vestiu-se com seu mito individual. saiu pelas ruas sombrias da cidade, à noite, todo vestido. andou por lá e por cá, mas não sem rumo: na sua pequenez individual havia tudo planejado. surpreendeu-se com os transeuntes nus: ninguém mais acreditando estar em face do outro, tornavam-se pálidos si mesmos sem nenhuma mediação com aquilo que a noite esperava deles. e ele todo produzido para uma noite longa, noite de cantos e becos, de esquinas em velocidade, uma noite toda do tato. os transeuntes nus tiravam toda a excitação das surpresas que as ruas poderiam trazer. pois já estava tudo visto, já estava tudo sentido. zumbis nus. por onde ele ia, seu mito se manifestava.
que tantos males houve nessa trajetória, nessa corda-bamba, que tanto mau humor e recalque? o que foi recalcado que permanece recalcitrante naquilo que dizes hoje de mim? de todos os indícios recontados, não há um sequer que tenhas ao menos me indicado. recontas agora todo o caminho, toda a corda-bamba, como fio da navalha no qual caí e me despedacei. que monstro foi liberado, que monstro em que me tornei? que tanta amargura, raiva, que não cabem em uma frase ou em uma pergunta a mim dirigidas? que medo, que receio de ouvir minha resposta? que tanta covardia? que tanta mesquinhez em fazer chegar até mim o que pensas por meio de bocas que não é a tua? que tanto ressentimento, me pergunto, é capaz de dividir o mundo entre os que ainda não odeias, os que já odeias e os que ainda não conheces?
não mais a verdade, mas as políticas da mentira de um modo geral a partir das quais contamos a alguém aquilo que somos. e o que somos não é mentira, não é mentiroso, mas é efeito de uma lacuna na cadeia de meias-verdades sobre o que somos. a lacuna, como a própria palavra remete, não é tampouco em si mesma uma mentira. poderá eventualmente ser. mas é antes e acima de tudo um silêncio e um pano de fundo cinzento indiscernível. elo quebrado da cadeia de meias-verdades daquilo que somos. a pequena sala trancafiada e escondida em cujo teto estão inscritas a hora e as condições da morte de Sétimo Severo. o pastor tebano para quem Jocasta entregou o recém nascido Édipo, que também viu Édipo matar Laio em uma encruzilhada, pastor tebano que se refugiou e se ocultou em sua cabana. não mais a verdade sobre o que somos e sobre os caminhos que nos conduziram até aqui. nenhum passado que condena. mas, por outro lado, as pequenas salas trancafiadas, os simples pastores refugiados, os lugares velados e os sujeitos não-cônscios.
um período imenso de silêncio para decantar.
"decantar" sempre foi uma linda palavra, pois significa "separar" e "enunciar melodicamente".
hoje dei uma volta inteira ao redor do furo do desejo. inlcui basicamente duas paradas:
1. uma pergunta a ser feita para meus pais (mais precisamente para minha mãe, embora a coisa toda faça convergência para meu pai);
2. uma afirmação a ser feita para mim (mais explicitamente anunciada, pois já está de todo modo enunciada para quem está por perto).
não vou melhorar, mas vou abrir caminhos.
a parte ausente sempre produz temor. porque qualquer coisa ou qualquer pessoa - menos nós próprios - pode habitar aqui mesmo. a parte ausente é um trono, um berço, uma cadeira de balanço para o outro. a ausência é, em si, uma lacuna concreta e material. o nada está aqui. temos a companhia de algo que nos falta. compartilhamos com o vazio (essas bolhas, os vacúolos) a existência. existir é também ser vazio: estar acompanhado de buracos. o vento assovia alto quando encana pelos buracos. às vezes faz frio, outras vezes faz calor: sempre cintila o espaço oco, afirmando-se na sua presença. o medo é justamente de que a presença da ausência seja suprimida pela irrupção do outro em mim. medo de que a lacuna seja substituída pela história que o outro vai contar de mim. medo de quando a bolha estoura, de quando o vacúolo é inundado, quando o nada ganha corpo e o vazio, um rosto.
decidam quando me tirar da vida pública (do condomínio, do bairro, da conversa lateral, da vida social como um todo). eu jamais saberei quando ir embora. sempre acharei que é tarde demais.
sonho 7:
preciso chegar à universidade. escolho ir até lá escalando prédios. quanto mais eu avanço, percebo que as paredes estão tomadas de limo. chego num determinado ponto em que não tenho mais onde me apoiar. preciso voltar e recomeçar o percurso, agora caminhando.
estou em um ginásio onde acontece um jogo de vôlei. as jogadoras são todas meninas. o técnico de um dos times é um grande amigo da época da faculdade; o técnico do outro time é meu atual chefe.
ex-premer aquilo que sinto, secretar - tornar o segredo público. fazer escorrer por um buraco. fazer visível por meio da transposição epitelial: dentro > fora. pela boca, mas também pelos olhos, nariz. pelo cu = o cu é muito sincero.
o meu sentido, adquirido com muito custo, sou eu que guardo.
sonho 6:
subo uma escadaria, junto com muitas outras pessoas. outras muitas descem. um homem vestido com farda militar, em tons de verde, absolutamente lindo, desce as escadas em minha direção. um pedaço da sua farda toca levemente meu rosto: sinto o brim verde roçando na minha bochecha. penso que jamais na minha vida chegarei tão perto de um homem tão bonito de novo. (quis o destino que hoje, acordado, eu pegasse um taxi com um rapaz bastante atraente, e que ele, ao trocar a marcha do carro, roçasse a mão no meu joelho.)
sonho 4:
vou a um encontro romântico com um jovem rapaz. nos encontramos em um café na cobertura de um prédio alto. o chão do café é todo feito de vidro, e sentamo-nos em uma mesa na beirada da cobertura. eu sento de costas para o horizonte. por causa do chão de vidro e da minha posição na mesa, eu entro em pânico, com medo de cair da cobertura do prédio. fico paralisado, e o jovem rapaz se frustra pelo encontro. sinto-me fracassado. em seguida, já não estou mais na cobertura do prédio e lembro-me da sensação de quase-cair, também da sensação de fracasso romântico. ao lembrar-me da cena e dos sentimentos, penso que aquilo não foi um sonho e sim algo absolutamente real; fico em dúvida. (surgem, de repente, buracos de viagem no tempo que abrem portais para outros espaços: ao atravessá-los, qualquer coisa e qualquer pessoa pode viajar. são buracos que engolem pilastras e carros, nos quais eu mesmo desejo entrar.)
sonho 1:
o pró-reitor me pergunta se o projeto de pesquisa já está pronto par ser submetido à agência de fomento. envergonhado, respondo que está em processo de finalização.

