tá tudo bem. e ainda não é exatamente isso. não é muito acurado dizer "bem" ou "tudo". nem "estar"; talvez coubesse dizer "é tudo bem", como se estar bem fosse da essência das coisas que me rodeiam. três palavras perfeitas (2-4-3) não acertam o alvo. porque há insetos mortos na lajota branca da sala, porque o vizinho faz reuniõezinhas animadinhas até tarde da noite, porque o sinal da internet cai o dia inteiro, porque tomo muito café e sinto dor de estômago. mas tá tudo bem. e não é verossímil. vizinho bom é vizinho invisível, inaudível, inodoro e insípido. os meus não são, mas eu tento ser. é o meu ideal de vizinhança. é como meu ideal de família: está tudo bem, mas não se trata de estar tudo bem. se trata de ir, vir e contornar os valores morais, de dar dois pesos para duas medidas, de esquecer estrategicamente aqui e ali qualquer coisa que para o outro é fundamental. e é de amor que falamos o tempo inteiro? não. portanto: não se trata de estar tudo bem. esse é meu ideal de família. pois tá tudo bem, e isso ainda não convence. não se trata de uma reuniãozinha animadinha. se trata de dizer algo, ou de não dizer algo, e estar sempre errado. ser sempre distante e, por ser distante, ser mau. ser sempre inadequado, sobretudo quando se tenta a ironia. se trata de ser mal-quisto, porém necessário. se trata de não ser bem-vindo, mas ainda assim convidado. não sei como será a visão do velório dos meus pais. não sei o que de fato eu enxergarei nesse dia, nessa paisagem. o que haverá de volumes e cores que povoarão a cena. não sei sequer se haverá dois corpos ali a serem incinerados, ou se eu já o terei feito desde agora. de como o luto me chegará, de como a falta se acomodará nos cantos ou bem no centro da sala-de-"estar". de como eu me livrarei deles mais que eles da vida, mais que eles de mim. de como a inveja pelas suas mortes substituirá, em mim, a melancolia pela perda dos cuidadores. de como o desamparo pela morte dos pais não me é estranho, nem o desprezo que suas mortes podem eventualmente significar ("como vocês podem me deixar sozinho no mundo?"). disso nada sei, mas estou atento. pois é um conjunto de sentimentos intoleráveis. por tal razão, nada está bem de fato, e isso é perfeitamente verdadeiro.