenzinhos são-paulinos ou palmeirenses de Higienópolis, em quem ele às vezes dava uns beijos. eu era uma mosca rebatendo no vidro da janela; uma perereca grudada em uma janela tentando entrar em um quarto. havia uma blindagem. mas naquele dia, naquela manhã de sábado, ficamos quase 3 horas de mãos dadas, deitados na grama. e almoçamos. e tomamos café com torta de limão e merengue. e voltamos ao minhocão. e tomamos mais café. e escolhemos um restaurante pra janta. e tomamos mais vinho. e rimos e gargalhamos. e nos demos beijos públicos. mesmo quando eu não planejava, era arremessado contra o paredão quente e pulsante de Nestor. eu percorria com destreza seu labirinto; ele permitia que eu ali estivesse; entretanto, a cada encontro e a cada nova passagem eu ficava, em vários momentos, diante do seu paredão. eu recuava. não o acessava em algum lugar, algum lugar dele onde era quente, onde latejava o Nestor namorador, cheio de romances passados. foi assim por meses, mas eu me divertia no labirinto. e achava estar próximo do meio, bem do meio, do meio onde havia vibrações. porque, desde o primeiro dia, houve café, vinho, boa comida. monólogos de Nestor sobre sua relação com a irmã mais nova, que adorava; sobre seu pai, que era um mistério; sobre sua mãe, que era, afinal, mãe, presente como um incômodo às vezes. da irmã mais velha, de quem ele não gostava. e me fascinavam, os monólogos de Nestor. ele parecia declamá-los pra mim, só pra mim. fui me perdendo em seu labirinto de monólogos, vestindo somente tanga e segurando uma tocha, por 4 meses. da última vez que o vi ele vestia uma cueca preta esgarçada, estava parado perto do parapeito da janela assistindo ao por-de-sol. havia chovido o dia todo e, naquele fim de tarde, o sol abria passagem. tínhamos trepado com a chuva batendo na vidraça.

- a minha vida toda poderia ser assim, um por-de-sol depois da chuva, me disse o Nestor de olhos fechados e sem virar o rosto do sol.

eu me arrabatei por aquele homem em quem eu não conseguia entrar. eu apostei, eu topei; de tanga e tocha no seu labirinto escuro. eu disse sim pra um paredão.

hoje meu coração disparou PARTE II - alínea c

 [...]sseram que cê é viado. por mim tudo bem", me conta agora a Pequena. os amigos que fizeram o churrasco foram gentis, segundo ela, e quiseram apenas colocar em pratos limpos algo que estava difícil de engolir. mastigavam, assavam, fritavam, cortavam com a faca, mas era de difícil deglutição, o sabor era amargo. nossos amigos em comum tinham me conhecido ficando com homens, nunca tinham visto a Pequena com outras mulheres (embora ela tivesse tido uma história lésbica com uma colega de faculdade por dois anos [algo que somente eu, a colega e a própria Pequena sabiam, parecia que a Pequena tinha vergonha disso.], era um segredo), menos ainda com um homem viado. nossos amigos em comum têm pouco em comum conosco. serviram pra nos apresentar um ao outro. mas agora deixam de fazer sentido. há 3 meses eu estou conhecendo a Pequena, 3 meses desde o churrasco em dia nublado com cerveja, cachaça e maconha; há 3 meses me desloco pelo seu corpo cheio de curvas e derrapo. ela parece gostar ou, pelo menos, não se importar. há 3 meses nossos amigos incomuns fazem comentários jocosos sobre o homem que sou. e sou um homem. pararam de nos convidar para encontrar nos finais de semana. alegam que estão se resguardando das novas ondas da pandemia e de todas as variantes do vírus. o único vírus variável é a escrotidão, com o qual eles já se contaminaram. há 3 meses meu pinto branquelo broxou, esse pintinho murcho, mas a Pequena pediu pra eu dormir de conchinha naquela noite. e fiquei. na manhã seguinte, acordei de ressaca. ela estava pior. eu deitei de barriga pra cima na cama, nu; ela pôs a perna esquerda sobre as minhas e encostou a cabeça no meu peito. seu cabelo feito árvore frondosa cheirava a lavanda e... um pouco de baunilha. fiz carinho naquela cabeleira macia e cheirosa. ela veio pra mais perto de mim, e eu a apertei contra meu tórax. ela murmurou algo, e eu pedi ao senhor (sou ateu [nessas horas recorro até a Buda se necessário], mas que há uma energia que corre entre os corpos, há!) que meu pintinho branquelo ficasse duro. ela me deu uns beijos no queixo e mordiscou meu mamilo. duro, ufa, pelo menos em processo de endurecimento, o que já é um ganho. nos beijamos, e parecia que tínhamos mil línguas. ela apertava minha bunda. eu gostava. eu apertava seus peitos. ela gostava. a cor marrom da sua pele fulgurava, emitia faíscas quando o sol da manhã entrava pela fresta janela e a tocava. eu preciso de beijos pra endurecer, de línguas, de mil línguas, e de mil faíscas feito fogos de artifício; disto é feito meu pintinho branquelo: beijos, línguas, faíscas e sol. até que a Pequena se virou na cama, abriu as pernas e demandou "me chupa". eu vacilei: "eita", pensei. encarei a Pequena. ela agarrou meus cabelos "vou te dizendo como". ela com a cabeça entre os travesseiros, de barriga pra cima, pernas abertas; eu fui lambendo os peitos dela, a barriga dela, até que cheguei lá e ouvi um "oi, mané, você é novo por aqui". aquela protuberância rosa, cheia da força feminina, parecia muito segura de si. "oi, beleza? ahn... sim, cheguei hoje. ontem, na verdade, mas acabamos dormindo e", "sei, mais um broxa?", "não exatamente, é quê", "olha, queridinho, faz teu corre. compra maca peruana, toma guaraná, cialis, faz injeção de hormônio pra cavalo", "sim senhora, perfeitamente, senhora, é quê", "não precisa ser grande, não, até ajuda, mas a questão é se entregar, entende?, investir, gostar de estar por aqui", "claro, entendo, é sobre isso quê", "nos trate bem, esteja conosco, quando estiver comigo você está também com ela, você gosta de mim? aqui na ponta e nas beiradas é onde me espalho, é onde me arrepio", "ah, certo, na ponta e nas bordas, obrigado, senhora, é quê", "nós somos o infinito, nós somos uma força da natureza, nós somos a resposta ao universo", "a respos..., certo, entendi, senhora, é quê", "é uma magia, uma bênção mística estar em face do mais feminino que há numa mulher", "sim, senhora", "deixa eu ver tua língua, mostra a língua", mostrei, "hum, boa língua, hein, ela abre e estica?", fiz que sim com a cabeça, "cê tem cara de bobão, mermão, mó mané você, de onde você veio?, onde ela arrumou você?", "eu vim do vale", "que vale, seu trouxa?", "do vale dos homossexuais", "eita, porra", "desculpe, eu sou viado, mas rolou um troço intenso entre nós ontem", "sei", "eu já estive por aqui antes, quer dizer, não aqui aqui, estive no aqui de outras mulheres, mas foi muito rápido e agora eu to aqui de de novo e eu to nervoso porque sei que é uma atividade que demanda experiência, trajetória, acúmulo, expertise, savoir-faire, know-how, que eu não tenho", "e rola, cê chupa?", "chupo, sim, senhora", "aqui é mais difícil, mané, aqui é arte, aqui é glória", "eu sei, senhora", "merda, nem sei como ensinar viado", "peço a gentileza de ter paciência, senhora", "mas então cê quer mesmo?, tá a fim mesmo?", "tô, senhora", (silêncio), "vai ver viado pode fazer melhor que os últimos héteros que passaram aqui, porque eu vou te contar, bando de preguiçosos", "prometo me esforçar", (silêncio), "seu beijo é molhado?", "sim, senhora, bem molhado", "e cê enfia a língua na boca quando beija ou roça a sua língua na outra língua", "um pouco dos dois, senhora, mas prefiro roçar a língua na outra", "ok, porque enfiar a língua é mais ali embaixo", "ah, disso eu sei, senhora", (silêncio), "é sério que cê é viado com essa cara de bobão?", não respondi e fiz cara de cachorro pidão, "tá bem, vai, de alguma coisa há de servir ter chupado rola, mas aqui não é rola, não, seu mané, aqui o sabor é Pachamama, vai aos poucos, reverenciando cada dobra, e presta atenção nela, ela é o foco, viado com cara de bobão, e cai de boca", "sim, senhora, com licença, senhora".

a Pequena se levantou e vestiu uma calcinha, sem sutiã. foi pra janela. me surpreendi observando sua silhueta contornada pelos raios de sol. Pequena linda. Nestor era assim também, uma extensão do sol vestindo somente uma cueca preta de elástico esgarçado; porque havia uma luz que percorria o encaracolado bagunçado dos seus cabelos e os fios desordenados da sua barba da última vez que o vi; uma luz que se expandiu e implodiu como supernova; uma luz de por de sol, moribunda; uma luz que eu não sentia já havia 6 meses. doí de saudade de Nestor. a Pequena virou pra mim, eu nu, deitado na cama, com os lábios molhados, língua cansada demais. ela me perguntou, se espreguiçando "vou fazer café, vamos tomar café? tenho tapioca e queijo, uns ovos. vamos fumar um baseado? preciso tomar água. café forte ou fraco? vou por uma música. que música cê gosta? cê tem uma cara de menininho de bossa nova". ela ligou a caixinha de som, que começou a tocar "braille", do Rico Dalasam.

hoje meu coração disparou PARTE II - alínea b

 [a trilha sonora deste trecho é, como não poderia ser de outro modo, "freguês da meia noite", na voz de quem fala de espera, angústia e desejo.]

então marcamos de encontrar no Largo do Arouche, número 346, às dezenove horas, quando a temperatura chegasse aos oito graus Celsius. frio. às dezoito e quarenta e três já fazia nove. e lá o esperei. Nestor chegou mal agasalhado pra aquela noite.

- você é sempre pontual?, ele perguntou se aproximando do meu rosto para um abraço (foi quando senti o mau hálito [aguento ou esqueço ou fujo; ele bebe demais e eu também; algo temporário ou permanente; e de manhã cedo, será que é pior?], e pensei em interromper o encontrinho ali mesmo mas ele sorriu ao tirar a máscara, e eu por aquele sorriso eu fiquei, eu ficaria, eu ainda estou).

