hoje meu coração disparou PARTE IV

por coincidência, reparei naquele homem barbudo na praia. eu já tinha tomado algumas caipiroskas; a Pequena já dançava funk. conhecia aquele jeito de parar de pé em uma perna só. as mãos entrelaçadas sob a bunda. mas eu poderia estar bêbado. ou os óculos escuros poderiam estar embaçados pela maresia. ou poderia ser uma miragem, uma fantasia. ou seria a Pequena que chamava muito a atenção do entorno. mas o perfil daquele homem, o nariz de bolota, os cabelos em desalinho, o sol queimando aquela pele: eu já havia estado ali.

Nestor e Pequena estavam na mesma areia, no mesmo mar, sob o mesmo sol. haviam estado com o mesmo homem, eu, que se interpunha aos dois. uma ignorava a presença do outro.

neste dia eu poderia ter tomado rumos mais interessantes pra a vida que seguiria. nem com uma, nem com outro, eu poderia ter escolhido outro alguém. eu poderia ter escolhido ir embora. eu poderia ter escolhido devolver ao mar o que do mar é. poderia, em paz, ter escolhido morrer. de certa forma eu escolhi morrer. prolonguei, entretanto, minha morte. a minha, a do Nestor, a da Pequena. acho que nós três morremos. no dia em que coabitávamos a praia foi quando, talvez, estávamos mais felizes. a Pequena já estava grávida e Nestor estava com seu namorado. e eu, sozinho. não chamei por Nestor, não nos cumprimentamos, acho que sequer ele me viu. eu não informei sua presença à Pequena. ela estava tão feliz, enfim. feliz em fim: no estertor de dia de sol que seria seguido de uma míngua até o golpe mais baixo, até a manhã de maior desespero. até o canto entre paredes onde o escuro desfaz a pele do peito, e os órgãos se dissipam, se estilhaçam, porque o escuro tem boca de piranha e arranca partes de nós em silêncio, em sofrimento. e em primeiro lugar o escuro-piranha morde nossa garganta para não gritarmos. e em segundo lugar o escuro-piranha morde a boca de nosso estômago, por onde vomitamos um sentimento que nem supúnhamos ali. deslizamos a parede do canto onde estamos encurralados sem garganta e sem estômago, sendo atacados pelo escuro-piranha, desejando que no próximo golpe a morte já venha, mas aí ele se retira e nos deixa sob o ar da solitude, do esquecimento, tentando costurar os pedaços das cordas vocais pra gritar, chamar mãe ou pai, ou pra tapar a boca do estômago pra parar de vomitar a lava. e em terceiro lugar ele volta, o escuro-piranha, pra arrancar nossos olhos, pra entrar na nossa boca e morder nossos dentes, alimentar-se da nossa língua, arrombar nosso cu e rasgar nosso reto, nós comidos por dentro pelos dentes de serra de um escuro que não para, e não para, e não para. é aí onde estou hoje, sem Nestor e sem Pequena. cada um de nós com nossos escuros-piranha, sendo devorados por dentro.

hoje talvez tenha sido o pior dia desde esse, no qual Nestor e Pequena, sem saber, estavam lado a lado. se eu soubesse o que viria, teria fugido. teria morrido. teria matado. mas eu não sabia. por isso, morreram no meu lugar.

hoje meu coração disparou PARTE III - alínea b

 [a trilha sonora deste trecho é "grávida"]

"não vai ter chá de fralda merda nenhuma, mermão", gritou a Pequena. ela falava ao telefone com a família, do RJ, e negociava a vinda deles para conhecer o rebento. com os meses passando, ela me dava notícias a conta-gotas das opiniões e expectativas sobre a criança - e sobre nós, os pais. perguntavam pra ela como era possível um viado engravidar uma mulher. ela respondia: "é possível porque sou muito fértil". uns queriam uma guria; outros, um guri. os motivos para desejarem um ou outro eram invariavelmente machistas: gurias sofrem mais, é mais fácil de criar guris. as razões de ser mais sofrido ou mais fácil permaneciam inquestionadas. eu dizia que a gente criaria nossa criança tendo como critérios a honestidade e a responsabilidade - eu tinha excluído o amor e a humildade porque não combinavam em nada com a própria Pequena. eu nem tocava no tema da liberdade, pois nela eu não acredito mesmo. a Pequena ouvia eu falar isso e me olhava com desdém. ela nunca dizia como queria criar sua criança - sua criança, ela afirmava, nunca a nossa criança. eu sempre respeitei, pois reconhecia nessa linguagem uma afirmação preta, feminista. e a sustentava. à Pequena caberia o lugar do corte, da separação; a mim, o da religação, da comunhão. nós dois só concordamos com orgulho em um aspecto: nossa criança seria preta.