sonho 2:
uma professora pergunta-me se já li o trabalho de conclusão de curso da sua aluna. eu respondo que não, que jamais soube que eu faria parte da banca de avaliação. percebo neste momento que falo nu, sem roupas. a professora me entrega uma cópia do trabalho, na qual há várias anotações com minha letra. percebo que já havia lido, sim, o trabalho e que era interessantíssimo: a aluna fazia um mapeamento de palavras novas que surgiam na língua portuguesa a cada dia, que eram absolutamente originais, neologismos cotidianos atualizados, cujos significados eram ricamente construídos de acordo com a vida que as pessoas levavam. ela prova que essas novas palavras tornam outras obsoletas.

sonho 3:
moro num apartamento belíssimo, cheio de quartos e de salas, de cozinhas e de banheiros, no qual somente eu moro. é um apartamento tão grande que eu mesmo ando por ele e descubro novos cômodos fantásticos, todos mobiliados. preocupo-me, porém, em como manterei a limpeza de espaços dessa magnitude (são, efetivamente, espaços magnéticos, pois sinto por eles uma atração, um calor no peito de euforia em saber-me morando em um lugar assim).
estar na ilha e separar-se do continente, mas a ilha é o continente. a ilha vem a ser um continente. é próprio deste terreno tornar-se seco e imóvel. eventualmente a ilha cessa sua deriva, estanca, e aglomera-se com outras ilhas, ou permanece isolada. o que define a ilha não é seu movimento, mas a qualidade da separação em relação aos continentes. entretanto, as ilhas imóveis são pequenos continentes insulares. recuso o pensamento de uma comida, de um prato de comida, com medo de sentir fome. a ilha não dá de comer ao corpo. os livros estão bem organizados na ilha. o saber tem seu lugar, mas eu não tenho lugar no saber. o sonho ideal de fechar a porta do mundo repete-se toda a noite. das segundas às terças e das quartas às quintas é como se eu vivesse pequenos sábados para domingos. das sextas aos sábados e dos sábados aos domingos é como deveria ser. trata-se de uma ilha quase hermética, impermeável ao continente. se pudéssemos conceber, ao revés, um continente enquanto uma ilha, eu voltaria ao continente cônscio de que não importa a terra onde eu pise: seca, isolada, estanque, imóvel, separada dos pequenos continentes, a ilha sempre haverá de me encontrar, de fazer-se em mim. a problemática das ilhas nunca foi a distância, mas propriamente a separação dos grandes continentes. também nunca foi emblemática a imobilidade das ilhas, posto que sua grande marcação distintiva é o fato de serem desertas.
eu não sei se está chovendo lá fora. gostaria de dormir com chuva, com o som dos pingos na janela, nos carros e nas árvores. sinto um aconchego tremendo ao saber da água no lado de fora. dou-me conta de que essa sensação de aconchego é inseparável da segurança e proteção que sempre gozei. sempre tive casa, sempre tive quarto, sempre tive cobertores. sempre tive uma pele sedosa, que só agora começa a enrugar. cogito me levantar e ir até a sacada para verificar se chove mesmo. quero a comprovação. mas do que me servirá a comprovação - de que chove ou de que não chove? decido não ir até a sacada. escolho acreditar que está chovendo. se eu eventualmente verificasse que não está chovendo, eu teria de lidar com a frustração. é um pouco este o exercício geral: desistir da verificação, escolher acreditar no que aconchega e evitar a frustração. já tenho rugas demais para ter que aceitar que não chove, e que não posso fazer chover.
a descida espiralada da negação e as rugas ríspidas da rua; o que deixei hoje no assento, caindo do sacolejo do ônibus; por onde andei, me pergunto, como cheguei aqui; por quanto tempo houve a esperança de que tivesse sido diferente, a esperança de que ainda será; por onde deixei tudo que aqui agora me falta, que nunca foi meu e que sempre julguei de minha propriedade; como não percebi que era aqui afinal, o fim, a última etapa, o degrau por todos considerado o mais alto - que é para mim apenas o primeiro; e eu já cansado da escada; sinto pena profunda de mim; em qual escolha decidi torto, decidi enviesado; em qual espelho eu olho, em qual espelho curvado; não haveria será nenhuma chance de vida outra; não quis a sorte de nada perguntar e de apenas viver; eu, macabeia que se crê pensante, que não se salvará da ironia do asfalto; no asfalto acabará a descida espiralada: nas rugas ríspidas da rua.
Desde ontem experimentamos o feriado. Nas beiradas do sábado com o domingo, diminui a culpa de levantar da cama às 14 horas.
Mas eu estaria mais tranquilo com chegada de mais uma semana, a tal semana, se eu pudesse contar com um apoio que não viesse estritamente de dentro. Hoje escutei minha própria voz somente às 16 horas, quando eu lavava uma panela. Estranhei. Não costumo ficar tanto tempo calado na minha própria presença. Tenho ficado, contudo. Um apoio que não viesse de mim mesmo, que não se sustentasse por esse solo flácido que sou eu. Há algo que me cala na vida, na coisa toda viva. Não me considero à altura do empreendimento de viver. Todas as semanas são cruéis.
Se saio da cama às 9 horas, todo o meu dia se confunde. Os ponteiros do relógio se dobram, os números se esvaziam. Tamanha é a necessidade de produção, rastejo até a meia-noite. Horas produtivas é o que eu mais custo a ter.
Fico em silêncio, às vezes, na sala. Com as janelas abertas, geralmente à noite. Só escuto o som da geladeira. Fico em silêncio e deixo tudo me invadir: a geladeira, o vento, o céu, o calor e o frio. Quando estou fortalecido, permaneço em pé na sacada apenas deixando o tempo passar em mim. O tempo é tudo. É uma grandeza que se apropria de nós, à revelia.
As pontas dos meus dedos, onde mais tocarão?
haveria uma sensação a respeito da qual eu ainda escreveria: o zunido nos ouvidos depois de muita conversa; o zunido nos ouvidos depois de um show; os zunidos nos ouvidos depois de um dia pesado. Eu escreveria sobre o zunido, sobre o silêncio adornado pelo zunido. Não se restringe a uma onomatopeia: é um constituinte do profundo zelo do não-som. haveria também o sol se pondo, a perpendicularidade da luz, a sombra móvel dos telhados. Esvair-se no oeste e toda correnteza de fé que se vai no pôr-de-sol. Depósito de confiança no futuro.
E se o tempo fosse apenas o erro do sentido? E se houvesse somente um dia, sempre um dia? "Sempre" já não seria eternidade, mas uma partícula de algumas horas de luz depois da qual só restaria o zunido.
O zunido, o silêncio, a sombra, a luz perpendicular.
O tempo surpreendentemente tomando meu corpo, e a pele das minhas mãos e os fios do meu cabelo.
Eu ensurdecendo, pedindo para repetirem a última sílaba e a última palavra, ignorando um zum-zum-zum que diz meu nome.
As marcas de oxidação do ferro da sacada, marcando o "sempre" (chuva, sol, dia e noite marcando o ferro).
O silêncio de meses que se fez aqui, entre um texto e outro, caracterizado pelo zumbido do vácuo daquilo que já foi tão falado em outras vezes e que continua sendo sentido, e fazendo sentido, conduzindo "sempre" para o fim e para o desejo de fim, para a dúvida sobre o porquê de estar aqui, e vivo, sendo iluminado por uma luz perpendicular que parece estar "sempre" se pondo.

