Emails para uma jovem bicha- Férias

Tou saindo de férias, tá? Tou offline por uns dias.
Acho que vai ser bom, está sendo bom desde já.
Pra mim é necessário deletar rostos e corpos, cheiros e beijos de tempos em tempos. Não dá pra agüentar alguns deles por um período contínuo. E eu mesmo me faço insuportável, acho que mais do que eu tirar férias dos outros, são os outros que precisam de férias de mim.
Ônibus? Nem pensar. Minha mãe me esinou desde cedo que apenas viagens locais, intermunicipais, são feitas de carro ou ônibus. O resto, meu bem, todo o resto é feito pelos ares. Adoro peruar nos aeroportos, fazer pegação no Salgado Filho, Afonso Penna, Galeão ou Pampulha. No meu caso, vai ser Guarulhos mesmo, o mais movimentado da América do Sul. Coragiii, né?!
Furacão gaúcho na terra da garoa. Vou com a Godiva de Niterói como minha guia.
A Consolação - e o Parque Trianon - nunca serão os mesmos!
BeijoMeEsquecePorUns10dias!

Emails para uma jovem bicha - Esquinas da minha vida

(De "cartas a uma jovem bicha" troco para "emails para uma jovem bicha". Adoro cartas, acho cult. Mas acontece que deixei de escrever cartas, não porque eu ache demorado ou porque doa minha mão. Mas simplesmente porque aqueles pra quem eu escrevia já não me fazem mais sentido).
Sempre mande as fotos que tirares aí, adoro ver como as pessoas estão 'enxergando' as cidades e as pessoas que conhecem. Gosto de bisbilhotar os olhares, os cantos e os ângulos, aquilo que não era pra entrar no enquandramento, mas que por sorte ou azar apareceu ali registrado, adoro intuir onde estava o sol e admirar o céu de um outro lugar que não seja esse meu que ocupo há tanto tempo.
Aqui tudo tranqüilo. Há 15 dias eu tou sem beber e havia anos, repito, ANOS que eu não passava tanto tempo sem ao menos uma latinha de Boemia, uma dosezinha de tequila, uma garrafinha de vinho, hmmmm, as bolhas de champagne (parece discurso de AA, mas te garanto que tou limpo!). Minha pele melhorou, minha barba reluz no sol, comecei a perder minhas gordurinhas localizadas, meu cabelo está macio, sedoso e leve, tenho comido frutas, verduras e queijo minas (arrghhh!), granola com iogurte ao acordar, mas sempre - SEMPRE! - sem uva passa porque uva passa é um ultraje à civilização judaico-cristã ocidental... E elas têm vindo cada vez em maior número, num tamanho quase imperceptível, sempre se entranhando nos alimentos de modo que fique quase impossível retirá-las. Mas eu as retiro, claro, e perco bons minutos nessa tarefa quando na verdade eu poderia estar dormindo ou lendo Foucault. De que adianta colesterol zero se também é zero o número de beijos na minha boca? Cozinho em casa todo dia, tenho aprimorado minhas técnicas, meu temperos e o tempo de cozimento do frango assado. Descobri que massa ao alho e óleo é mais barato do que eu imaginava, mas nunca supus - NUNCA! - que dava tanta flatulência. Sou uma bomba de gases atualmente. Ganhei 1,5 cm de braço e 2 cm de perna graças ao meu treino na academia. Obviamente, nada disso me assegura assovios na rua, nem parabenizações, porque simplesmente a beleza não desabrochou de dentro de mim como coisa que sempre existiu ali. A beleza, assim como tudo e todos nessa vida, é algo que se constrói. Essa minha caretice com o álcool não sei aé quando dura, mas certamente não tou sentindo tanta falta quanto pensei que fosse sentir. Meu fígado agradece, os michês detestam. Dentre as muitas viradas da minha vida, a esquina mais feliz está pra ser dobrada em breve, quando eu for viajar nesta sexta. Até lá, estou feliz como Amélia dentro de casa, lavando louça, lavando o chão e o vaso sanitário, escrevendo o primeiro capítulo da minha dissertação de forma compulsiva, tomando uma xícara de chá de boldo sempre antes de ir dormir. Só que não sou anjo, como tu bem sabes: faço uso de duas drogas pesadas diariamente, sem falhar: internet e televisão. Cada dia acredito menos e menos em 'liberdade', acredito menos e menos em 'verdade'. Acredito nas amizades que construí até hoje e que quase nunca me faltam, também acredito na solidariedade que eu devoto aos meus amigos e que me faz trabalhar com isso que trabalho, do jeito que trabalho; que me faz estudar isso que estudo e do jeito que estudo.
Mande sempre notícias! Adoro escrever emails. Mas se eu tivesse tempo e pessoas dignas, escreveria e mandaria cartas.