a Pequena não queria saber o sexo da criança. nem eu. nada que estivesse ligado àquela biologia, àquele amontoado de carne, definiria o gênero daquele ser. a Pequena achou que assim estaríamos afirmando a liberdade da criança. um dia eu disse que ninguém era livre, nem a nossa criança. ela respondeu: "a minha criança será a pessoa mais livre deste mundo". e foi. a criança da Pequena pode ser tudo, pode ser todos, pode ser todes. eu, como pai, só queria que a criança pudesse ser ela/ele mesma/o, com suas dores e lutas, e vitórias, e choros. eu queria que a minha criança tivesse história para contar de si já desde muito jovem. porque quem tem história pra contar de si é quem se joga na vida. e eu queria isso pra minha criança porque essa seria a herança ética da mãe. uma mulher que é uma força da natureza, uma tempestade. eu também sou uma força da natureza, mas de outra ordem. eu sou a terra e a rocha, aquilo que sustenta. a minha herança ética seria responsabilidade pelas escolhas. os progenitores perfeitos, pois.

já era vigésima, vigésima primeira semana de gravidez. a Pequena e eu tínhamos comprado um berço de madeira. combinamos de montá-lo num domingo. chovia, pois era março. eu me embrenhei por entre parafusos e martelos. suava. tirei a camiseta. me senti homem: seminu, construindo a cama da minha criança - digo, da criança da pessoa que me pediu em namoro. pensei que eu não havia sido homem com Nestor, em nenhum momento. pelo menos não na intensidade com a qual estava sendo com a Pequena. grávida, eu sentia mais tesão nela. ela, pelo contrário, se afastava. no entanto, no momento em que terminei de montar o berço, a Pequena me perguntou: "vamos morar juntos?".

hoje meu coração disparou - PARTE III alínea a

[a trilha sonora deste trecho é "perfume do invisível"]

já não lembro direito. mas parece, ao que tudo indica, que Nestor parou de responder minhas mensagens. é, acho que foi isso. eu lembro de estar almoçando com uma amiga em um restaurante de Higienópolis, era um sábado. eu havia mandado mensagem pra ele pela manhã. já eram três da tarde. eu insisti: "tá tudo bem por ae?". ao que ele replicou dizendo que havia trabalhado, que estava cansado, que estava sem rumo, que estava nublado... o que se diz geralmente quando se quer fazer com que alguém acredite que "não é problema seu, é problema meu". fiquei puto e deletei a conversa com Nestor. faço dessas. com a Pequena, ih, fiz milhões de vezes. só guardei seu último texto, tal como Madame Curie guardou o pedaço do crânio do seu marido. o último texto que a Pequena me mandou ainda está aqui no meu whatsapp, e fede como o osso de um cadáver.

não me recordo com precisão. talvez seja efeito dos remédios psicotrópicos que tenho tomado. mas Nestor passou uma semana sem nem dizer um "oi sumido rs". ou talvez eu não consiga resgatar essas memórias porque já faz bastante tempo que isso aconteceu. ah, sim: ele me mandava mensagens sobre seu trabalho, dia sim, dia não. nunca perguntava como eu estava, se já tinha limpado a casa ou se já tinha batido punheta. segunda sim; terça não; quarta sim; quinta não; sexta sim; e eu mandei à merda. porra. respirei. peguei uma folha de papel, um lápis. fiz um roteiro do que dizer em um áudio curto. porque sou desses que manda áudio de três, quatro, até dezoito minutos. sou mesmo. escrevi:

  • que legal, teu trabalho está sendo reconhecido e será um sucesso;
  • entendo que não queira mais encontrar;
  • eu gosto muito de ti;
  • eu vou seguir minha vida;
  • vá para o mar e aproveite a água, que tu tanto adora.