Eu lutei. Ele escreveu "eu lutei", e teve gente que desdenhou, que menosprezou, que achou um abuso da parte dele que viesse a público afirmar que havia lutado. Na doença eu lutei, e foi uma luta minúscula repetidas vezes no mesmo dia. Ele escreveu "luta minúscula", e isso escandalizou a todos. Cada dose dos medicamentos, cada corte da cirurgia, cada seringa e cada cânula nos meus orifícios - alguns que eu até ignorava existir: eu senti tudo no meu corpo e eu lutei com eles, contra eles, para eles. Eu lutei no meu corpo, deitado sobre a cama, tendo a comida levada à boca por outrem. Eu lutei graças a uma coisa mínima em mim que recalcitrava. Ele escreveu "uma coisa mínima em mim", e teve gente que satirizou o fim das grandes explicações econômicas, políticas e sociológicas. Deram-me um ano de vida com sofrimento, e eu lhes devolvi trinta com muito sarcasmo. Estavam todos raivosos por ele não ter morrido rápido.
não conduza jamais a batata à boca. ela arde. tem uma coisa em mim pronta pra sair - alou, amigo: seria por isso que sonhei que meu pai bradava contra minha minha mãe? era alucinante, louco, delirante, ela(ele?) reduzia minha mãe... nada. Não é isso? Não tem você e não tem eu? É isso que me corrói: a falta do outro. Por isso fico o tempo tempo (repeti) todo olhando pra sacada do vizinho.... tive dificuldades em escrever isso.... pois fiquei olhando pelo reflexo da janela da varanda da minha sala... pra ver se tinha alguém lá... E tinha! ele estava com a cabeça virada para nós, eu-tu diria, para essa coisa da qual ele não pode não escapar.... e daí me dá um escrúpulo. Pois a mim não interessa uma coisa grudenta em mim. Tudo começa com"abaixar o alto-falante do computador". GRAVE! É o vizinho? Escute..... É o vizinho? Haveria drama menor do que sofrer pelo corpo do vizinho? Selecione um drama e poste aqui. Eu pago por isso. Eu pago um real e a porra da inflação. Deixa eu digitar direitinho: d.i.r.e.i.t.i.n.h.o: eu sou normal. Eu cruzo as pessoas, eu as atravesso, MAS NÃO É ISSO, porque é sempre isso que você pensa quando a gente diz "atravesso". Que mundo é esse, no qual atravessar é quase um crime. Gente? Ficar apenas pensando na próxima frase é coisa pra fraco. O mundo subsistirá. "Apenas" o amor, né?. "Apenas", essa coisa bonita que acontece entre dois corpos. "Apenas" essa coisa da qual alguns não podem participar? Quanto a mim, permanece inalterado o estado de torpor. Venha a mim, e experimente a normalidade. Experimente: deguste; no peitinho, na bunda caída; pau murcho que não fode o cu. Normal, apenas o comum que podes encontrar no metrô. Eu e você, sem ser Minhocão ou Paulista. Você de mim sabe o quê a ponto de querer saber o que sai nas teclas? Te direi a tempo da coisa toda desvendada, escute: a coisa toda. Os pássaros dizendo e gritando, grágrágrágrá. Que merda isso, né? Até os pássaros dizem essa porra! Mas por onde mais tu haveria de dizer? Não tome corpo algum antes de saber se sua carne é apropriável, não coce a cabeça, não minta. Todos mentiram hoje, não sejamos desoneStos com quem chega. MAS EU NÃO SOU HOMICIDA, sabemos disso. No entanto, estás sempre na sacada à espera do olhar! A cabeça dell'e está aqui hoje. Não me custa cortá-la e fazê-la de minha sopa para bem amaciar aquele que é meu senhor e meu carrasco (Pausei para escrevê-lo no teclado). Meu cu ao procurá-lo. apenas crie e demande da vida. chame a vida para si. ela não existe fora. chame a vida para si.