- sempre, respondi, e tu é sempre calorento? 

- vim pra me aquecer.

arrá!, meu cão não late em vão. fingi ser democrático e perguntei qual vinho beberíamos. eu já havia escolhido: uma garrafa do novo mundo, África do Sul. ele sugeriu um vinho português, mas eu argumentei que a noite pedia uma uva densa. ele concordou. sugeri o sul-africano. ele concordou.

- e de entrada? terrine com pistache?, Nestor quis e completou: j'adore.

e eu quis vomitar ali mesmo porque detesto fígado, ainda mais de pato. fui democrático e aceitei. e até comi um pouco quando chegou à mesa trazido pelo garçon, engasgando ao engolir, sorrindo de leve ao tocar a faca na beirada do prato, tomando um cheio gole das uvas importadas pra disfarçar o gosto impregnado na minha boca. um beijo, naquele momento, na boca de Nestor pra dissipar aquele mal estar de fígado - eu queria o fígado de Nestor, e o sumo fermentado das suas uvas, e todo o mau hálito dele espalhado na minha virilha, e sua máscara caída ao lado da minha cama como se estivesse ali esquecida, e o seu cabelo encaracolado sobre meu travesseiro, furta cor de prazer -, e pousei a taça de cristal sobre a toalha de linho branco que cobria a mesa e levantei o guardanapo de pano do meu colo e limpei com cuidado a gota de vinho que caía do meu lábio. falamos de música, e de música passamos a falar de política, nos detemos no assunto política brasileira pós-golpe de 2016.

- quando foi que tu beijou um homem pela primeira vez?, perguntei.

- (riso, um riso que era um risco), o que isso tem a ver com o bozo?

- tudo!, (gargalhada, joguei minha cabeça pra trás).

ele também gargalhou. contou do tesão e do receio em se aproximar da boca de outro homem aos 16 anos de idade. que tinha sido hetero até então. "era outro tempo", ele argumentou, o tiozão de esquerda. ficou em pânico quando o fez, mas repetiu no dia seguinte. e no outro, e repete até hoje. os homens, sempre mais diretos que as mulheres, com menos curvas e menos becos sem saída nos diálogos, com menos simbolismos e com menos duplos sentidos. "uma linguagem mais plana", ele disse, uma condição masculina que possibilitaria relações mais simples, com inícios e desfechos menos dramáticos, menos barrocos. pra Nestor, ser homem era ser menos, era ser minimalista.

- e você?

- viado, sempre fui viado, mas hoje sinto que to velho porque estranho os quia.

- (riso, um riso que era um risco), os quia?, quem são os quia?

- a sopa de letrinhas, os elegêbetêquiamais. é muita gente pra pouco sexo.

houve um tempo em que ser viado era glamouroso, um requinte. sempre foi desconfortável, mas também sempre foi gostoso. era uma marca distintiva: ler livros que poucos liam, ouvir músicas de acordes complexos, vestir roupas coladas no corpo esbelto, empostar a voz de barítono para dizer sagacidades bem-humoradas. já eu sou de uma geração em que ser viado se tornou desculpável por causa da Xuxa. Rainha dos Baixinhos, Lua de Cristal, Super Xuxa Contra o Baixo Astral, Meu Cãozinho Xuxo, as Paquitas (e, mais tarde, os Paquitos [ah, sim, os Paquitos, hm, delícia.], por quem eu aguardava uma noite inteira só pra ligar a tevê pela manhã e vê-los, fingindo pros meus pais que o Praga e o Dengue eram quem me interessavam), tudo fez com que uma geração de guris fosse viada e a culpa recaiu sobre a Globo, não sobre o fato de que ser viado é gostoso, apenas. e teve a Madonna também. sabe, ouvir Madonna no início dos anos 1990 no interior do Rio Grande do Sul, quase fronteira com a Argentina, era uma atitude de guerra. era militância no talo, ativismo no pelo. ser viado era simples: era um guri gostar de outros guris. mas aí veio a internet em linha discada - o som da conexão do modem ainda ecoa na minha cabeça. e vieram as salas de bate-papo do UoL. e vieram os sites de relacionamento. e vieram as webcams, e a internet banda larga. e a aids, que nunca nos deixou. imagine tu que assisti a "Filadélfia" em 1993 e, com 9 anos de idade, saí do cinema com a certeza de ter HIV. não tenho até hoje, mas, está vendo?, a sopa de letrinhas está grudada na história de ser viado. agáivê, elegêbetê, quiamais, a ou p?

- cê tá me perguntando se sou ativo ou passivo?, Nestor me interrompeu.

- tenho outras perguntas pra te fazer que podem ser mais interessantes.

- (riso, um riso que era um risco), eu tenho uma primeiro. posso?

- vá lá, peguei a taça e fui virando um gole demorado de um vinho que grudava na língua, na garganta.

- existe amor em essepê?

- existe amor com emedê, (gargalhada, joguei minha cabeça pra trás ainda segurando a taça).

- (gargalhada, jogou a cabeça pra trás), olha nós com a sopa de letrinhas!

cinco graus Celsius no Mercado das Flores. eram dez da noite. ainda pedimos mais uma garrafa de vinho, o mesmo, pois Nestor havia gostado das uvas do novo mundo. minhas gargalhadas, acredito hoje em retrospecto, me permitiram entrar no labirinto da intimidade de Nestor. ele deve ter sentido que era possível me deixar passar. aceitei uma única entrada sem garantia de saída. lá dentro era cavernoso, escuro, úmido, e às vezes rajavam ventos de furacão; e eu no labirinto de tanga, com uma tocha, ouvindo seus relatos da relação com o pai, com a mãe, com as irmãs (eram 2, uma mais velha e outra mais nova, mas ele só se dava bem mesmo com a mais nova). os homens por quem foi apaixonado; maremotos e tsunamis no labirinto. eu desfilava como uma modelo nas passarelas da semana de moda de Paris por aqueles túneis de Nestor. eu fazia nado sincronizado nas ondas do mar revolto das suas memórias.

- aliás, sou versátil, disse Nestor.

- legal, eu também. mas nem sempre curto penetração.

- nem sempre... como assim? (riso, um riso que era um risco).

- ser viado é mais simples do que dar ou comer. e vai mais além também.

silêncio. nos encaramos ao som do tilintar dos talheres e taças do restaurante, do sussurrar das risadas e conversas dos outros fregueses, do craquelar do frio à meia-noite.

- eu gosto de você.

- eu gosto de ti também, Nestor.

e não há como negar que o prato a se ofertar não o faça salivar.

hoje meu coração disparou PARTE II - alínea a

 na página 100 de "copo vazio" eu escrevo a lápis "TODAS assediam o mundo espiritual para trazer o macho de volta". como se aquela piroca fosse a única das galáxias. na página 108 eu comento "a gente faz dessas", sobre quando Mirela vai pra debaixo da mesa e grita alto o nome de Pedro na tentativa ilógica, incoerente, de trazê-lo pra sua vida novamente. nas páginas 72 e 84 eu puxo setas e escrevo nas margens "eles dão sinais"; "eles nos avisam". esses homens que vão embora têm suas formas de vazar resquícios, rastros, pistas de que algo vai dar mal pra nós. a gente percebe e, na hora, finge que é auto-sabotagem. finge que é neurose. finge que é vício de experiências anteriores que deram errado. Mirela doida no enorme pinto flamenguista de Pedro, no seu sotaque de Minas. compreensível. rogo, por outro lado, que possamos fazer pequenos avanços, talvez em uma sequência de workshops ou em breves sessões de coaching, de modo a habilitar esse faro que temos (e temos [nem todas tão aguçadamente.] em algum lugar) para sentir o odor da cafajestada.

depois da tirada de cartas na casa da minha amiga, perdi noites com a imagem das nove espadas perfurando um corpo - o meu corpo. "a crueldade". achei por bem não abrir minha intimidade para mais ninguém. seria melhor manter-me discreto emocionalmente: sofrer em silêncio pela saudade de Nestor, passar os finais de semana lendo romances e assistindo a séries no Netflix. apagar os perfis dos apps de pegação. impedir, ou pelo menos dificultar muito, que outro homem se esgueirasse pelas frestas da minha fragilidade. só não pude supor que uma mulher o faria. pois foi quando aceitei o convite para ir ao churrasco. e lá tinha uma diva fumante.

hoje meu coração disparou PARTE II

[a trilha sonora deste parágrafo é "socorro", cantada pelo Arnaldo Antunes.]

"bora lá, não tem sofrência boa sem um tarô", disse a amiga que me acolheu em seu apartamento dias depois do meu meltdown emocional por Nestor. ela tem razão. a mística das cartas, da astrologia, tem tudo a ver com uma dor de cotovelo. "põe as cartas pra esta macabéa", eu ratifiquei. eu quase havia precisado ir a um atendimento psiquiátrico de emergência. queriam me dar lorazepam, diazepam, um mata-leão qualquer pra me fazer parar de chorar e calar a boca. na sexta-feira anterior, depois de uma semana inteira de mensagens territorialistas, ambíguas, e sem nenhuma intenção de me ter no colo, Nestor mandou um meme. não, não era um meme; era um post de um perfil aleatório do twitter que brincava com a letra de "vambora", da A. Calcanhotto. só poderia ser um deboche, uma ironia. eu digitei "é uma piada?", ao que ele respondeu "não faz a Maysa", que eu supus remeter à cantora de "meu mundo caiu". ainda pensa que sou um romântico brega, esse calhorda. mandei logo um áudio de um minuto e vinte e três segundos. pápápá, somos dois adultos, bibibi, não é culpa de ninguém, tananã, eu vou viver minha vida, e isso e aquilo, gosto demais de ti. era por volta das três e meia da tarde. nunca mais recebi notícias de Nestor.

"então, amigo, vamos ver o que as cartas dizem", "elas mentem sempre", "hoje não vão mentir". ela embaralhou, pediu pra eu cortar o monte em três. eu cortei. ela reuniu novamente os montes, embaralhou. abriu as cartas em um semicírculo sobre a mesa de madeira. ela tinha colocado um incenso fedorento pra queimar, de cravo, meus olhos ardiam. "escolhe cinco." peguei três da ponta esquerda, uma do meio e uma da ponta direita da fileira. o assento da cadeira praticamente não tinha mais estofo, minha bunda doía contra a madeira, afundada. ela colocou quatro cartas em cruz e uma do lado superior direito. "esta separada aqui é a que manda no jogo."