bem cognitivo comportamental, pois a psicanálise eu deixei pra depois, com a Pequena. parece que seria rápido, mas foram um minuto e trinta e sete segundos. eu ainda queria estender mais, só pra protelar esse pequeno fim. aquela preta cueca esgarçada que eu nunca mais tiraria; a barba em que eu nunca mais roçaria. queria que ele ficasse grudado no celular com aquela orelha onde passei minha língua, só pra ouvir minha voz. alguém mais termina uma pegação de quatro meses com um áudio de um minuto e trinta e sete segundos baseado em um roteiro? sou desses. e mandei. ele respondeu "positivo e operante. desculpe de encher o saco. sucesso na vida".

eu desfaleci. não lembro, mas acho que quase desmaiei. pro Nestor, eu não merecia nem quinze segundos de resposta pela sua própria voz. resplandecia, por isso, o lugar que eu ocupava em sua vida. fui pra academia e caí na esteira enquanto ouvia o mais recente número do Foro de Teresina. tropecei no cadarço do tênis. virei chacota, saí de lá e fui pra um boteco qualquer. bebi a noite toda. e no outro diz amanheci na sarjeta da avenida paulista com a rua augusta, aos pés do banco safra, nas condições já relatadas.

eu havia me tornado invisível. eu não lembro direito, mas acho que foi isso.

hoje meu coração disparou - PARTE III

eu e a Pequena trepamos três vezes por semana, por três meses. ela chegava na minha casa como uma pombagira de rua. no início eu ignorava com desprezo sua intensidade. achava que era só uma casquinha que ocultava o vácuo e a dor da vida que a trouxe até mim. ao final dos três meses, percebi que eu não estava tão equivocado, mas que tampouco acertava no alvo. o alvo da Pequena era móvel, cigano; quando eu acreditava ter encontrado uma fragilidade, algo mais intenso vinha em seguida que dirigia minha atenção para outra paisagem, e outra, e outra desse cenário em tempestade. 

ela entrava pela porta jogando a bolsa no chão, tirando os sapatos, deixando um na cozinha e outro no banheiro. às vezes ela não usava sutiã, e eu me perguntava como sustentar aqueles encontros. mas seguia encontrando. ela tomava banho e deixava o tubo de shampoo de ponta-cabeça. ela tomava água em diferentes copos, que ia esquecendo em cima da mesa, da escrivaninha, da geladeira. ela abria latinhas de cerveja e deixava pingar o líquido no sofá. ria quando isso acontecia. foi introduzindo o caos aos poucos, sempre me perguntando se podia, acreditando que eu nunca diria “não”, e eu consentia. de tão revolucionária com sua própria vida, me pediu em namoro. talvez acreditando que eu não diria “não”. e eu não disse.

viajamos. algo parecido com uma lua-de-mel, mas com muitas drogas. até hoje não sei se é possível fazer uma lua-de-mel com drogas porque aquela não foi inteiramente uma lua-de-mel. nem tão lua, nem tão mel com os sintéticos, lisérgicos e estimuladores. nada com a Pequena foi inteiramente algo. havia sempre um deslize ou um vazamento, uma escorregada: uma ideia que se perdia nas suas divagações; uma espuma de sabão que escorria na louça enxaguada; um olhar para a tevê quando eu me declarava; um bolo de cabelos num canto recém varrido. ela parecia não-toda. não porque fosse incompleta, mas porque ela desviava. ela estava ali, mas também estava em outros lugares. ela sempre pegava um detour, um atalho para fazer o que queria. e fazia. isso, com o tempo, me fez sentir paixão.

sem sutiã e sem vergonha, passamos a nos ver todos os dias. pequenas gotas de caos pingaram no meu piso vinílico. seu corpo, que eu vinha aprendendo a manipular tão bem pro meu próprio deleite, também tinha seus jeitos de escorregar. seu corpo pulsava em um lugar, pra onde eu ia com minha boca, mas então ele já pulsava em outro, que eu tentava agarrar com minha mão. nunca consegui abraçar sua vida. mas quase o fiz.

a Pequena chegou do trabalho pelas sete e meia da noite de um dia de outubro. me deu um “oi” entre os dentes. estranhei. ela não tirou os sapatos. pediu água, que eu dei. segurou o copo em silêncio. e me disse: “estou grávida”.