Eu subi calmamente as escadas do hospital. Informaram-me o andar onde Maria Gabriela havia sido internada um dia antes para dar ao mundo Santiago. Resolvi exercitar as pernas um pouco. "Santiago", eu vinha pensando ao longo do voo de quase doze horas da Nova Zelândia ao Brasil, "Santiago", um nome de fé. Um nome para o qual dá vontade de ajoelhar. Eu e Douglas havíamos pensado em Valentim, mas ninguém haveria de ajoelhar-se para um Valentim. Naquela época, sete anos antes da escadaria do hospital, eu sonhava com um filho homem cujo nome não tivesse a vogal "O", pois julgava "O" demasiado masculino. Douglas, por sua vez, gostava da fé de Santiago. Mencionei que existira um San Valentín. E que existira um San Martín também. Martin seria lindo, não fosse a resistência de Douglas em relação a esse nome que, segundo ele, era uma Marta tímida. Douglas e Maria Gabriela decidiram-se por Santiago, e eu me deliciei. Havia três anos que eu e Douglas tínhamos nos separado e eu tive a certeza de que era comigo com quem ele ainda queria ficar precisamente pelo jogo persuasivo com que convenceu Maria Gabriela a adotar este nome para a criança. Douglas jamais contou para Maria Gabriela que fazíamos listas de nomes para nossos futuros filhos em dias de muito bom humor e depois de muito bom sexo. Apenas sustentou, ao longo de mais de oito meses, a escolha de um nome já escolhido para um filho que já havíamos tido. "A Gabriela é quase uma barriga de aluguel", pensei nas escadas, não fossem os olhos verdes e a voz calma que conquistaram Douglas. "Serão bons pais", eu tinha certeza. Cheguei ao andar do quarto um pouco ofegante. De imediato reconheci Douglas sentado em uma cadeira do corredor, seu pai estava ao seu lado. Douglas apoiava sua cabeça nas mãos, tinha o cabelo raspado. Dei passo por passo para não alertá-lo da minha aproximação. Queria que fosse uma surpresa e tanto. A alguns metros ele levantou o olhar, e eu vi lágrimas nos seus olhos. Ele se levantou dizendo "Ainda bem...", veio ao meu encontro, me abraçou forte e chorou muito. Quanto tempo eu quis sentir aquele abraço de novo, mas não naquele desespero de quem se agarra a um corpo no naufrágio. Maria Gabriela queria muito ter Santiago por parto normal, e aguentou as dores até quando não pôde mais. E não pôde. Foi necessária a cesariana. Todos ignoravam, ela mesma, a obstetra, a ginecologista, o pediatra, o cirurgião, que Maria Gabriela tinha sensibilidade a um dos componentes da anestesia. Choque anafilático profundo. Santiago nascera bem, nascera gordo, nascera chorando e se esparramando. A mãe entrara em coma. "E agora, como ela está?", "É preciso ter fé", me respondeu Douglas sorrindo, com lábios molhados de choro. "Eu posso ficar", eu disse. Douglas me olhou surpreendido, "Mas a gente tinha se separado porque você não queria ser pai". "Estou tendo a segunda chance e agora estou disposto a aprender".
Pôr-se à vista. Comprar roupas justas, de cores lisas e tecidos inteligentes (que pensam pelo corpo, no lugar da pele). Esperar o olhar, esperar o ônibus, esperar belo. Aguardar o pouso do olhar na pele, digo, no tecido inteligente. Senti-lo queimar, grudar mais na pele, embrulhar a pele como se a pele já fosse subcutânea. Pôr-se à vista e esperar o olhar pousar, raspar, tocar, fazer cócegas. Comprar um par de tênis inteligentes que propulsionam os calcanhares. Jamais tocar o chão. Posar e aguardar o pouso do olhar nos tênis inteligentes, que guardam pés bem hidratados. Ninguém verá os pés hidratados. O tênis inteligente vale mais que os pés hidratados; pés hidratados não vão além, não saltam, não amortecem. E no que se trata, ou quer se tratar, de hidratação, fazer balançar ao vento os cabelos também hidratados, bem cortados, brilhosos, estupefantes. Comprar shampoo inteligente que desembaraça os fios, que os reveste de uma camada de microespelhos: shampoo que pensa pelos cabelos, que os reveste, que os encapsula. Posar a cabeça imóvel na quina onde o vento ricocheteia e deixar os cabelos dançarem. O sol iluminando os fios na perpendicular, uma cabeça reluzente, porém não pensante. Quem pensa é o shampoo. Aguardar a vista, aguardar o olhar. Depilar o saco escrotal com cuidado, aparar os pelos pubianos. Envolvê-los em cuecas de tecido inteligente (um tecido que pensa pelos pelos, pelo saco escrotal, que pensa no lugar dos testículos). Aguardar a vista, esperar arrancar.