1a carta:

A Diva: uma mulher forte, poderosa, vai entrar na tua vida. ela é muito magnética. ela brilha. certifique-se de que ela te enxergue, te perceba, te aceite na vida dela como tu é; do contrário, ela será um rolo compressor.

2a carta:

A Pêssega: uma série de atitudes ingênuas e orgulhosas podem levar a um grande mal entendido, um grande ruído de comunicação. perda de valores por vaidade.

3a carta: 

A Falsiane: cuidado com a mentira e com a ilusão. o fascínio cega. palavras doces podem estar encobertas de segundas intenções, prenhes de veneno. alguém quer o suco da tua vida e vai fazer de tudo para vampirizar tua energia.

4a carta:

O Funkeiro: amante do sexo, drogas, samba, rock'n'roll. o ser errático que requebra os quadris na velocidade cinco do créo, que faz quadradinho de oito invertido. nascido do proibidão, desconhece a regra e a moral. pode ser a alma da festa ou o estraga prazeres.

5a carta:

A Sofrida: imersa na dor, não distingue tristeza, melancolia e cansaço. é a carta que rege o jogo. está enforcada, sacrificada. deu mais do que tinha e agora não tem como pegar de volta. deve aos traficantes da biqueira. entregou-se, mas foi rejeitada. chora e ninguém a ouve.

"achei um jogo pesado. quem sabe tiramos mais uma por descargo de consciência?", "a macabéa aqui aceita", "seja lá o que for, vai passar", "tem tanto sentimento, deve ter algum que sirva, cantou o arnaldo."

6a carta:

9 de espadas: a crueldade. nove espadas perfuram seu corpo. é mais que dor: é terror, é pânico, é horror.

"agora vou ser atropelado por uma mercedes?"


hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

 [a trilha sonora deste parágrafo é "eu bebo sim", na voz da Elza Soares.]

quando eu cheguei no churrasco dos amigos, no dia nublado, e reparei na Pequena, acho que conectei também com a força da sua ancestralidade. a força das mulheres negras é um repuxo de mar. eu achava que a isca do isqueiro esquecido era minha, quando na verdade ela sabia que se tratava de uma forma de eu começar a conversar com ela. desde o início era ela quem me queria, quem queria o meu destino, quem queria a minha vida na dela. e desde o início eu, um branquelo insípido, não tive outra escolha senão entrar nesse redemoinho de algodão e lavanda que era sua voz, seu cabelo. ela estava enérgica naquele dia. a Pequena gosta de beber, e eu tentei acompanhá-la na cerveja, primeiro, na cachaça, em seguida. sem sucesso. mas bebiriquei o destilado mineiro acompanhado de água. "cê não aguenta, não?", me questionou a Pequena. "aguento, mas hoje eu quero estar o mais lúcido possível." "por quê?", "porque hoje eu quero dormir pelado contigo." ela sorriu e pegou um baseado que circulava de mão em mão entre nossos amigos. "quer um peguinha?", e eu calculei rapidamente que sim porque sabia que havia docinhos e uma torta de chocolate com sorvete de creme de sobremesas. então: cerveja, cachaça, maconha, chocolate; só drogas leves. a Pequena me contava do seu trabalho, da mudança do Rio de Janeiro para São Paulo. da dureza da adolescência, isso sem nenhuma cor de drama. à medida que falava da sua história abria um sorriso porque conquistou tudo o que havia se proposto a conquistar: a mudança do interior pra capital, a entrada na universidade federal, o ingresso nos primeiros estágios de trabalho - sempre os melhores, muito bem posicionada nos processos seletivos. não porque era esforçada, mas porque tinha tesão em fazer o que fazia. e disse "eu até vou em manifestações anti-bozo, mas a maneira mais radical de mudar esse país é botando mais gente pra viver, é botando mais gente neste mundo, é dar sequência à linhagem de luta que me trouxe até aqui". fascinante, impetuosa. meus amigos presentes no churrasco passaram a me censurar. diziam que eu queria chamar a atenção dando beijos em uma mulher só porque eu estava com dor de cotovelo. repetiam que eu tinha nascido viado e que aquilo era heresia. que iam tirar minha carteirinha de passiva. que iam me excluir do decanato dos adoradores da Cher. um deles, já no final da noite, sussurrou no meu ouvido que não era com uma pepeca que eu iria tapar o buraco que o pinto do Nestor deixara em mim. o comentário nojento não teve réplica, mas merecia. a Pequena daria uma resposta à altura, mas quando ela chegou do banheiro eu já havia esquecido da grosseria e dei um beijo nela. minhas amigas queriam saber de onde eu havia tirado a lábia, a malemolência, a sedução. uma delas só soltou um "ai, se eu soubesse antes...", que eu também esqueci de comentar com a Pequena porque estava muito, muito, muito loucão. eu comi 3 fatias da torta de chocolate com 4 bolas de sorvete de creme. a Pequena só tomou mais uma dose da cachaça mineira e deu mais umas baforadas no baseadinho. fomos a pé pro apartamento dela. ela é bagunceirinha. nos beijávamos muito enquanto tirávamos a roupa um do outro - que, pra mim, levou um tempo longo e bem aproveitado. naquela noite meu pinto branquelo broxou (assim mesmo, com x [um uso chulo e desaconselhável pelos dicionaristas.], porque meu pintinho branquelo é chulo). perguntei se ela queria que eu fosse embora. a Pequena não se importou, "fica do lado de fora da conchinha pra eu pegar no sono?". e dormimos.

hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

[a trilha sonora deste parágrafo é "everybody's gotta learn sometimes", cantada por Beck. Ah, para ler "hoje meu coração disparou" é necessário ter assistido a esse filme também. do contrário, nada acontecerá nessas almas moles de vocês.]

leio "copo vazio" com um lápis. sempre leio romances com um lápis em punho porque tenho a mania de comentar, corrigir, encontrar pequenos erros de digitação, sublinhar o que me impressiona. eu estudo a narrativa de ficção. vou atrás das referências, confiro as intertextualidades. monto a rede de histórias na história - não para entender melhor, mas para espalhar o que leio. esparramo a narrativa. escrevo na margem de vários parágrafos de "copo vazio": "eu todinho", "eu inteirinho", "puta merda"; faço emojis de coração ao lado de "ele se deitou de cueca" na página 29; assinalo asteriscos nas ruas por onde passei; comento na página 31 "gata, você é uma trouxa"; discordo da narradora, na página 43, quando fala em "abandono", pois não acredito que Pedro tenha abandonado Mirela, e escrevo "desinteresse", "desprezo", "condescendência", "despaixão" nas margens. converso com Mirela, pois me identifico. trouxa, ingênua. adoro Mirela. caiu no conto do flamenguista. Pedro é meu Nestor - com sutis diferenças. eu o conheci no minhocão, num dia estranhamente quente depois de uma sequência de dias frios. amanheceu aquele domingo de sol morninho, um domingo que aconteceu, assim mesmo, como se acontecimento fosse. eu vesti regata e bermuda displicentemente, fones de ouvido e celular, paramentado para caminhar. era metade da manhã. o minhocão é energizante. os grandes murais dos prédios carcomidos, com mensagens de emancipação e revolta e autoafirmação, as pessoas estranhas nas janelas e sacadas, as pessoas mais estranhas ainda usando o asfalto como se praia fosse (e é [não é, mas serve.], a praia santa cecílier). caminhei e li "eu sabia que você existia"; "no país da corrupção pixação é crime", "hoje não vou me ferir", e eu sorria. naquele domingo eu estava ali e em nenhum outro lugar. não estava radiante, eufórico. estava só aproveitando a bondade do domingo, que era um acontecimento. decidi me sentar nos bancos improvisados próximos à praça Roosevelt. e notei o rosto por trás da máscara (às que lerem isto anos no futuro, houve uma pandemia causada por um vírus entre 2019-2020-2021 e todas as pessoas do mundo precisaram usar máscaras como forma de prevenção [o que foi uma chance para quem era feia e uma dificuldade a mais pra quem era apenas normal mas tinha harmonia facial, como eu.]), cujos olhos me acompanhavam. Nestor estava sentado a poucos metros num platô de madeira. eu me deitei em algo que parecia uma espreguiçadeira, de tal forma que o rosto por trás da máscara estava no meu campo de visão. escolhi um podcast de política para ouvir no spotify. e cuidava daquele rosto por trás da máscara que, sem cansar, sustentava o olhar em minha direção. boné, bermuda jeans, chinelo de dedo, camiseta verde da osklen. nesse primeiro instante eu não tinha certeza de gostar daquele homem que me encarava. eu o achei jogado demais - mas o que é ser jogado? era eu quem vestia displicentemente regata e bermuda, seminu. e o rosto por trás da máscara ainda olhava. "a política externa de bolsonaro, pipipi-pópópó, a descrença nas instituições democráticas, patati-patatá", eu ouvia o podcast certo de ser alguém que, mais que sustentar um olhar, poderia sustentar também uma conversa. o rosto por trás da máscara se levantou e veio caminhando devagar até um espaço vazio próximo de onde eu estava deitado. sentou-se e arrumou a camiseta verde da osklen amarrotada. olhou pra frente, virou pra mim, o rosto por trás da máscara sustentou o olhar em mim. decidi retribuir, simulando aquelas brincadeiras de quem-piscar-primeiro-perde ou quem-rir-primeiro-perde. eu perdi porque eu ri primeiro. ele percebeu, mesmo que eu também estivesse usando máscara (só naquele momento me dei conta de que eu poderia ser uma boa ou má supresa pra ele quando eu tirasse minha máscara [e ele também pra mim.], então a tirei, um pouco envergonhado). "eu sou Nestor. o que cê tá ouvindo?". tirei um fone do ouvido, "desculpe, não te ouvi". "eu disse que sou Nestor. o que cê tá ouvindo aí?" "ah, uns podcasts sobre política. é sempre um horror." "é sempre um horror. eu deixei de ouvir. prefiro viver, fazer coisas boas. porque se esse cara continuar como presidente..." e foi então, vendo e ouvindo Nestor articular as primeiras palavras, que me fixei nos pelos pretos e brancos da barba se movendo por entre os elásticos que prendiam a máscara pelas orelhas. um tiozão de esquerda nove anos mais velho que eu. Nestor foi se espalhando, e eu fui dando entrada. de política trocamos de assunto pra cinema; de cinema pra literatura; e já era início de tarde, e eu o convidei pra conhecer uma cafeteria ali perto onde há café e também livros; nos demoramos na literatura; de literatura pra música; de música pra adolescência; e a tarde já virava noite, e do café passamos pro vinho; da adolescência pro primeiro beijo; do primeiro beijo pras saídas do armário - pra família, pros colegas de trabalho, pros novos amigos; de saídas do armário pros grandes medos. eram dez da noite. tínhamos passado doze horas conversando. o café estava fechando. pensei em trepar com ele na rua mesmo. mas ele, por outro lado, pareceu querer preservar alguma coisa de vitoriana daquele momento. pediu, apenas, que eu mandasse um oi no whatsapp e disse que responderia quando chegasse em casa, pois a bateria do celular tinha acabado. de pronto registrei o número nos contatos e corri pro aplicativo pra conferir a foto de perfil que ele escolhera. um pouco decepcionante. mesmo assim escrevi: "conforme o prometido, oi". como sempre, eu mantenho minhas promessas. eu aposto.

