[...]aça como se não houve amanhã, mas o gosto me desce difícil. é só uma dose, digo eu pra mim mesmo. sabemos que não será, mas eu gosto de pensar que, sim, será. trata-se de uma bebida que marca um entroncamento, uma bifurcação interessante: no dia em que terminei com umdessesquaisquer a gente bebeu; no dia em que umdessesquaisquer levou as coisas da minha casa eu joguei uma garrafa inteira pelo ralo do tanque de lavar roupas. mas eu já bebia antes, quando eu descobri que a bebida tem 0% de carboidratos. substituí pela cerveja, que tem 100%. e emagreci. e fiquei com o abdome definido. e tive cirrose. mas depois que umdessesquaisquer saiu da minha vida, eu passei a beber vinho e cerveja, às vezes pendendo mais pro vinho, às vezes pendendo mais pra cerveja. sempre pendendo pra um ou pra outro. e foi um tempo ruim, superegoico, triste. vazio de pessoas, cheio de álcool, vazio de propósito, cheio de dívidas; vazio e cheio, ao mesmo tempo, numa desproporção. daí aprendi que, em geral, pessoas muito cheias - gritentas, efusivas, falantes, risonhas, falastronas - podem, talvez, ser bem desproporcionais. se a gente arranha o verniz, só encontra nelas salas onde não mora mais ninguém, e se um dia alguém morou ali dentro dessas pessoas já se foi embora sem deixar rastro. pessoas sem rastros de outras pessoas me assombram. umdessesquaisquer é pura superfície, nada afunda, ninguém mergulha; umdessesquaisquer só surfa. não sou surfista, sou mergulhador. prendo a respiração e exploro a parte do planeta Terra menos conhecida por seus próprios habitantes. a treva, a escuridão, a parte obscura que há na casa onde moramos: é ali que quero entrar e chafurdar as gavetas, a parte de trás dos armários, quero arredar móveis, tirar os quadros da parede. fiz uma promessa: fixar os quadros que comprei e emoldurei ao longo dos anos na parede do apartamento da cidade onde quero morrer. isso inclui quatro quadros pintados pelo meu pai. lá estarão, na casa onde hei de morrer. por causa dessa promessa, fiz uma aposta com meu pai - na verdade, não é uma aposta mas uma troca consensuada. eu disse "tu pinta um quadro pra mim, e eu escrevo um livro pra ti". eu não consigo desenhar, tampouco pintar. meu pai, artista que é, me inscreveu na aula de pintura muito cedo, eu tinha uns oito anos. de tão ruim que eu era, cheguei em casa com o primeiro quadro pintado; minha mãe gritou "que lindo esse palhaço!", ao que eu respondi "é o Cebolinha", da Turma da Mônica. eu desenho e pinto certas coisas com uma intenção, e essas imagens por mim produzidas sistematicamente falham em produzir o efeito que eu quero. mas o texto, as palavras que eu escrevo, dessas eu sei a ambiguidade e brinco com ela. escrevo por prazer. sei que o texto desliza. sei que há palhaços e Cebolinhas em cada frase. talvez eu retribua com beleza a arte que meu pai um dia me entregará. cada um experimentando a arte que lhe convém. meu pai, além do desenho e da pintura, sabe tocar instrumentos. teve uma banda quando era jovem. meu pai toca piano, violão e acordeón. eu só escrevo, mas escrevo pra academia e pra ficção. é, mais ou menos, como pintar e tocar - ou assim eu me apaziguo com os poucos dons que desenvolvi na vida. da destreza que meu pai tem em tocar instrumentos eu aprendi a escuta. pois pra tocar bem um instrumento eu sei que é necessário escutá-lo bem. minha escuta não se volta aos instrumentos, mas às pessoas. sou um jornalista que entrevista pessoas, sou um pesquisador que gosta de ouvir pessoas, faço perguntas às pessoas. peço que me relatem seu mundo - sua perspectiva a partir da qual veem e pintam, desenham seus próprios mundos. há, portanto, um entroncamento da pintura do meu pai (que só pinta o que consegue ver), a música do meu pai (que só toca o que consegue ouvir), com a minha escrita (que só escreve o que os outros relatam) e da minha escuta (que só ouve o que os outros querem dizer). não é à toa que estou estudando pra ser psicanalista. meu pai não bebe cachaça e nem é umdessesquaisquer. tampouco tem sido um super-herói. mas, à sua moda, driblou o seu próprio pai caminhoneiro, o irmão psicótico, a mãe superprotetora, um filho suicida, a esposa manipuladora, a filha rebelde e o outro filho. esse filho, o último, eu, que nasceu sem ser convidado a estar neste mundo. nasci com o DIU na mão. eu que bebo cachaça e sou viado. um filho umdessesquaisquer. mas que pelo menos lhe dará um livro.

 [...]ão me recordo de ter escrito algo nessa direção, com esse intuito, objetivando produzir esse ou aquele efeito. pois neste exato momento em que te escrevo eu lembro de um outro assíduo leitor que já morreu. nos seus últimos anos já não convivíamos; ele havia se mudado pra Garopaba ou Guarda do Embaú (foda-se qual das duas) pra envelhecer quieto. quando eu soube disso achei digníssimo. altíssima dignidade, elegantíssima. retirar-se pra envelhecer; envelhecer consigo e com o mar; envelhecer na quietude. Garopaba é quieta?, acho que não (foda-se). buenas, ele era um leitor assíduo. uma vez ele me perguntou sobre os colchetes com os quais eu começo a escrever: "tu quer nos enlouquecer?". quero. pelo menos, quero que as pessoas intuam palavras, preencham palavras com as quais se pode começar um diálogo - ou, na pior das hipóteses, um monólogo, como o que acontece aqui. é um convite a começar o texto com aquilo que, pra quem lê, faz sentido. e não é sempre assim? às vezes. minhas leitoras e meus leitores são menos obedientes. que sejam pouco obedientes com meu texto. porque assim eu peço, ou convido, que insiram vida aqui. acho que ele se mudou pra Guarda (foda-se mesmo) e morreu lá. um dia, sem saber da sua morte, pensei tê-lo visto no parque da redenção, em Porto Alegre. em seguida, minutos depois, encontrei dois amigos nossos, em comum. foram eles quem me deram a notícia da sua morte. eu arrepiei: "mas vindo pra cá eu ainda achei ter visto ele ali no gramado!", ao que um dos amigos em comum retrucou: "e por que não haverá de ter visto?". muitas das minhas leitoras e parte dos meus leitores já morreram. elas, porque acham coisa melhor que fazer; eles, porque a) morrem de aids b) morrem em acidentes de carro c) morrem de câncer d) morrem assassinados por dívidas com drogas e) morrem de overdose de drogas f) morrem em quedas de aviões g) matam-se. me acostumei a escrever endereçando o texto a pessoas mortas. não escrevo pras pessoas vivas. e quando acontece de eu escrever pras vivas é quase sempre como se eu estivesse no limiar da morte, eu mesmo morrendo: eu bêbado, eu sob efeito de remédios, eu detestando a vida. escrevo narrativas mortas ou sou um escritor nos estertores da vida. sempre num limiar, num véu, numa transparência que divide a morte da vida. e se enlouqueço, se eu quero enlouquecer alguém, é pra disfarçar que logo ali, neste próximo segundo ou nesta próxima palavra, podemos estar vivos ou [...]