Gestos reticentes e olhares curvos

Ou sobre como relacionar-se com o desprezo alheio. Não foi algo que eu já não esperasse, que eu não contasse, que já não estivesse numa borda de possíveis e previsíveis. Desejei-o, é bem verdade, desejei-o para mim como desejo um beijo e uma sexta-feira. Gestos reticentes porque vazios, mas não totalmente vazios. Essa sua reticência é perversa exatamente porque carrega em si tanto o peso mais sincero quanto a nada, o absoluto nada. Gestos reticentes porque vazios, mas ainda com resquícios. Talvez fosse o caso de falar em gestos de resquícios. Tencionei me agarrar nos resquícios, nas reticências, os longos braços e pernas de pele alvíssima. Da sacada do meu apartamento eu podia ver as veias por debaixo da tez. Translúcido. Mas não insípido. Os olhos azuis. Ou seriam verdes? Vê? Já não lembro sequer da cor do teu desprezo.

E por falar neles, ah! Olhar com curvas. Nem pelo espelho eu te supus linear. Acho que errei, desculpe. Se errei, não há desprezo. Só há engano: enganei-me sobre teus gestos e teus olhares. Pois aí está! Olhar curvo, dissimulado. Não me guarde mal, sou apenas um espírito jovem e casmurro, mesmo não tendo avançada idade.
é só o mesmo fluxo de humanidade, gente, não se preocupem. Brincadeira de criança!
(ai, esse povo quer capa pra tudo!!!)


o teu O.B. é o mesmo que ponho no meu hipotálamo.

Deixe que as estações comecem

Meu primeiro nome é Luiz. Com ‘z’. Sou feito de coisas tolas, coisas poucas que foram se justapondo durante vinte e cinco anos, coisas tolas e poucas que foram acumulando como pó e aqui ficaram, a pesar para baixo, formando uma gota. Como, por exemplo, a letra ‘z’ do meu primeiro nome, que é uma tolice. A letra ‘z’ ou a letra ‘s’, a priori, não fariam nenhuma diferença para que eu me apresentasse, mas de qualquer modo todo um processo administrativo foi levado a efeito junto ao cartório em que fui registrado para que se trocasse a letra ‘s’ do primeiro registro do meu nome – o escrivão tinha uma personalidade forte e não deixara que eu fosse Lui’z’ – para transformar-se na letra ‘z’. Te convido para analisar a forma destas duas letras: ‘s’ é suave e curvilíneo, é uma dança no papel e nos dedos de quem escreve, é um caminho sinuoso. ‘S’inuoso. A letra ‘z’ radicaliza as dobras do ‘s’ e cria ângulos onde antes havia curvas. Radicali’z’a. Como disse Deleuze: “Z é uma letra formidável que nos faz voltar ao A”. Ele explica que ‘z’ é o movimento brusco, angular, que deveria preceder ou substituir o Big Bang. “Você gosta de ter um Z no seu nome?”, pergunta a entrevistadora. “Adoro!”, responde o velho com longas unhas.

Eu também adoro ser Lui’z’. Mas não me incomodaria em ser Lui’s’. Me pergunto, e acho que isso é importante para ti, que não me conhece, se eu seria fundamentalmente diferente se eu fosse curvilíneo. Se eu chegasse numa noite toda negra, em que corpos interagissem e se lambessem publicamente, ou se eu me insinuasse pelos bosques, pelas matas, pelos matos e pelos parques noturnamente, individualmente (eu e os outros corpos, individuais), se eu bebesse e se eu me deleitasse, se eu gastasse o tempo e o dinheiro que tenho e que não tenho, se eu me vestisse e ainda assim me envergonhasse do meu corpo, se eu tentasse e sofresse, se eu tentasse e não conseguisse, se eu fosse o que não sou... Eu seria o quê?

Não sei, mas definitivamente eu não seria Lui’z’. Viste quantos ‘s’ constam no parágrafo acima? Demasiados ‘s’. E eu não sou ‘s’, sou ‘z’, sou Luiz com ‘z’. Eu vou seguindo por um caminho que muda bruscamente, para outro lado. Não me curvo, não 's'uavizo. É o choque que o ‘z’ causa na escrita do meu nome que me permite chegar a dizer “eu sou”.