paramos nos grandes medos, e Nestor é isso pra mim até hoje.

hoje meu coração disparou PARTE I - alínea a

 "como não escrever sobre o amor?" é a última pergunta na coluna de uma escritora publicada hoje, 26 de novembro de 2021, no jornal Folha de S. Paulo.

ora, não escrevendo. o problema é que quase tudo surge ou acaba em amor, leva ao amor. o problema é que os melhores textos, os melhores romances, as melhores músicas, os melhores filmes, as telas e esculturas mais belas são sobre amor. o amor não é um tema, é o pano de fundo de quase todos os temas mais interessantes. pouco(s) escapa(m) ao amor. eu sou um deles.

esta não é uma história de amor. é uma história de arrebatamentos, de fascínios. e de arrebatamentos desencontrados: Nestor nunca foi arrebatado por mim (ele nem sabe mais quem eu sou [será mesmo que nenhum resto do meu rosto grudou na sua memória? não.] e se sabe algo sabe errado, é um equívoco) e a Pequena acho que nunca será. porque eu sei que a Pequena quer alguém - simplesmente alguém com quem estar. ela gosta de mim, mas ela gostaria também daquele e do outro lá desde que eles topassem tudo o que ela propõe. eu topo. assim como topava todos os convites de Nestor, para qualquer atividade no frio ou no calor, para beber e para comer sorvete, para deitar no gramado do parque buenos aires. eu sou assim: eu topo. eu aposto.

então, esta história não é uma história de amor. é uma história de arrebatamentos desencontrados. mas o amor é o pano de fundo desta história, a redoma onde os desencontros acontecem. tento ter cuidado em escrever e falar a palavra "amor". porque o amor não me conhece, não sabe meu nome: comigo o amor age como Nestor. escrever e falar "amor" exige compromisso, comprometimento e cuidado. é uma responsabilidade falar "amor". o que sinto por Nestor não é amor, mas segue o curso de um sulco forjado pelo amor - caldo este que, admito, ainda quero que desemboque nos deltas de Nestor. o que a Pequena sente por mim também não é amor, mas eu venho percebendo que eu sou um veículo para ela por no mundo alguém que ela vai amar muito. eu não amo nem sou amado. mas o amor me circunda e me circunscreve. talvez seja só isso que terei na vida.

hoje meu coração disparou PARTE I

 um pé na bunda te joga pra frente. e a melhor vingança é ser feliz.

ontem uma amiga me deu de presente, de surpresa, "copo vazio". na dedicatória ela escreveu: "seguimos juntos ... em tudo mais que essa experiência de viver nos traz". uma dedicatória digna de ser escrita, afinal. na narrativa, Mirela levou um ghosting. ela se arrasta pelas ruas de São Paulo, transtornada para entender o porquê de Pedro ter desaparecido depois do encontro arrebatado entre os dois. Mirela não está só, nem Pedro.

[a trilha sonora deste parágrafo é "devolva-me", cantada por Adriana Calcanhotto.]

soube que Nestor está bem e namorando. aquela alma atormentada. faz exatos três meses que deixamos de falar. foi um ghosting reverso: ele desembarcou aos poucos de mim, e caiu no meu colo a responsabilidade de dar fim àquelas seis semanas de um encontro também arrebatado (para mim, ao menos [que desde o início suspeitei da desconfiança dele sobre meu corpo, da capacidade dele em foder, da disponibilidade dele para meus espinhos], que sou um personagem saído de um romance da Jane Austen). ele não me quis mais, e fui eu quem precisou parar de responder as mensagens dele mesmo querendo, desejando, desesperando cada centímetro quadrado da sua pele. perverso, Nestor não me chamava mais para almoçar, jantar, nem para tomar café, nem para sentar no parque e falar mal das senhorinhas bolsonaristas cheias da grana que circulavam com seus cães shitsu, yorkshire, lhasa-apso, tecendo comentários horrorizados sobre as eleições de 2022 - mas ele manteve uma comunicação territorialista, feita dia sim, dia não, do tipo guerrilha, em cujas mensagens ele dizia absolutamente nada, ora uma foto aleatória, ora um meme, ora uma figurinha ou um gif repetido em vários grupos de whatsapp. não eram convites para estarmos juntos; era só uma estratégia para me impedir de esquecê-lo. não sou homem disso. tomou um ghosting reverso. os dias foram e têm sido horríveis desde então. o que eu senti e sinto por ele é forte demais. mas esse arrebatamento é um animal, uma coisa viva que pode morrer. eu quero que morra, mas o arrebatamento luta por si próprio. o que sinto por Nestor luta, não se entrega, revida.

[a trilha sonora deste parágrafo é "ela é carioca", cantada por João Gilberto.]

mas conheci a Pequena no mês passado. cheguei num churrasco na casa de amigos, debaixo de chuva, e reparei nela de imediato. a Pequena é - pequena. magrinha, pequeninha, peitinhos, mãozinhas. é enérgica, tem fala acelerada, tem uma piada para fazer a cada frase e uma história nova para contar a cada cinco minutos. ela é fluminense, ela é fluminense - daria para reescrever a música. olhos de gata, oblíquos, honestos. nos olhamos de cima abaixo durante algum tempo. ela demorou um pouco mais nessa atividade porque tenho um metro e oitenta e cinco. e ela gostou. eu me demorei mais nessa olhada, apesar de ela ser pequena - a minha Pequena -, porque a camisa que ela usava marcava os bicos dos peitinhos. e gostei da combinação de saia rodada e tênis adidas. ela fumava, e eu estava aprendendo a fumar novamente (como se fosse possível [e é], fumar é como escrever, escovar os dentes ou andar de bicicleta). ela tinha uma carteira de marlboro light e eu, um saquinho de tabaco natureba. "ela é linda demais e além do mais ela é fluminense, ela é fluminense", eu cantava no seu ouvido. fumamos juntos porque eu fingi estar sem o isqueiro só para ela vir em meu auxílio - e veio. a Pequena e seu isqueiro amarelo. na primeira baforada eu quis beijá-la. e de fato nos demos mil beijos naquele churrasco, e eu perguntei a ela depois de muita cerveja e muita maconha: vamos dormir juntos, pelados? meus amigos, depois, insistiam que eu deveria parar com aquilo - porque eu só estaria querendo chamar atenção em um churrasco que deveria ser só diversão. minhas amigas, por outro lado, foram mais furiosas - desde quando eu pegava mulher, desde quando eu gostava de mulher, desde quando eu sabia chegar numa mulher? ora, desde que eu vi a Pequena. e desde que Nestor desembarcou de mim. os dias foram e têm sido horríveis, mas a pequena tem me dado momentos lindos, oásis na maré de mijo.

nesta história há um tanto de Mirela, um tanto de Pedro. muitos copos vazios. Nestor me destruiu com seu silêncio. mas me jogou nos braços da Pequena, alguém sem cuja companhia já não consigo imaginar meus finais de semana. penso em Nestor em todas as horas de cada dia desde que nos conhecemos no minhocão. sinto raiva dele, e pena, e saudade, e orgulho. o bichinho é bom no que faz. mas a Pequena é, também, um encanto, uma leveza, um oásis na secura da rejeição. (a Pequena é um oásis em qualquer lugar onde ela esteja, onde eu estiver.) com a Pequena eu gargalho de Nestor, mesmo que ela saiba que ele tenha existido na minha vida, com seus paredões. ela sabe o suficiente de mim. ele soube de menos, e eu nunca vou perdoá-lo por isso.

 "morrer de amor e continuar vivendo": quando eu era criança, com menos de 5 anos, uma vizinha tinha uma cachorra, a diana. ela tinha pelos longos, pretos e brancos. eu, de pé, tinha a altura dela e me deitava sobre seu corpo. gostava de tocá-la, afundar meus dedos na pelagem, sentir o cheiro de animal, as lambidas no meu rosto. me divertia assistindo diana pular para morder no ar o pedaço de carne que a vizinha arremessava enquanto preparava o almoço. meu sonho de liberdade ainda é passear com diana, gozar da sua companhia quando o dia nasce. latir junto com ela. e durar o tempo que um cão dura no mundo, peludo, deixar só saudade e histórias engraçadas de roupas mascadas, de vidros quebrados.

 tu acabou de sair daqui. dou pulinhos atrás da porta, feliz, sabendo que à noite vamos numa roda de chorinho beber caipirinha de limão siciliano, que tu adora, sem açúcar, porque eu preciso. no espelho já não sou mais o mesmo: nenhum pelo da barba está inflamado. sorrio porque, ao acordar, tu disse que sonhou comigo. tu acabou de pegar o metrô e me mandou mensagem avisando que está tudo bem. de nenhuma das minhas feridas escorre pus. e avisou que sente saudade. me debruço na janela e sinto o vento, uns poucos pingos de chuva. hoje a noite vai ser fria, e vamos dormir juntos. quando acordarmos, faremos o de sempre: eu na conchinha de fora e tu na de dentro; viramos; tu na conchinha de fora e eu na de dentro; beijos; tu fala dos teus sonhos, e eu em silêncio porque nunca lembro dos meus; levantamos da cama; fazemos xixi; tomamos trezentos e cinquenta ml de água em jejum; vamos pra sacada ver o sol nascer e fumar um cigarro de kumbayá cada um. tu acabou de dizer que chegou em casa e manda um emoji de coração. eu me jogo no sofá e amo cada parte de mim em que tu encostou durante a noite.

