estou feliz. meus exércitos se apresentaram para lutar. o que haveria de marchar em direção ao front, às linhas inimigas? mas eis que surge o problema: não estou em guerra. estou parado dentro de casa, em um estado de potência aguardando o limiar da explosão. vibrando. pulsando. ondulando. estou feliz aqui, neste casulo de pura virtude. uma bomba de lava ou lama.
que tolo, querendo atualizar os acordes de invernos passados. que tolo, inspirando o ar e querendo que doa nas narinas, na traqueia, porque é frio. o ar nunca é frio do mesmo jeito. nunca é o mesmo inverno. nunca é a mesma neve, nem aquela que se viu no sul, nem aquela que se viu no norte. nem aquela que foi simulada com pedaços de papel a3. em papel a3 está colado "preliminar" em toda a extensão de um pensamento que não é preliminar a coisa alguma, mas que é a coisa toda de seu tempo. como eu quis chorar esta semana, pelas pessoas que se atravessam no meu caminho e pelos caminhos que se querem reivindicando lugar em mim: quiseram que eu resistisse, que eu fosse alguém forte, mas sou um brinco da orelha da princesa, pronto para quebrar. uma tristeza imensa me tomou, e me quis paralisar, que é o processo pelo qual, de modo eficaz, você me faz sentir-me feio, me faz sentir-me abjeto, nojento. menos que a barata de GH, menos que as larvas que saem do ralo do meu banheiro quando ali jogo água sanitária, menos que olhar e nausear. menos. e é um peso, uma vergonha, uma corrente que se amarra ao peito e que vou levando, movendo-me com lentidão porque arrasto no chão minha cara e tudo o que diz de mim, que atesta que eu sou eu, envergonhando o próprio chão.
pois se há: coisas só ditas no não dito, coisas só entendidas no espaço entre as linhas. pois sim: forma e conteúdo dóceis, cada qual no seu quarto contíguo e separado. há um jeito de ser, não sabe?, que deve ser no mínimo mencionado em cada tomada de voz. a imagem, a palavra, o sentido, o significado: e tudo se resume a isso. esta deveria ser uma pergunta e não uma afirmação. tenho passado mais tempo sozinho que acompanhado nas minas andanças pelas cidades. tempo de pensar em tudo: na anti-matéria, no poder de dirigir um carro, na inconveniência de ter dito algo inadequado. de não saber. de não ser suficiente para saber e para passar o saber, produzir o saber no outro. penso que o que eu sinto é uma coisa tão minha, a ponto de o outro ser totalmente desresponsável por qualquer pensamento ou afeto que me ocorrer: a responsabilidade por aquilo que sinto é inteiramente minha. quero coisas que estão fora do meu alcance - e não é justamente essa a função do querer? pela primeira vez em anos eu penso antes de digitar, e não raramente apago frases inteiras, principalmente as que abrem os parágrafos, porque não encontro a entrada para aquilo que quero dizer. denuncio e bloqueio tudo aquilo que me excita. e assim vamos mudando de cidade, de latitude, de língua, sem mexer um centímetro no que pode ser verdadeiramente interessante: a forma triste através da qual tudo ganha sentido, tudo ganha conteúdo, o não dito entre o silêncio das coisas.
parei o carro na vaga do estacionamento, desliguei o motor. situação e lugar sensivelmente diferentes daqueles de outrora, quando o sol metálico escorria pelo asfalto, pela água do rio, pela vista da cidade vizinha. eu estava apenas parado dentro de um estacionamento. apenas em silêncio com o motor parado. tive um pouco de medo, pois aquela sensação eu já havia tido dezessete anos antes: sensação de que tudo estava para acontecer, mas que a vida passava muito rápido. daqui dezessete anos eu terei 49, e isso é assustador. eu serei assustador. eu estarei sozinho. um ano passa depressa, cinco, dez; dezessete é praticamente amanhã. eu só tenho mais dezessete anos para fazer algo da minha vida, para fazer algo com a minha vida. pois eu não vou desafiar a morte. não vou postergá-la. que ela chegue; eu simplesmente vou. só por mais dezessete anos... pensei que era inútil recomeçar ou tentar fazer diferente. tudo já está terminando, em processo de finalização. há dezessete anos eu pensava "ainda vai dar tempo" ou "um dia eu farei...". hoje eu penso que dezessete anos já estão aqui.
menos uma de todas as paranóias e explicações apriorísticas sem verificação. se falo com o outro e se circulo em meio à alteridade, preciso tomá-los naquilo que são, e aquilo que são só pode ser como se apresentam. não sei há risos por detrás de todo aperto de mão, mas é mais econômico psiquicamente lidar apenas com o aperto de mão. deixo o riso, a suposição do riso ou a crença no riso para mais tarde, um pouco antes de dormir, na contabilidade diária e administrativa dos acertos e dos erros. se o outro se apresenta careca e com barba, pois bem, é com sua careca e com sua barba com quem terei de me a ver, sem nenhuma atualização de outros corpos virtuais, sem nenhuma elucubração de história de vida. reduzir as pessoas à estreiteza do modo como emergem entre as várias outras não parece uma operação de desprezo. é colocá-las num plano raso, numa tela oca, numa inteira possibilidade de ser tudo menos os meus acréscimos projetivos, meus medos vaidosos. não posso envernizar um aperto de mão, uma careca e uma barba com minhas fraquezas, nem vesti-los com meus vacilos.