Hora de Saturno

Paciência, meu eremita. Prudência. Se insistires em tensionar as bordas que te seguram, o grande legislador vai te impor as regras do kharma. Passeio pelas delícias das grandes possibilidades, das grandes tentativas, das grandes viagens. Novos territórios a conquistar, eu, O Conquistador. Mas nessas terras recém descobertas e recém experimentadas, ainda virgens de mais profundas explorações, é necessário fazer leis e obedecê-las. O tempo te traz essa sabedoria, portanto, espere! Eu voltei caminhando, cheirando a cigarro barato, sozinho. Para quem legisla o sinal vermelho em noite de rua deserta? Atravessei, e só meus passos ecoavam de largo a largo na avenida. Era para mim que a sinaleira brilhava. Tentei desesperadamente, numa fúria bastante justificável, rasgar a pele macia para comprovar os músculos rijos... A dureza da carne daquele(s) corpo(s) é tão ultrajante. Penso ser impossível construir para si uma materialidade tão dura, tão espessa, daquelas em que as mordidas não fazem marcas de dentes. Senti na palma das mãos e na ponta dos dedos os tocos dos pêlos recém depilados, o cheiro do perfume amadeirado, o umbigo raso, os peitos salientes, o saco suado. Bebi um pouco, de pouco a muito, de muito a exageradamente. E segui bebendo e tentando, bebendo e tentando, no ritmo da música, do piscar do estrobo, do giro do globo, e nunca chegava, aquilo nunca chegava. Fui me cansando, mas continuava bebendo e tentando, bebendo e tentando. Até que as lembranças mais escurecidas, não pela baixeza moral ou pela vileza estética mas pela simples falta de luz da qual esses lugares freqüentemente se usam, essas lembranças me vieram e me ocuparam, me perturbaram. E no desespero – outro desespero, já o segundo em poucas horas – eu mexi com os braços e com as mãos, balancei o quadril, movi as pernas, um pé tocava o chão enquanto outro se suspendia, encolhi a barriga e sorri. Fechei os olhos. Na minha mente ainda persistiam os tecidos enegrecidos, as luzes opacas e os rostos esfumaçados. Labirintos, salas exíguas iluminadas apenas pela televisão ligada e fora do ar. Cadeiras vazias. Botas, sungas, ereções. Salto-agulha, bico-fino, silicone. Toda doença tem sua delícia, todo crime tem seu deleite. E no retorno, as ruas desertas! Dei-me por conta de que a desolação me acompanhou desde o momento em que me acordei, ou antes, desde o momento em que me deitei ainda na noite anterior. Anexei a desolação a mim como mais um dedo no pé – seis dedos, corpo monstruoso? Anexei o álcool a mim como mais duas medidas na circunferência – setenta centímetros, corpo abjeto? Tive meus momentos de Amy Winehouse, mas é claro que foram sem o glamour do lápis de olho. O chá de boldo que esquenta minha xícara, o microondas que esquenta minha água, o Plasil que impede o meu vômito, a corrida que impede minha gordura, a cama que me traz o sono, a manipulação auto-induzida que me sacia a vontade, o gozo que me proíbe a lágrima: legislações que tutelam os limites de até onde ir e dizem das fronteiras a serem ultrapassadas. Na hora de Saturno, tudo é aprendizado para ser comedido mesmo nas abundâncias.

Hora de Júpiter

Mediante pagamento, fui feliz. Foi o passaporte para uma liberdade controlada, cujos limites acompanham o volume das cédulas do meu bolso. Foi o visto de entrada numa zona, quarta-escura, luz-vermelha. Mediante pagamento não há toda sorte de censuras, a não ser aquelas que o custo impõe. Expandem-se os zíper e os botões, os corpos cavernosos e esponjosos: ‘expansão’ é a palavra. As eternas negociações cínicas dos corpos zero-por-cento-de-gordura-trans simplesmente ficam suspensas e perdem grande parte do seu sentido. Ou se não perdem, pelo menos são ressignificadas! Não há abdome que valha por si só, nem bíceps que dê conta sozinho de uma declaração de amor. Não há feiúra que se preserve com uma nota de cem reais. Nem beleza o suficiente que prescinda o débito de trinta pilas. O Segundo Sol brilha na noite, nas quartas-escuras, quartos-crescentes, Segundo Sol em noite de Júpiter, em casa de 8. A facilidade do toque, e aí não se enganem, quer dizer menos a quebra total das fronteiras bem limpas entre afetos e muito mais a justaposição dos perceptos. Tocar é mais importante que sentir. E aí não se entenda que não há sentimentos: sempre há sentimentos, mas há formas de sentir, variadas maneiras de extrair afeto. Mediante pagamento há um outro território, não exatamente aquele livre das quaisquer proibições, não exatamente aquele da libertinagem sem fim, não exatamente aquele da eterna perversidade. Esse outro, esse alter, esse hetero é um lugar em que são repensadas as referências para as relações. Nessa revisão, não se perde ética: reconstrói-se uma. Estou com eles porque quero, e não porque preciso. Estou com eles porque gosto, e não porque não consigo. Estou com eles porque pago, e vocês – todos vocês – também estão uns com os outros porque, em primeiro ou em último lugar e em algum momento, também pagaram.