 eu apoiei e incentivei todas as tentativas e fantasias de tu ter uma casa. sem sucesso. eu desapareci com tudo que era teu, eu não tenho mais nada teu, a não ser tudo. pra onde eu me viro tua cara está virada pra mim, teus olhos grudados nos meus. em cada hora de cada dia, em cada sonho à noite. é uma tortura que eu só aguento com cigarro. um são sebastião fumante que apaga as bitucas em si próprio.

 ninguém volta pra casa sozinho. ninguém faz sozinho da tenda uma casa. não consigo amar dois homens ao mesmo tempo. não esqueço desprezos, nem rejeições. preciso diminuir o cigarro. já tenho um plano de saúde privado. odeio crianças dentro de aviões. poucas foram as vezes em que tive uma casa. nunca casei. nunca amei - melancólico é o pai cujo filho não é capaz de amar. quase sempre chorei quando afirmei que me sentia mais feliz por um ou dois segundos. e quase sempre foi mentira, e quase sempre durou menos que aquilo. detesto trabalhar depois das 19h. estendo a roupa lavada no varal, mas gosto mesmo é de passar camisas a ferro, na tábua - ninguém entende isso. já me senti o último homem assistindo ao por-do-sol. nunca desejei a fama, nem o brilho. não sou imprescindível pra nada. família sempre foi um dever. amizades se tornaram menos mistério com a idade. a velhice, um espinho. o corpo é o tempo presente que se desgasta, pedra de areia na margem do rio em erosão. não extraio prazer da dor, nem da humilhação. minto e me envergonho. quero mais da vida do que ela é hábil em me dar. não lembro dos meus sonhos - fria é a mãe cujo filho não lembra dos seus sonhos. pouco sei sobre o porquê de eu estar aqui do jeito como estou. tentei poucas vezes de quase tudo, e quase sempre deu errado. o que deu certo me manteve vivo. por isso sou eu quem percorre o vão entre as torres gêmeas sem cabo de segurança.

 [...]asia com a morte, com a dor, com o caos. tu chegou e tirou tudo, tudo: o ranço, o mofo. pegou com a mão e espanou o pó, arrancou as teias de aranha. os dias mais felizes da minha vida, os mais nublados, os mais frios, os mais demorados. nunca suportei aeroportos, e tu aterrissou em mim, abriu o reverso, ocupou o hangar. desembarcou pra dentro. tu tirou tudo com a mão: as ideações, os ideais, as dúvidas. ainda me pergunto como chegar em casa, o que fazer em casa, como limpar a casa. mas agora eu tenho tu, tu, tu. eu sorrio enquanto tu lava a louça de cueca furada. eu sorrio enquanto tu baba no travesseiro dormindo. eu sorrio enquanto tu escova os dentes pelado. um homem aterrissou em mim. eu trabalhando, tu assistindo tevê; eu deslizei o olho pro lado da tela pra te observar; o quase riso com a quase piada da série que eu indiquei; eu sabia que tu não estava gostando, mas tu te esforçava porque queria me agradar; eu sorri. eu nunca suportei aeroportos. eu sempre fiz banheirão em aeroportos: não mais. ou, talvez, sim, pensando em ti, em cada centímetro quadrado desse corpo pelo qual choro hoje de tesão e, ontem, de saudade. eu sinto a inveja em quem nos vê quando andamos na rua, quando jantamos juntos na tratoria, quando nos deitamos no gramado, quando pegamos o metrô, quando vamos ao supermercado e tu briga comigo porque estou comprando muito vinho ou se sigo escolhendo a manteiga mais cara. somos tão nós mesmos que irrita quem nos encontra. as frases que não precisam de palavras para terminar: eu sei qual o verbo, qual o adjetivo que tu usa pra a ironia apropriada. tu, tu, tu me preenche, na boca, na bunda, na insônia que tu suporta comigo e aguenta até o sol nascer pra depois voltar a dormir e levantar só às 11h. eu to odiando aviões. me levam pra longe de ti, e tu pra longe de mim a me espelhar no teu olhar até sumir. eu e tu: não há quarto que aguente, não há cama que sustente. pesamos, efervescemos, crescemos onde o lodo invejoso dos outros grassa. tu, tu, tu pediu pra vir e veio e ficou e eu chorei. e choro até hoje. e gozo até hoje onde tu me pedir pra gozar, e onde eu também assim escolher, pois cada centímetro quadrado da tua pele acolhe meu sêmen e a minha, o teu. compartilhamos peles. nem todo o látex do mundo enrolado em volta do meu pinto impediria a transmissão dos vírus mais potentes com os quais nos recontaminamos: a cumplicidade de quem vai desligar os aparelhos quando eu estiver em coma, a lealdade de quem vai trocar tuas fraldas quando estiver imóvel e inconsciente, a resignação de quem vai ver me ver apaixonar por outro e esperar passar. tu, tu, tu. aperto tuas mãos contra minhas costas pra enterrar teus dedos nas minhas costelas e te fazer entrar, imiscuir, mesclar, misturar. somos um humano de 46 pares de genes autossuficientes e complementares. teu esperma gruda no meu e faz gigantes: a vênus monstruosa sai da concha. queremos cada gole de toda a ressaca do outro. cada gemido de dor de cabeça. cada vômito, pois não temos nojo dos fluidos do corpo, das excreções do corpo. pois o meu é também o teu. se mijamos, mijamos juntos, e eu deixo tu molhar a mão no meu jato. e lambo tua mão depois, pois o que sai de mim sai de também de ti, e entra. tu, tu, tu em cada fotografia emoldurada do edifício copan. inteiro e sublime pensando em se jogar da janela. não seria criativo. eu, eu, eu te agarrando pela camiseta verde da osklen e suplicando: [...]

 a noite foi de festa. não dormimos.

eu chorei quando tu deixou de falar comigo.

eu não chorei, mas quebrei um copo.

fiquei esperando tu mandar mensagem, chamar pra conversar.

tu disse que ia seguir tua vida. eu deixei.

era o contrário: era um pedido pra tu não deixar eu seguir minha vida sem ti.

quando mais tu diz uma coisa querendo dizer o contrário?

eu já disse que te odiava, que queria que tu fosse feliz com os caras que tu tava pegando, que tu mudasse logo pra Europa. tudo ao contrário.

tu quer que eu esteja aqui, agora?

eu quero em todas as horas de todos os dias desde que eu te conheci.

ao contrário?

não, na única direção que pode ser. reto, direto, o papo não faz curva.

eu quis te ligar e te xingar, principalmente depois de uma garrafa de vinho.

deveria ter feito.

[risos] posso agora?

pode.

não quero te xingar. quero ficar. posso?

com uma condição.

[...]

não me deixe mais de tanga, no corredor escuro e úmido da tua tristeza.

[...]

 - beijo. beijo. língua, beijo. olho no olho. beijo, língua. pau duro. -

já não está escuro. e eu to feliz.

então eu quero morar no teu corredor.

o domingo com nuvens amanheceu denso da ressaca alegre da festa da noite anterior.

 a ilha se habita. é noite de festa.

 agora não se chora mais: o ghost se fez em carne. e ficou.

 te ver hoje me fez homem. obrigado. uma nova pele cresce em mim. obrigado. fique pra sempre nesta posição, deitado na minha cama, dormindo, nu. obrigado. tu veio. obrigado. eu te esperei. e entendo teu despedaçamento. obrigado por despedaçar-se em mim.

 [...]eito de ser feliz. pois não acredito nisso. não acredito, tampouco, que ele estivesse indisponível, indisposto para relacionar-se. "não se trata de um problema com você, mas de um problema com os outros em geral." eu não sou os outros. [acabei de lembrar que um dia ele me disse essa frase, mas saindo da boca da mãe.] é claro que se trata de um problema comigo. mas viver o esplendor da rejeição não admite atalhos. há de se bater um todas as portas desse palacete. às vezes penso em mudar de cidade. ou beber muito. optei por comprar novas roupas, coloridas e estampadas, curtas. quero expor meu corpo. e por falar em corpo, me exercito todo o dia. e por falar em corpo, mudei a dieta. e por falar em corpo, fiz mais duas tatuagens. e agendei a próxima para daqui 3 semanas. às vezes penso em pedir demissão do meu job. sinto que não sou descolado o suficiente pra ele. passei a detestar cerveja. ele queria alguém mais alegre, mas nossas playlists no spotify são tão parecidas. a cada dia que acordo vou a um velório diferente. de uma abelha no tanque, de um mosquito no ralo, de uma aranha na janela. cada cadáver conta uma história, e eu os honro por isso. portanto: é claro que o problema é comigo. às vezes quero só chorar, sobretudo quando chove. se me fosse dada a opção de recomeçar minha vida já sabendo do que aconteceria só para não repetir, eu escolheria morrer de vez. porque as novas escolhas me levariam a erros piores. ele não foi um erro, embora eu tenha sido um para ele. cogito morrer, sem dúvida, mas com isso não preciso me preocupar. desço um degrau por vez para melhor respirar o ar úmido desse porão. toco as paredes para bem sentir o mofo entre os dedos. quero conhecer todos os cômodos da recusa. nas últimas semanas sou só o pó de glitter, sem brilho e sem cor. há dias em que tenho vergonha; em outros, só cansaço. é claro que penso em fugir, sumir, desaparecer. me sinto descartado. trocável como um bonecão de posto de combustível que não tem direito de ser f[...]

 vou a um café. vendem-se livros ali. sento de frente para a estante. lá está ele, vibrando, gritando. olho pra ele, e dói. baixo a cabeça. ligo o computador. ele late e mia. peço um café, leio um artigo em inglês sobre uso de medicamentos. preciso de qualquer coisa que me arranque da mesa, da prateleira. ele ainda canta. chega o café. faço um cigarro. vou pra calçada. fumo o cigarro, empurro o café pra dentro de mim. ele assovia e pisca pra mim. volto pra mesa. uso de medicamentos nos estados unidos. altas taxas de prescrição de antibióticos para crianças. ele me lambe da prateleira. milhares de dólares gastos com tratamentos de infecções respiratórias agudas. um rapaz bonito chega sozinho, senta à mesa, olha no celular. fantasio que ele pode estar te esperando. mais um date, mais um encontrinho, mais um contatinho. ele uiva. o rapaz bonito só pode estar te esperando. tu só pode estar vindo encontrá-lo. tu só pode ter me esquecido. ele muge e rosna pra mim. tratamentos com antibióticos devem ser reduzidos ao mínimo de dias. ele é teu novo rapaz. vocês são lindos juntos. peço mais um café, faço mais um cigarro. fumo na chuva. eu fantasio que vocês vão ficar juntos para o resto das suas vidas. tu só pode estar feliz, e eu, molhado. te conheço, te desejo. e tu solto no universo procurando outro e outros. te conheço e eu preso naquela praça, naquela tarde. nem um minuto se passou pra mim desde então. eu quero que isso pare, que isso termine. que horas tu chega pra encontrar teu boy? na prateleira ele me chama pelo meu nome.