Contracorriente, Plata Quemada & Brokeback Mountain: Os Seis Homens que Não Amavam as Mulheres - ou Os Homens que Amavam Alguns Homens


A matriz homoerótica

Esse subtítulo em corruptela é um arremedo um pouco mal feito. Toma uma parte do título do primeiro volume da trilogia de livros “Millennium” – que do sueco para o português de Portugal foi traduzido literalmente para “os homens que odiavam as mulheres” – e o coloca a serviço de um desejo meu bastante específico: passear por entre algumas digressões a partir dos três filmes que encabeçam este texto. É um arremedo mal feito porque na trilogia “Millennium” não se dá centralidade às relações eróticas e afetivas entre homens como se dá em Contracorriente, Plata Quemada e Brokeback Mountain. É um arremedo mal feito porque “não amar as mulheres”, em “Millennium”, não é um outro modo de dizer “amar os homens”. É um arremedo mal feito porque “odiar as mulheres”, como explicita o título original em sueco do livro, não é o mesmo que “não amar as mulheres”, como é a tradução brasileira do romance. Mesmo sendo um arremedo mal feito, ainda aposto no seguinte: a matriz homoerótica e homossocial operante em Contracorriente, Plata Quemada e Brokeback Mountain pode ser expressa do avesso, em uma negação ou como em um filme negativo de uma fotografia, por meio da descrição “os homens que não amavam as mulheres”. Aposto, contudo, que os homens que não amavam as mulheres em Contracorriente, Plata Quemada e Brokeback Mountain não necessariamente odiavam as mulheres – apenas algumas delas. Nesses filmes, é possível sugerir que de fato os homens não amavam as mulheres, o que pode implicar na hipótese vigorosa de que, sim, “não amar as mulheres” corresponde a “amar os homens” – mas não todos, nem quaisquer homens. Talvez o subtítulo mais adequado a esta pequena digressão muito pessoal poderia ser: “os homens que amavam alguns homens”. Veremos. “Alguns homens” expressa bastante bem o que entendo ser a matriz homoerótica comum aos três filmes: tratam-se de três duplas de homens (Ennis e Jack, em Brokeback Mountain; Angel e Nene, em Plata Quemada; Santiago e Miguel, em Contracorriente) nas quais ao menos três deles encarnam especialmente certas masculinidades clássicas. Pescador casado, quase-pai (Miguel); homem do campo, seco e ríspido (Ennis); bandido ex-presidiário, fugitivo (Nene). Os correspondentes parceiros ou aderem à paternidade familiar e à relação monogâmica heterossexual de modo opaco (Jack), ou habitam um mundo esquizo, mentalmente esfumaçado por drogas e vozes inauditas (Angel), ou são artistas-pintores exilados, solitários, cujos laços com a urbanidade ocidental foram rompidos (Santiago). Nas três duplas, um polo encarna regras tradicionais do ser-homem, com toda sua disciplina espartana, linguagem árida e econômica, peles casca-grossa; o outro polo orbita aí como um resíduo deste homem-tradição, como um produto desencaixado, como um pedaço de terra à deriva, e às vezes em estado de revolta, deste imenso continente-homem. As três duplas negam o tropos da inversão, que faz novena ao mito de que um homem, quando ama outro homem, só pode ser uma mulher por dentro; que em uma relação entre dois homens, haverá sempre um mais feminino, que dará o cu para e que chupará rola do outro, que por sua vez ocupará o lugar mais masculino. Não há sinais aparentes de tributo ao tropos da inversão nessas três histórias, nessas três duplas. Talvez o mais desafiador das histórias envolvendo esses seis homens é que são “homens que amam alguns outros homens” enquanto homens, sem recorrer tão facilmente à feminilidade para dar inteligibilidade às relações estabelecidas, aos desejos, às práticas sexuais e afetivas que ligam, articulam, implicam e aproximam esses seis homens em suas duplas. Precisamente por isso, há uma ode à masculinidade viril, à hombridade supostamente honrosa, que apagam quaisquer marcas de feminilidade dos seus corpos, de seus desejos, de suas histórias. Tratam-se de três histórias que emergem e se desenvolvem de maneiras masculinas, másculas: nas montanhas frias, em cabanas no campo, durante o pastoreio de inverno ou durante pescarias fortuitas; em séries de práticas ilegais e de contravenção, na fuga baratinada da força da Lei do Estado, na frequentação de cinemas pornôs e banheiros de pegação, no uso e no abuso de drogas; na lida cotidiana e diária da pescaria em alto mar, em um vilarejo cuja ordem dos gêneros estabelece que os homens se lançam ao mar e as mulheres guardam a terra. As três duplas vivem às turras com a heterossexualidade e com a heternorma. Mas também delas se ocupam e a elas servem: Ennis e Jack usam como desculpa para suas esposas a pescaria anual na montanha Brokeback para viverem dias de paixão intensa; Miguel encontra Santiago somente em praias desertas ou em casas abandonadas, e regozija quando consegue passear pelo vilarejo de mãos dadas com o parceiro, ou quando assiste à novela acompanhado da sua mulher grávida e do parceiro – mas apenas quando este se torna uma alma penada e invisível. Só Angel e Nene, os criminosos que já transgrediram tantas regras, parecem dar pouco valor à heteronorma: Letícia, apaixonada por Nene, oferece-lhe uma oportunidade de fugir de Montevidéo para o Brasil passando-se por sua namorada; os policiais aduaneiros estariam procurando por dois homens juntos e não por um casal heterossexual, seria fácil cruzar a fronteira de modo seguro e invisível. Nene expulsa Letícia e escolhe ficar com Angel, resistir ao cerco da polícia uruguaia, morrer ao lado do seu resgatador espiritual. Quanto mais criminoso e ilegal é o casal, mais profundamente éticos são os homens. A matriz homoerótica que liga essas histórias, contudo, institui um princípio de invisibilidade e discrição entre as duplas que negocia, em muito, com a virilidade masculina, conjurando o fantasma feminino. A virilidade desses homens é elemento constituinte da matriz homoerótica que dá consistência, sabor e cheiro, aos corpos e aos rostos dos “homens que amam alguns outros homens”. São seis homens másculos, fortes, magros, brancos. Que desejo nosso as histórias desses homens realizam? Que estranha força tem a matriz homoerótica dessas histórias, desses corpos, a ponto de nos tirar noites de sono?