Hora do cometa

Eu, Macabeu, fantasio com você-vocês. Não me orgulho disso, não me satisfaço. Procuro satisfação em outras zonas, territórios menos combativos e mais urgentes. Profiláticos. Mas, sim, existe uma delícia ao me deitar na cama e manuseá-los nos dedos, tê-los comigo nas produções minhas. Existe um sabor denso em manipulá-los, em fazê-los dizer o que quero, em movê-los para cá e para mais cá. Não é ridículo, é só um jeito entre tantos este de colocá-los numa roda giratória dos profanos. Saberão você-vocês que andarão pelos meus pensamentos? A mim retorno sempre que posso, e sempre é necessário voltar. Para cultivar e manter aqui e ali essa vontade, essa energia que me faz buscá-los na rua e trazê-los para casa. Para dobrar novamente minhas roupas usadas e deixar apenas as cuecas penduradas, estendidas sobre a escrivaninha, deitar sobre elas e cheirá-las – porque é doce seu cheiro. Para me esfregar nas paredes e descer até o chão em forma de concha. Para lambê-los e odiá-los gozando, para insistir nele-neles, para ouvi-los gemer. Se não tiro o pó dos meus móveis é porque quero que o pó seja minha testemunha: sou feliz na hora do cometa. Trago todos ele-eles comigo porque quero, porque me são preciosos, e não porque me são precisos. O cheiro de cerveja, da dose dupla de vodka. O bafo quente do cigarro recém apagado. Os cabelos desgrenhados do sexo selvagem de logo antes. Nenhum dele-deles bebe, nem fuma, nem tem cabelos. Nenhum deles faz sexo. Sou eu quem faz com ele-eles. Não é triste nem sofrido, é só mais um dos jeitos que achamos para continuar desejando, e ao desejar sempre mais e mais e mais trancar a porta para que não se vá o desejo, para segurá-lo, girar a chave, segurar as janelas, fechar as torneiras. Então tomar banho ainda vestido e secar-se! Olhar-se no espelho e continuar desejando, ai, será difícil? Tocar-se. Deitar na cama e apagar a luz, e afundar a cabeça nos travesseiros. Sentir a dor nas costas. Voltar a fantasiar com ele-eles.

Cartas a uma jovem bicha – dos chutes, dos socos, dos espancamentos

Essa melodia não acaba
Quando eu resolver parar
De cantar


Pois se gritam contigo, se te chamam de bichinha, de boiola, de viado, vire todo o corpo para o agressor e, num movimento como de onda, empine a bunda, encolha a barriga, estufe o peito, levante a cabeça e jorre na sua cara: “bichinha, não. BICHONA!”.

E se te derem um tapa, tire uma das 12 navalhas que aprendeste a guardar embaixo da tua língua e dispare-as, sempre com essa tua maestria em fazê-las voar sem a ninguém machucar, mas a todos assustar.

E se te derem um soco, arranque teu cinto feito de correntes com um cadeado na ponta, gire-o no ar produzindo aquele som de terror do ferro cortando o ar, gire-o até a tontura e enrosque-o em torno do pescoço do seu agressor. Aperte-o até fazer quase desaparecer sua voz, até quase tirar-lhe a arma que dispara violências, mas não até o fim. Deixe ainda um fiapo de voz para que ele diga: “desculpe-me, sinceramente”.

E se te espancarem, se te chutarem o saco e o estômago, se pularem sobre teu crânio, se te quebrarem os braços e arrancarem os dentes, se te costurarem o cu, se te jogarem óleo fervendo, recupere-se. Cuide-se, trate-se, mas recupere-se. Não morra antes de voltar e provar que o corpo pode ser torturado, que o corpo pode ser produzido na dor, que o corpo pode transformar-se na dor. Recupere-se, volte. Recupere-se do espancamento com carinho pelo seu corpo, pela sua matéria, e volte vestido de lantejoulas, miçangas e canutilhos bordados numa segunda pele.

E se te matarem, não pense que foi aí que tudo se acabou. Porque nós todos vamos continuar a andar por aí, com calças justas e enfiadas na bunda, vamos continuar e ir e vir, beijar e dançar, músicas com brilhos e luzes. E se nos endereçarem palavras de censura ou reprovação, cuspiremos, escarraremos na cara desses. Para provar que não é com a morte que vão te fazer ficar em silêncio. Não é só teu corpo que fala; é tua história, é tua trajetória, são as memórias que tu construíste entre nós que vão se espalhar como vírus (como aquele nosso vírus amigo) e que vão dar consistência para a revanche. O teu rastro ficará conosco, nos servirá de norte.

?

Haverá algo - será? - sobre o qual eu deva me perguntar, me questionar, procurar produzir uma resposta e que eu não esteja conseguindo fazer?