olá, ghost.

por quê? por que se recolocar em rota, atravessar a zona, passear pelo meu olhar? sofrimento: capítulo dois. e eu amei. eu me refestelei de novo na vontade de estar em ti, por sobre tua pele. não quero ser a sombra da tua sombra; eu quero ser o corpo ao teu lado, tua companhia, o sorriso que sorri antes e depois de ti. [o trem é meu amigo, não posso odiá-lo.] não durmo. sonambulo na expectativa de um encontro, reencontro, novo encontro, num outro tempo, numa outra vida; teria visto em mim outro homem? eu preciso dar um destino para a força do que sinto. o que sinto é meu, minha habilidade, minha capacidade. o que isso me permite fazer com a vida; a cada convite para me desacomodar eu digo sim, sim. eu digo sim para me rasgar. eu usava roupas de tecido sintético quando nos conhecemos; eu brinquei com fogo; a roupa queimou e grudou na minha pele, chamuscada; eu te arranco de mim como tecido sintético em chamas. o que eu faço com essa força? [o trem é meu amigo, ele carrega pessoas vivas.] eu vou matar o tecido sintético queimado, arrancado da minha pele, pedaços chamuscados do que queria de ti e contigo. eu vou matá-lo como se matam todas as belezas. eu vou assassinar os pedaços sintéticos queimados de pele, da pele que encostou em ti. vou trancá-los num caixote de vidro. sem comida e ser ar. vou matar essa força por inanição e por asfixia. não vou dar de comer, não vou dar de respirar. [o trem é meu amigo, ele é o retrato de são paulo.] por quê? depois de ti só sobra meu corpo sem pele, em carne viva, viva, viva.

 [...]tei no chão do apartamento vazio. nenhum móvel. só o som dos trens indo e vindo. a coluna toda aderente ao piso. a cabeça pesando no décimo quarto andar pela gravidade que era, sem dúvida, maior que no nono. senti que tinha todo o tempo de uma vida para tentar ser feliz naquele lugar. levantei com esforço a cabeça do chão pra ver a paisagem: até a cantareira. eu estava ancorado ali. o teto mexia em redemoinhos que, percebi mais tarde, eram futuros problemas oftalmológicos. eu não flutuava, nem dissolvia. eu era uma das rochas oceânicas que permanecem através de eras, afundam navios, destroçam submarinos; uma das rochas oceânicas onde moram gerações de corais, peixes e moluscos, nobres e plebeus, sagrados e profanos. eu com toda a força de alguém que não sabe o que quer, mas quer. eu com todo o peso de quem tem o que carregar e oferecer como dád[...]

 olá, ghost.

hoje passei por uma das ruas onde nos despedimos. foi uma despedida à noite, escura, fria. evito a qualquer custo, a qualquer distância, passar pelos mesmos pontos onde coabitamos. escolho a outra calçada, a outra rua, o outro bairro. fujo, mas te reencontro como ghost em cada paralelepípedo. evito a lembrança. evito a possibilidade de cair em um túnel e ser arremessado de volta para o momento em que estávamos lado a lado, se olhando, se escutando, se tocando. sinto ser possível que o arrebatamento, que o encantamento que senti possam ter grudado, impregnado, se enroscado em cada paralelepípedo. desvio. mas sei que te procuro. como um cão que fareja: estou no teu encalço. escorei numa varanda de onde se vê a vista que te salvou, te curou. de fato, é como ter um mundo feito de tapete em concreto. e o céu tocado pelas pontas dos altos prédios, por onde passa o sol todos os dias. muito sol. não considero aquela vista curativa, nem salvadora. admito, porém, que olhar a cidade de lá é um aconchego. há tanto o que viver aqui. quis comer a cidade com uma colher, como quem a enfia com furor em um tiramisù. quero comer esta cidade em colheradas. e o trem da cptm passa bem ali embaixo. e acho que isso, sim, pode me salvar de ser Anna Karenina. é porque tem gente ali dentro. é porque assim não me sinto um fantasma no mundo. é porque hoje descobri que ser sozinho não é o meu maior problema. nunca foi. tua presença, ghost, é uma lacuna, um buraco. de todos, aquele com mais espinhos. hoje meu coração disparou e foi de tristeza. não foi de angústia, nem de pânico. foi de pesar. entristeci com o vazio. há um vazio, uma ausência. um lugar que não ganha sentido, nunca, que permanece vacante, que recusa preenchimentos e distrações. não porque estou sozinho, mas porque fiquei diante de uma parte, de um lugar que é vazio: um buraco em um paralelepípedo. sozinho eu me ouço; no vazio, entretanto, só há ecos.

 então vamos falar as merdas? ok.

vou gritar mesmo, esculachar, cuspir nessa bosta de prédio, não serve pra nada de tu está dentro, eu sempre disse o que queria, O QUÊ?, eu sou uma pessoa honesta, eu te queria e tu não me quis, eu respeito isso, não rolou, mas não precisava ser escroto desse tanto, que merda caralho, e esse lixinho que tu carrega contigo, ixi, não chega nem aos pés de que a gente imaginou que poderia ser junto, e mesmo assim tu vem me esfregar essa bichinha na cara, seu escroto sem alma, eu nunca disse isso, acho que tu me entendeu mal, para, calma, vamos conversar, não foi isso, me ouve, mas não, como?, queria sim todo teu corpo, teus beijos e companhia, mas agora teu rosto já se esvai, não lembro da tua pele, como era?, era bom mas era caro, cala a boca bicha nojenta, não sou assim e não fiz isso, larga do meu braço se tu quer falar comigo, não seja estúpida, e o bafo do cigarro que tu tem me enlouquece, beija aqui e isso beija mais, sua merda escrota me deixou num apagão emocional, essa bosta desse prédio, GRITO CONTRA O PRÉDIO, porque é feio e sombrio, todo dia vou jogar lixo no prédio, não admito que tu diga que foi por pouco tempo, que nem valeu a pena, que podemos recomeçar de outro jeito, não vou, não admito, não sustente essa mentira, flácido e macio É A BOSTA DO TEU PRÉDIO, eu malho e pode não estar fazendo efeito agora mas vai fazer aí tu vai te arrepender, não me responda. não me reSPONDA. NÃO ME RESPONDA. tu nunca disse nada do que sentia, pensava ou queria, eu fiquei num apagão emocional. não. não. eu seguro. não vai. eu sei. nem um beijo?

 [...]nterrei pontas soltas. sujas de terra. enlacei uma e outra numa tentativa de amarração. esvaziaram-se sem vida. viajei, voei. busquei um esquecimento, qualquer que fosse, de ti. sonhei e não entendi o sonho. bebi. carreguei comigo essa bola murcha. não é de quilômetros que é feito o desejo que tenho. desfiz-me na água do mar. não é de carne que é feito o desejo que tenho, nem de sangue, pois nenhum tubarão me mordeu. detesto areia. colocaria azulejo em toda a praia se prefeito fosse do lugar. nadei e dormi lembrando de ti. lamentei que não estivesse comigo. o sal, o sol, as ondas e a cozinha lamentaram também. disseram-se que foi melhor assim. tive medo de cair do trigésimo andar. mas o trigésimo andar me prometeu que não me empurraria. duas pontas soltas sem v[...]

 [...]ero que sejas bem feliz junto do teu novo rapaz. faço votos de que goze bastante, ria bastante, caia de boca nesse arrebatamento que é ser reconhecido por quem estamos apaixonados. parabéns. concordo, gozar na cara é mais gostoso. que bom que se gostam. é. nossa, que rápido, né? parabéns mesmo. é, eu também acho: há algumas pessoas que passam pelas nossas vidas para ser degraus, elevadores, andaimes, catapultas. aham. é, entendo. imagina, nenhuma. ofendido eu estaria se tu não soubesse quem eu sou. é, né? verdade, sou uma pessoa muito de boas. não sei se tu te importa em eu perguntar, mas pra que perder tanto tempo comigo, então? sim, foram vários dias, várias horas. lembra? não, eu estava usando óculos e uma malha. estava frio e botei um casaco pesado. lembra? não, nunca fomos a pinheiros. não. eu subi direto pro teu apartamento. estava frio. é. eu preparei um cousz cousz com amêndoas, cebolinha, páprica. mas tu me disse que não comia peixe. lembra? ah, entendi. é. a vida passa, sim. aham. meu trabalho tá legal, acho que vão renovar meu contrato. não, ainda não fui à europa. tá difícil, né. o euro ao preço que tá. entendi. nunca mais voltei no parque buenos aires. porque não quero, não faz sentido, tive pouco tempo. isso, muito trabalho. não é no capão redondo, é no campo limpo. tu tem certeza que sabe qual é o meu nome? foi só uma piada pra ver se tu tá acordado. é. sei. então, menino, fiquei com uns guris aí, mas na maioria das vezes não rola. tu sabe bem como é, quando não rola, né? estar com quem não rola é brochante. não é? é. verdade, um dia aparece. príncipe? é. um dia ele vem. não to mais morando lá. mudei pra barra funda. não, eu morava perto da paulista. ah, é, mesmo? que bom, ótimo bairro. tranquilo pra um casal morar. aham. daqui a pouco serei feliz, seremos todos. oxalá. aham. obrigado. imagina, nenhuma. pra ti também. tenho certeza que sim. tchau.

 olá, ghost.

tu ainda chacoalha correntes atrás das portas. ainda geme de madrugada. ainda assopra meu pescoço enquanto lavo a louça. depois da tua morte, tu é assombração que flui, que se move como gás.