O resgate de si e do outro

O primeiro desses filmes a que assisti foi Plata Quemada, na Casa de Cultura Mario Quintana, pelos idos de 2000. O filme me mobilizou a ponto de assisti-lo 3 vezes, em dias consecutivos, exigindo que eu faltasse aulas para ir às sessões. Eu tinha 17 anos. A intervenção do filme em mim não foi amadurecida muito além da lembrança bastante firme das cenas de sexo e carícias entre Angel e Nene. Quando comprei meu primeiro aparelho DVD, uma das minhas primeiras aquisições foi justamente o filme Plata Quemada. Desde então me ponho a vê-lo sempre que quero, e com o passar dos anos o meu querer diminuiu consideravelmente. É um filme longo, e eu já conheço as falas de antemão. É um filme explícito em violência, uso de drogas, ilegalidade, roubo, traição, marginalidade, contravenção. Não é sempre que estou disponível a rever essa história que articula tão fortemente uma determinada experiência homoerótica àquilo que se considera ilegal e criminoso, moralmente reprovável. No entanto, essa articulação guarda em si aspectos éticos, quiçá de amor, que são opulentos. A cumplicidade entre Nene (frio e racional) e Angel (psicótico e impulsivo) é profundamente ética. Na sua fuga da polícia argentina por serem os autores do “assalto ao caminhão pagador”, ficam reclusos em um apartamento em ruínas de Montevidéo. Ao longo da fuga, Nene resgata Angel de ferimentos de bala, de overdoses de heroína, de tentativas de suicídio por afogamento; Angel, por sua vez, resgata Nene apenas nas últimas cenas do filme, quando este é baleado mortalmente durante o cerco ao apartamento onde se escondiam da polícia uruguaia. E trata-se de um resgate absolutamente espiritual, quando ambos sabem que suas vidas estão no fim. O nome deste homem, Angel, é um anúncio literal não só da sua função como resgatador de Nene perto do fim da vida como também um emblema de remissão mediante o amor, ou mediante o cumprimento do compromisso ético que liga esses dois homens. Em pouco difere a relação que Miguel estabelece com Santiago depois de sua morte. Miguel celebra funerais aos mortos, dedicando seus corpos ao mar por meio de um ritual que inclui carregar os mortos em seus ombros, deitados em uma esteira de taquaras e enrolados em panos simples, leva-los até um barco, dizer palavras de encomendação e lançá-los em alto mar. É precisamente desse ritual que a alma de Santiago precisa para ir embora da terra. Santiago “assombra” Miguel, que se satisfaz inclusive sexualmente do espírito vagante e invisível do parceiro, desejando que assim fosse até o final dos dias. É estarrecedor o egocentrismo de Miguel, que deseja que a alma invisível de Santiago permaneça presa à terra unicamente porque assim Miguel (pescador, marido, pai-de-família) despreocupar-se-ia em ser pego em romance com outro homem. É também deste egocentrismo macabro do qual Santiago precisa resgatar Miguel, ou melhor, do qual o próprio Miguel precisa resgatar-se por meio da prática do ritual fúnebre de entrega, dedicação e oferecimento do corpo de Santiago ao mar. Mesmo tendo encontrado o corpo morto de Santiago, Miguel amarra-o às pedras embaixo d’água para aproveitar um pouco mais sua assombração, a companhia do parceiro morto. As correntes, ou contracorrentes, marinhas traem Miguel e deslocam o corpo morto de Santiago, que é achado pelos outros pescadores do vilarejo e é escondido de Miguel. Afinal, Santiago manchara (punha em dúvida) o pescador-marido-pai-de-família, e de Miguel até mesmo o corpo em avançado estado de decomposição precisava ser afastado. Miguel descobre o corpo e aceita ritualizá-lo publicamente. Uma das consequências disso é a perda da mulher e do filho, que o deixam. Mas outra consequência da tomada de responsabilidade pelo ritual fúnebre do parceiro morto é a superação do seu egocentrismo macabro, liberando a alma de Santiago, além da assunção do resgate da sua honra ética para com Santiago – honra de sua relação, de suas pinturas, dos dias de sexo na praia, dos beijos, dos desejos. É-me difícil, contudo, pensar em resgate de qualquer ordem quando se trata de Brokeback Mountain. Talvez seja esta uma das razões pelas quais me pareça que esse é a mais triste e sombria das três histórias, mais ainda que Plata Quemada. Também não amadureci os motivos que me levaram a assistir ao filme oito (8 = o-i-t-o) vezes no cinema, duas vezes num só dia. É provável que eu tenha me fascinado, e me torturado, com a impossibilidade do resgate de Ennis e de Jack – a impossibilidade de resgatar aquela relação, aquele desejo, aquele laço ético que os unia. Quando Ennis tenta reclamar a presença de Jack e liga para sua casa, sua mulher lhe dá a notícia de que Jack morreu. A sequência de cenas nesse trecho do filme é intrigante e misteriosa: enquanto a viúva narra, emocionada, uma simples troca de pneu de carro que acabou com a borracha estourando no rosto de Jack, o que teria provocado sua morte, alternam-se imagens de outro possível desfecho para a vida de Jack, que sugere explicitamente o assassinato por crime de ódio. Não se sabe se as cenas do assassinato são uma alucinação de Ennis, ou são aquilo que a viúva tenta esconder ao contar a história oficial da morte do marido. Talvez, e somente talvez, haveria a possibilidade de pensar em um resgate – em um arremedo de resgate – para Ennis no movimento que ele faz de ir à casa dos pais de Jack e apresentar-se. O pai de Jack estranha Ennis, lhe torce o nariz e o bigode; a mãe, por outro lado, mostra-lhe o quarto do filho morto, onde Ennis encontra a camisa xadrez ensanguentada que o ex-parceiro guardou até morrer e que era o emblema do laço entre esses dois homens que se amavam. O filme termina com a imagem da camisa xadrez de Jack dentro do roupeiro de Ennis, que acaba vivendo em um trailler, nômade, sem mulher e sem suas filhas. Para Ennis, a única âncora, o único resgate é a camisa xadrez ensanguentada do parceiro morto. Há resgate, de si e do outro, sem a morte?