Mas, como eu dizia, sou feito de coisas tolas e poucas. De todo modo, coisas que foram criando tensão sobre a superfície do meu corpo e, então, chegaram ao ponto de dizer “tu és lui’z’”. Não sou eu quem diz, e sim as coisas que me fazem ser quem sou. Tu te interessas por isso? Não sei bem em que momento comecei a te admirar, a te erotizar ou a te desejar. Acho que o verbo é exatamente esse: desejar. De’s’ejar, porque o que sinto vem em curvas, em intensidades de onda, em movimentos curvilíneos por ti. Não sei se é teu nariz em ‘z’, ou teus olhos negros profundos – de cigano? Oblíquo? Dissimulado? – ou se sou eu que me engano. Aposto no meu engano e gosto de acreditar na beleza dos ângulos do teu nariz, de noventa graus, cento e oitenta, nariz de triângulo, de Báskara. Eu ouço uma música que me faz lembrar muito do teu nariz, mas também dos teus olhos e sobretudo das tuas mãos. Oh!, tuas mãos me apaixonaram por primeiro. Quando elevaste teus braços à altura dos ombros, eles em arco na frente de teu rosto, as mãos em frente aos teus olhos – negros, buraco-negro – e os dedos indicadores (direito e esquerdo) encontraram os polegares com uma suavidade que os impediam de se tocar, me apaixonei. Posição de balé clássico. E uns dedos longos, uns dedos alvos, umas unhas bem cortadas, opacas. Dois olhos de buraco-negro entre um nariz triangular e protuberante. E sorriste.

Teu corpo dançou em ziguezague. A letra ‘z’ em teu corpo e a letra ‘z’ no meu nome. E é impossível que não tenhamos nada a viver um com o outro. Talvez tu com o meu corpo, e eu com teu nome.

as verdes noites do fundo dos olhos em que tu dormes

Eu sei que não era bom que eu tentasse, que eu insistisse, mas eu pensei “por que eu deveria ficar angustiado por não ter chegado lá na borda, lá no limite?”. E eu vim. Mas agora me arrasto como pano de chão, rasgo como um caco de vidro. Estes foram os melhores e piores dias da minha vida, sem mágoas. Dos melhores e piores não sei se o que restou de mim é o que tenho de mais forte, de mais bonito, de mais duro ou de mais inútil. Isso que sobrou de mim depois dessa patrola, isso não sou eu... sou? Aqui no limite não mora muita gente, mas eu. Alguém mora na borda? Ou a borda foi feita para que seja experimentada sempre do seu lado avesso, sempre como estrangeiro, como forasteiro... E aqui mais uma borda e mais uma tentativa, mais uma insistência. E eu penso “por que eu deveria ficar angustiado por não ter virado estrangeiro e forasteiro?”. Vou lá revirar a borda, pôr do avesso o limite (as minhas, os meus [e de arrasto levo dos outros] que eram tão curtos e próximos e hoje se alargam). Mas esse estrangeiro que me tornei, esse exilado – é bem verdade – ele é a parte dura de alguém que já foi mais agradável, porém bem menos aventureiro. Gosto desse exílio, desse estrangeiro, mas o viajante no qual me tornei já não guarda mais nenhuma similitude – aparência, similaridade, eqüidade, correspondência – com o genuíno e autêntico EU. Só sobrou a parte dura, a casca-do-fora, o bagaço. O sumo se foi. Depois da patrola, o exílio, e só resta a casca-do-fora. "Nunca houve o genuíno", me diz o forasteiro; "não há autenticidade, nenhuma nacionalidade do eu, nenhum eu-pátria", me diz o estrangeiro. O nômade acredita ter raízes na terra apenas enquanto a madeira queima na fogueira, em torno das barracas recém levantadas, depois vai-se embora com as cinzas.


Eu olhei apenas de relance, não quis me deter. Mas são tão verdes as tuas noites quanto são azuis as minhas? São tão desgrenhados os teus travesseiros quanto são encaracolados cor-de-mel os meus? Não nos demos conta naquele momento, mas éramos forasteiros um do outro. E como nômades que somos, passamos por mim e por ti quase sem debruçarmo-nos mais extensivamente na terra a ponto de fazer fogueira. Não há cinzas de nós. Só verdes noites pra ti, travesseiros platinados pra mim.