aos poucos faço as pazes com todo o terror que tua figura me evoca, me provoca, me impõe. esta é uma cidade fantasma, de fato, e preciso viver nela. escolhi estar aqui. é uma cidade fantasma porque dá margem para que as feias imagens do desespero ganhem voz e cheiro. somos todos párias aqui. eu ainda não estou morto, mas rogo para que eu saiba discernir em qual horror eu habito quando a hora chegar. não tenciono morar na casa de alguém puxando os cabelos dos vivos enquanto eles dormem. ainda não estou morto, mas já sei que tua presença é assombração. já separei tua vida da tua morte. já vi teus olhos sem fundo. tu é mais um habitante morto desta necrópole.

o que eu faço com meus mortos? por um tempo vou sentir dor ao pensar em ti, ghost. vou repassar todos os momentos em que eu deveria ou poderia ter evitado tua morte. e vou chorar pensando que tu não queria me deixar. depois vou praticar a revolta porque eu saberei que tu morreu porque tu quis. e vou chorar pensando que tu premeditou me deixar. na surdina da minha alegria tu já tinha data para falecer. em seguida, vou entender que foi só um encontro, que não há explicação do porquê tu quis morrer, que tenho pouca participação em qualquer decisão que tu tenha tomado sobre tua própria morte, que se tu me deixou foi porque tu sentiu que assim era pra ser - simples assim - e que isso não significa que uma parte de mim tenha que morrer também. pra ti eu já não sou assombração. pra ti eu nunca estive vivo, nem no toque, nem na escuta. nem quando eu disse que estaria feliz em qualquer lugar onde tu também estivesse, qualquer lugar que tu me convidasse pra estar contigo.

no que me é dado saber, estou vivo. mas há esse negativo de vida com o qual preciso coabitar. tu uivando para a lua, tu derrubando quadros, tu movendo talheres. um morto que ainda me visita. meus mortos: são a sombra da minha história viva. caminho vivo pela necrópole que mantenho em cada linha da minha história. 

 [...]á conseguia lidar com o silêncio do apartamento, com a luz apagada para dormir. permanecia, porém, como ghost que não desaparece, a lembrança do homem. a inquietação do domingo nublado o empurrou para as calçadas. talvez caminhando a dor drenasse: o ralo por onde escoava era na boca do seu estômago. andou e chorou em uma porção nordestina de são paulo. deixou traços de lágrimas na piauí, maranhão, alagoas. nina simone o acolheu: o homem precisava dele. fantasiava que, ao retornar para casa, o homem estaria à sua espera na portaria do seu prédio. na tentativa de expulsar esse delírio, caminhou durante três horas por quatro bairros diferentes. enxergava o homem por de trás de cada arbusto, em todas as janelas dos prédios, saindo de carro das garagens abertas. passava os olhos em todas as mesas dos botecos, em todas as filas de espera dos restaurantes, desesperando encontrar o homem. percebeu que, mesmo já sabendo lidar com o silêncio e com o escuro, buscava o homem, queria estar em face do homem. não tentava escapar; circulava pela cidade com o intuito de encontrá-lo. não fugia; ia em seu encalço. e passou a assumir para si que, sim, queria olhar nos olhos do homem e suplicar, como no pôster do filme "lua de fel". era tarde para isso, e fora de moda também. mas se pudesse, se lhe fosse dada essa chance, ele não teria pudores em implorar. só mais um toque na barba, no cabelo; só mais um beijo na orelha; só mais uma risada com uma taça de vinho compartilhada. só mais uma companhia do seu ghost preferido.

era um sábado. manhã fria, chuvosa. o som dos pingos oscilava entre "romântico" e "melancólico". ele acordara às seis e treze, sem coisa alguma para fazer. lembrou do homem. teve a certeza de que, para o homem, o som dos pingos de chuva cravava no centro da definição de "romântico". perdeu alguns minutos olhando pela janela, compondo o corpo que deveria estar com o homem naquela manhã. não era o seu, por certo, pois o homem o havia rejeitado. perdeu mais alguns minutos elencando partes e características do seu próprio corpo que o homem teria detestado. antebraços finos; gordura abdominal; glúteos flácidos; pescoço longo; olhos inchados. marcou horário na academia. preparou café e tomou uma xícara, sem açúcar. a chuva engrossou: o homem deveria ter apertado a conchinha, deitado na cama quente. cogitou a hipótese de que, talvez, o homem o tivesse rejeitado não apenas pela sua aparência e consistência físicas, mas também pela sua classe social. morava num apartamento alugado onde não incidia luz solar. metade dos móveis não eram seus. ele próprio ajoelhava-se para limpar o banheiro e o vaso sanitário uma vez por semana. o cartão do sus estava sobre a mesa, junto com guias para agendamento de consultas. era pobre, afinal? (pobre marca horário na academia?) encheu mais uma xícara com café e, daquela vez, misturou uma colher de chá de açúcar demerara e mexeu o líquido com uma das duas, apenas duas colheres que dispunha. (pobre compra açúcar demerara?) no primeiro gole pensou em acender um cigarro: chuva, frio e café pediam por cigarro. e pensou em vinho. (pobre pensa em vinho?) sabia que o homem havia tomado vinho com o outro na noite anterior em um jantar que acertava em cheio na definição de "romântico". riu de dor. e pensou em cerveja. e pensou na sua própria pança, cuja responsabilidade era sua mas também da heineken e da stella artois. ele sofria mas bebia bem. a chuva não parava. desejou ser amigo de bridget jones. o homem saberia como aproveitar um sábado frio e chuvoso. vestiu uma calça de moleton, uma camiseta branca manchada na região das axilas, um casaco, meias e chinelos. saiu do apartamento, do prédio, sem guarda-chuva. foi até a lanchonete cuca real, comprou marlboro e um isqueiro vermelho, para lembrar o inter de porto alegre. pediu dez heineken long neck; só tinha brahma. who cares? levou para casa doze latinhas brahma. higienizou todas com álcool setenta por cento e as colocou na geladeira, que precisava ser descongelada. depois da primeira baforada do primeiro cigarro, desmarcou academia. a chuva parara. o homem deveria já ter feito sexo àquela hora; imaginava-o tomando banho com outro. toda a delicadeza de um dia como aquele - sábado, chuvoso, frio - lhe escapava. a sujeira do tabaco se espalhava por dentro dele, pelas suas veias e artérias. e a bunda por mais um dia mole e os olhos por mais um dia empapuçados. soube-se pobre: sozinho e classista; arrogante e preconceituoso. habitava o coração de uma palavra ainda não inventada para o sentimento de.

 [...]va pensando em causar. fazer algo que impactasse a vida paulistana de modo a deslocar o interesse urbano daquele dia preciso, daquela hora agendada. fazer algo que tumultuasse as redes. quebrar as vidraças da sede do banco safra. pousar um boeing no minhocão. implodir o copan. (essa seria minha cartada final, mas eu morreria um pouco em cada tijolo, em cada elevador, em cada ripa de madeira do saguão.) cagar nas vidraças do masp e deixar escorrer. marcar suruba na sinagoga da doutor veiga filho. gritar "lula livre!" na faria lima. botar uma camisinha no obelisco. (e tentar sentar nele depois.) correr a frei caneca pelado não é uma alternativa porque é uma redundância. e um vexame, sejamos claros. limites. [...]

 [...]scongelou e derreteu. escorreu pelo chão, desceu o ralo da área de serviço. (lembrar de jogar água fervente no ralo da área de serviço, pois as mosquinhas já se acumulam na parede de azulejo.) não só de choro, de lágrima, de suor pela angústia de ficar sozinho no seu apartamento de quarenta metros quadrados com vista pra um paredão, voltado pro sul. não só de mijo que desceu suas pernas sem aviso porque tinha tomado três garrafas de vinho e caiu desmaiado na cozinha num quase coma alcoólico. não só. a coisa fria que ele era havia se desprendido de um grande continente. estava à deriva, se movendo em alto mar, em direção aos trópicos: a coisa fria que era (não esquecer de descongelar a geladeira medieval que foi alugada como mobília do apartamento.) (lembrar de comprar um bolo para o porteiro da madrugada, que o havia socorrido numa das madrugadas em que desesperou lembrando do outro, que conversou durante duas horas no saguão do prédio dizendo que tudo ia ficar bem e que deus aceita todos.) (não esquecer de retomar os exercícios de mindfullness na sacada.) o grande bloco de gelo se aproximava do paralelo 33. e ele se dissolvia no calor da palpitação em fantasiar que o outro, àquela altura, sequer lembrava do seu nome, do seu rosto, dos trechos de vida que lhe havia contado. ele estalava e craquelava e despencava em blocos que submergiam em alto mar, provocando ondas, na arritmia do coração crente de que o outro bebia e beijava e fodia e gozava e bebia e beijava com porra e gozava porque beijava com porra outros homens - que não ele. (lembrar de bater punheta, quando puder.) mesmo assim se movia, ia em direção aos trópicos, derretendo. ia ao encontro de algo que o outro arrancara nele. e convidava o outro pra ir junto, ou pra habitar o trópico quando ele lá chegasse. e se restasse algo desse pedaço congelado que ele era, se algo de frio ainda boiasse no mar dos trópicos que pudesse ser pego com a mão, queria que a mão que o pegasse fosse a do outro. aquela mão que o explorara. (não esquecer de fazer três séries de vinte abdominais-bicicleta pra esquerda e pra direita, diariamente.) (lembrar de jogar no tanque as cervejas guardadas.) o outro o havia deixado. o outro desembarcou dele. algo se incompatibilizou entre os dois. foi a pergunta sobre "o quê?" que o separou do grande continente. o outro talvez soubesse a resposta, de pronto. ele não sabia. porque pra ele o bloco de gelo ainda era um cont[...]

 [...]oite curta, de cinco horas. a angústia me impede de permanecer no escuro, trancado na paisagem do meu quarto pequeno, que é uma caverna. significa submergir nos acordes mentais da música da gal. significa vê-lo se aproximando em silêncio, e eu pronto para ouvi-lo, para deixá-lo entrar. sem conseguir respirar, me levanto. acendo todas as luzes do apartamento. ligo a tevê em qualquer canal em que haja alguém falando: um noticiário, uma missa, uma receita de bolo. é para dispersar aa voz dele me contando sobre o que gosta de fazer durante o carnaval. há pássaros em são paulo, bem-te-vis, canários, sabiás, tucanos e corujas. e pelicanos. atobás, albatrozes. pássaros caçadores na cidade onde faz vinte e um por cento de umidade em agosto. em mais uma noite curta eu precisei molhar uma toalha e deixá-la pendurada ao lado da cama, na minha caverna. talvez seja por isso que os pássaros vêm cantar na minha janela. repasso as últimas vezes em que nos encontramos e quase acredito que eu deveria tê-lo beijado desde a primeira vez. é só em mim que essa fenda separa; é só em mim que a noite curta pesa; é só em mim que a lembrança da última vez em que eu toquei na sua barba estraç[...]