Alucinando para viver

Dá-me pruridos pensar em “amor” nas três histórias. Prefiro “ética”, “amizade”, aliados a “laço homoerótico”. Sinto que “amor”, nessas três histórias, serve quase como que um álcool-gel antisséptico que purifica uma relação proibida, abjeta – a relação entre homens. “Amor” nessas três histórias também funciona na direção de ocultar o “tesão”, a “pica dura”, os corpos eletrizados pelo contato da derme e pelo esgarçamento dos orifícios. O “amor” que Ennis sente por Jack, que Miguel sente por Santiago e que Angel sente por Nene não significa a remissão de seus pecados. Angel, o anjo resgatador de Nene, não pode redimir os pecados do parceiro, nem os seus próprios, pois são muitos e demasiado pesados. Talvez não seja difícil imaginar, nessa direção, as razões que fazem com que Angel deixe de trepar com Nene para “guardar o leite, o leite sagrado”. O esperma guardado talvez fosse, para o psicótico Angel, a única pureza que lhe restava. Não há economia de esperma em Contracorriente nem em Brokeback Mountain: Miguel é pai; Ennis e Jack também. Aí o esperma tem dupla função política, a de reprodução e a de satisfação dos desejos. Por mais que Santiago, em Contracorriente, não tenha descendentes graças à utilização reprodutiva de seu sêmen, mesmo assim ele não o retém, nem o poupa: espalha-o pelas ondas do mar até mesmo depois de morto, trepando muito com Miguel. As alucinações desses seis “homens que amam alguns outros homens” sinalizam algo, que ainda me foge. Angel ouve vozes, que o torturam e o obrigam a economizar sua própria porra, e Nene também alucina graças ao uso de álcool e drogas; Ennis alucina, talvez, uma outra morte para Jack, diferente da oficial que a viúva lhe conta, além de entregar-se à paranoia persecutória da saída do armário ao longo de toda a narrativa – o medo de ser pego com outro homem. De igual paranoia sofre Miguel, além de ser o único que “vê” a alma de Santiago, o que pode facilmente ser descrito como uma forma de alucinação psicótica. Porém, Miguel talvez seja o único desses homens que amadurece sua própria psicose, aceitando-a e incorporando-a como um realismo fantástico em sua própria existência. Depois de ritualizar o corpo morto de Santiago, Miguel vai de barco para alto mar, abraça-o e lança-o na água, dedicando-o ao infinito. Neste momento a alma de Santiago faz uma carícia no rosto de Miguel e o beija, aceitando deixar o mundo dos vivos e o parceiro. Miguel, por sua vez, ao cumprir publicamente o ritual fúnebre daquele “homem que amou”, deixa de negar sua relação homoerótica, deixa de esconder o laço ético que o liga à memória de Santiago perante os demais pescadores e moradores/as do vilarejo. Santiago parte para o mundo dos mortos, mas é imediatamente reinserido no mundo dos vivos ao ocupar publicamente seu lugar na vida e na história de Miguel. As alucinações, nas três histórias, servem para algo. Não são necessariamente um obstáculo, pois para Miguel foi precisamente o trampolim para a responsabilização ética acerca do que sentia por Santiago. As alucinações podem dar densidade aos corpos, como acontece com Nene e Angel: corpos densos de drogas injetáveis e aspiráveis, deglutíveis, mergulhados em porra; as alucinações podem sugerir respostas que justificam a perda irremediável do parceiro, como acontece para Ennis. Sem alucinar, não lidamos com a concretude crua disso que chamamos vida e disso que chamamos amor – “amor”, aliás, que no mais das vezes é em si mesmo a psicose preferida de todos nós.

A água e os corpos

Os corpos dos seis homens são lancinantes: doem de tão belos. Provavelmente uma das fortes razões pelas quais as histórias ardem tanto mesmo depois dos filmes terem acabado. Entretanto, embora marcados a ferro e a fogo pela masculinidade viril que lhes dá consistência, sabor e cheiro, esses corpos de homens são também perfurados por seringas, por tiros a bala, por socos, por pênis, por álcool e outras drogas. São corpos densos, espessos, de prazer e de dor. São corpos que fascinam, a tal ponto de Santiago retratar o corpo nu de Miguel em várias, dezenas de ilustrações. São corpos que desejam, a ponto de Jack pegar a caminhonete e cruzar a fronteira dos EUA em direção ao México para embrenhar-se em um beco escuro junto de outro homem. São corpos que matam e que se matam, a tal ponto de Angel tentar suicídio duas vezes e matar dezenas de policiais. A água serve de contexto para esses corpos densos e espessos: Miguel e Santiago trepam na areia, banhados pelas ondas, bem como é a água que tira a vida de Santiago e que, igualmente, restitui a responsabilidade ética de Miguel; é durante uma tempestade de Angel é baleado, e que Nene o socorre, bem como é lançando-se ao mar que Angel tenta se matar, e Nene o resgata. Onde menos há água é em Brokeback Mountain, apesar de os parceiros pescarem anualmente em um rio próximo à tal montanha como pretexto para dias de intensa interpenetração passional. A relação entre os dois cowboys é feita de pedra, rocha e neve; porém, quis o destino, ou um roteirista pouco brilhante, que o sobrenome de Ennis fosse “Del Mar”. A água, no saber astrológico, é puro sentimento, intuição, entrega, mistério; é também um elemento fundamentalmente feminino. Estaríamos, então, diante de uma representação arquetípica do feminino como o pano de fundo para amores tão viris? Improdutivo responder. Há algo, entretanto, sobre o qual me fascina pensar: esses corpos tão lancinantemente belos, belos de doer, decompõem-se a galope na água. Toda a virilidade, beleza, densidade e espessura se desfazem no corpo morto debaixo d’água. A água reclama para si a beleza e virilidade desses corpos, e o emblema máximo disso é quando Miguel entra a sala onde jaz o corpo morto, e em avançado estado de decomposição, de Santiago. Ele quase não suporta o cheiro da carne morta do parceiro e põe um lenço no nariz. Aproxima-se. O corpo de Santiago está coberto por papéis de jornal. Ele levanta o papel que cobre o rosto de Santiago. Pelo seu olhar, é possível sugerir que aquele rosto que Miguel conheceu, que amou, que desejou e que beijou, não estava mais lá. No corpo morto de Santiago existia, então, um rosto-monstro, o rosto da morte, do corpo reclamado pela água. Gosto (na verdade, detesto) de pensar nisto: toda a beleza, virilidade, densidade e espessura das quais se vangloriam muitos homens másculos que amam alguns outros homens másculos terão um dia um só rosto: o da morte.

As mulheres que amavam os homens

Quem são as mulheres nessas histórias? São geralmente traídas, raivosas, cínicas, periféricas, reprodutoras, traidoras, delatoras, mentirosas. Mesmo quando íntegras, elas abandonam os homens que amavam, mas que amavam alguns outros homens. São mulheres que não participam da Terra de Marlboro. Quando participam, atrapalham. Salvo duas exceções: a filha de Ennis, em Brokeback Mountain, que na última sequência de cenas o visita em seu trailer e reivindica participação na sua vida, positivando uma relação que, se dependesse do pai, estava fadada ao fracasso (como todas suas escolhas envolvendo sua relação com Jack); e, em Contracorriente, uma moradora do vilarejo onde Miguel mora que, de fofoqueira, passa a ser sua aliada na recuperação ética de sua honra junto à memória de Santiago ao contar para o pescador que o corpo morto do parceiro fora encontrado e que era mantido escondido dele. A filha de Ennis mostra que é possível um recomeço afetivo; a moradora do vilarejo mostra que é possível um resgate ético. A história das mulheres que amavam homens que não as amavam está para ser contada.

A morte como coroa

[.... ainda por vir, com mais fôlego.]

A ação Indedicatóra

Verdejantes, 02 de janeiro de 2015.

Prezados Senhores,
Presas Mulheres,
Prendidas Crianças,

Que houvesse ao menos um, Senhores, porém não.
Que houvesse de dois a quatro.

Nunca houve dedicação antes por estas minhas terras. E agora escrevem meu nome já nas primeiras páginas de um romance. Enganosa impressão, essa que fica, na folha e entre os leitores, de que eu me espalharei pelas páginas. Não sou coisa que se dilua em 200 folhas frente-e-verso. Concentro-me nos dedos a digitar por dias e meses. Saio em palavras quando bem entendo. Ao contrário das Senhoras, presas, e dos Senhores de igual mente, não sou protagonista. Bovary, Karenina: não. Sou um leitor em ação, em dedicação.

Por entre a virada das folhas de papel havia um veneno. É por causa dele que Vos escrevo - especialmente Vós, Prendidas Crianças. O veneno corrói os olhos de quem o lê, a pele dos dedos de quem vira as páginas. Polui a mente de quem chega a saber do romance, do seu título, da sua coisa toda interna. Não deem a Vossas Crianças um ai que sirva em seus cadeados. Não lhes sirvam comida às asas, às coisas emigratórias. Observem bem e controlem, por onde o veneno escorre. Corre-se o risco de que Mulheres, Crianças e Senhores não saibam mais, sob o efeito do veneno, se são presos, prezas, prisioneiros. Cuidai de Vossas Crianças; elas sabem demasiado o que fazem.

Ademais, certifico-me de rubricar cada página frente-e-verso.

Certo de sua Ciência, e desejando dedicações futuras nas quais eu possa me espelhar, dedico dedos introdutórios para próstatas ingênuas, leitoras do romance.

Cordeiramente,
O Dedicado.