 [...]sde janeiro, muito e pouco mudou. estou morando em são paulo, na consolação - nada poderia ser mais adequado pra mim do que morar no consolo. consegui trabalho, não emprego. desqualificado, trabalhoso, pesado, demorado, arrastado. um consolo sacrificial depois de seis anos de pura exploração, depois de seis meses de desemprego. mas não reclamo. estranho, não reclamo. passeio por higienópolis, centro, jardins, barra funda e santa cecília, conheço as ruas desses bairros e a posição solar da cidade como se a palma da minha mão fosse a terra plana. e é, em certa medida: meu mundo é um terreno plano, um pouco inclinado, dentro de uma redoma. entre maio e agosto escrevi um diário a mão, só pra exercitar. dei de presente a um amigo. um moleskine inteiro de letra cursiva, romântica. desde a primeira semana de agosto estou escrevendo outro diário, também a mão, também em um moleskine, mas menor. mais um presente para outro amigo. minhas amizades mais próximas são canibais, pois dou a elas partes de mim para se alimentarem. na verdade, o canibal sou eu.

são justificativas do porquê não tenho escrito mais aqui. mas estou escrevendo, estou escrevendo muito, talvez mais sinceramente do que nunca. talvez até devesse pensar seriamente em publicar um livro sobre tadzzio. ou sobre uma ilha deserta. por ora, decidi voltar aqui para não enlouquecer. não posso me dar ao luxo de ficar louco, nem de oferecer essa pequena vitória a quem contribui para minha loucura.

*

são três e meia da tarde de uma sexta-feira que já dura quatro dias. foi o horário em que nos falamos da última vez. desde então, desagreguei, desabei, desorganizei. em algum milésimo de segundo desde esse big bang, eu não suportei o apartamento que dá para um paredão, o escuro, o silêncio. em outro, eu caminhei de um lado pra outro, da sala para o quarto, depois para a sacada com vista para um bloco de concreto, olhei para cima e para os lados, para baixo, em busca de outros apartamentos com luz, com movimentação humana. queria ouvir músicas vindas de outras casas, gritos. não vi nem ouvi nada. meu coração palpitava, e me escorei no parapeito: segundo andar, muito baixo. eu não suportaria ficar sozinho. vesti qualquer coisa surrada, peguei uma máscara grande e óculos escuros. andei pela rua augusta, sentei em três botecos diferentes para tomar café e ver pessoas caminhando, sentir o sol. chorei por detrás de tudo, um choro de quem fragmentava e não conseguia coser os trechos de emoções muito, muito antigas. chorei com café, com pão de queijo e com pão na chapa lambuzado de cream cheese. fui subindo a augusta do centro em direção à avenida paulista. não conversei com ninguém simplesmente porque eu não conseguiria articular palavra sequer. quando choro minha garganta fecha: não comunico para fora. só via imagens da barba e dos cabelos desalinhados entrecortadas por choques que eu sentia no peito, na boca do estômago. talvez eu estivesse vivendo em um pesadelo e alguém no mundo acordado tentava me reanimar com desfibrilador. não deu certo. quando cheguei à sede do banco safra eu desabei. sentei o mais próximo do asfalto e do concreto que pude, no meio-fio. a avenida paulista nunca decepciona, pois sempre há transeuntes dispostos a te ignorar. é para lembrar que tu precisa ser discreto. e naquele momento eu era um escândalo. eu chorei pela confusão, pela rejeição, pela incompreensão. ninguém de fato viu, pois essas são emoções comuns no meio-fio que une a paulista à augusta. eu era só mais um em mais de um século. senti revolta e medo. derreti naquela dor estranha onde eu havia molhado meus pés.

eu estou muito cansado. é um dia muito longo, esta sexta-feira que não acaba. esse desprezo que repete o gesto em looping. a indiferença paralisa o tempo na melancolia, que é um gás. é uma gravidade que me impede de levantar. minha cabeça dói e pende pro chão. sinto que vou desfalecer, entrar no sono regido por uma dor de cabeça forte. ouço a voz dele e acordo. é de madrugada. o escuro do quarto é insuportável, e ligo a luz num movimento de desespero. venho à sala, abro a janela da sacada: paredão. lá longe vejo dois apartamentos com as luzes ligadas. fixo neles o olhar, já lacrimejando, pedindo para que alguém se levante do sofá, ou ande até a cozinha. não suporto estar sozinho. ninguém se movimenta. o terror que ejetou de mim precisa ser filtrado; é parte do que sou. o desespero é uma serra que separa membros e eviscera corpos: meus braços e olhos flutuam no teto. o que resta de mim está preso ao chão na mesma gravidade que torna difícil eu correr, gritar e até mesmo bater nele. porque ele não disse uma palavra de carinho. ele delegou a mim a atitude de botar um ponto final em uma frase quando eu queria escrever junto com ele um livro inteiro. será que ele estava certo, afinal? foi demais, muito rápido, muito pesado? ou foi de menos, muito ingênuo? o que eu fiz e o que eu deixei de fazer para que essa história encontrasse seu fim em palavras minhas - minhas palavras, eu, que estava disposto a tudo com ele? o luto existe para que possamos encontrar nossas respostas para perguntas deixadas em aberto pela ausência do outro, do outro que desejamos e que foi arrancado (arrancou-se) da nossa vida. do desespero à raiva; depois à conformação; depois à indiferença. nesses degraus, devo resgatar os pedaços rasgados e os reintegrar a um novo corpo. porque ele me manteve no escuro e se despediu sem nenhuma palavra de carinho. eu rasguei sua dedicatória e coloquei seus papéis no lixo reciclável. a mais triste tristeza é esta em monólogo. o silêncio e o escuro: ainda não sei o que fazer neles. ainda estou no subsolo do desespero.

 [...] agora está claro: entendi tudo.

cheguei em casa e lasquei vinho na taça. no copo.

tomei um, dois, três. e fui entendendo.

e acessei o xvideos. e fui entendendo: tomam um, dois, três.

só faz sentido em zoom: se mais perto ou mais distante. se mais perto a gente vomita. não dá conta. é como ícaro, ou como rádio. matam, derretem, destroem. se mais longe, é como inveja. uma grama verde ao lado. um corpo mais bonito. um sorriso mais branco. um currículo mais longo (ou mais preciso).

fiquei nu e sentei no sofá. nada contra o sofá, mas eu precisava ser lambido pelo vento gelado do ar-condicionado. no corpo todo ardia uma labareda que SÓ O AR-CONDICIONADO poderia apagar. e eu paguei a conta depois.

decidi que começaria a rir de mim antes que os outros rissem. e se não rissem, se minha piada fosse totalmente interna (e todas são), eu mesmo assim faria piada do fato de eu rir de mim mesmo. ratificaria o menosprezo. acho que ficará mais fácil no futuro, se for assim e somente assim.

nenhum centavo valem minhas memórias. é que quando a mãe da gente abandona, devolve ou nega, a gente se pergunta porque essa enrascada começou. e daí nada mais depois faz sentido. não é edípico, pois não se trata de jocasta. é jásico, pois se trata de medeia. fui morto numa fogueira quando ela soube da gravidez. nasci numa labareda.

todos os que tiveram uma mãe sabem quê. e não clicam naquela aba do xvideos. mas os que não tiveram gozam precisamente com aqueles filmes. se vingam das mulheres, em geral, pelo gozo geral.

depois tem a ficha da solteirice, que é como da solidão mas com registro civil: SOLTEIRO. tudo bem, não me incomoda. já me incomodou mais. pelo menos minha parte na herança (né, mãe) é minha. a outra leitura, mais estética: como você se apresenta ao mundo? é inevitável. a pergunta mais ontológica: quem você é? aparece nas mentes menos brilhantes. a pergunta pragmática, o que você fez? é típica dos infelizes. a pergunta moral, por que você é assim? é a que rende mais desculpas e justificativas. mas a pergunta que realmente sempre me importou responder, e ninguém fez, é: em qual mundo tu deseja viver?

desinfetar a casa com álcool 70 pode parecer até exagero, mas mantém os bichos longe. eu quero os bichos longe. posso até assar as duas minipizzas que estão no congelador, e posso inclusive esquecer o sorvete que tomei após o almoço, mas nunca, nunca, vou esquecer que tu me disse que eu não deveria estar ali na praia porque a sunga comportava um corpo descabido. "manter os bichos longe." sigo limpando a casa.

se eu acordar agora, posso deletar os sonhos que tive até então?

se eu cair agora, pode ser com a velocidade instantânea?

como num piscar de olhos sair da vida. os rapazes trocando passes com as bolas na areia: um grito casual de quem não sabe que eu existo - ouvi numa canção. os surfistas por dentro de um túnel de água simplesmente me superesquecendo. os maratonistas pisando no asfalto e suando a ignorância de mim. os lixeiros, os pedreiros, os livreiros, os azulejistas, os carteiros e os pintores, os ourives, os punheteiros, os marceneiros, os jardineiros e, finalmente, os entregadores de gás. eu falhando na memória de todos, inclusive no meu cheiro, inclusive no meu gosto - pois meu rosto já nem comparece. 

encarar o desconhecido sem parapeitos, sem gradil. desaparecer. cair. fantasio muito com a queda. entregar-me à gravidade - à coisa que pesa e que puxa pro chão. que leva à terra. à coisa pesada. aceitar me despedaçar com a proximidade da atmosfera. estilhaçar em contato com o oxigênio. brilhar como cometa em contato com o ar. e aterrisar, tocar o chão, afundar, espatifar o solo inteiro, explodir pedaços de mim na tangente macabra. descer. ser abraçado pelo vento. dormir no aconchego de um ninho de algodão macio deslizante. e deslizar velozmente até o chão. e cintilar de vermelho e ocre nas mais belas curvas desintegradas que hão de existir.

entendi parte do todo, que há de se despedaçar.