Continuação da entrevista V - "De medo estou e estamos borbulhantes"

- Será algum medo da responsabilidade de articular estas palavras e ideias, além de publicá-las?

- (silêncio)... Medo e responsabilidade, que delícia de temas! O que seria do medo se não houvesse a responsabilidade, não é mesmo? Acho ou achamos que, de fato, uma das questões principais dessa problemática acerca do autor ou dos autores destes textos todos aqui publicados gira em torno exatamente do princípio de responsabilidade. Atribuir palavras, e palavras são atributos das ideias, atribuir palavras e ideias a um autor específico entre tantos que por aí criam outras coisas além de textos – há quem crie cores nunca antes vistas, há quem crie novas formas de extrair esperma dos testículos de um homem, enfim, nenhuma dessas pessoas é considerada um autor, com letras maiúsculas – essa atribuição só se faz necessária quando tais palavras e tais ideias rompem com algo previamente dado. Aí se torna importante atribuir um texto a um autor. Porque daí se produz a responsabilidade, e o princípio de responsabilidade tem a ver com o rompimento de algo que não se supunha passível de ser rompido. Não é o fato de ser “um autor original”, mas de ser alguém capaz de arcar com essa responsabilidade, de responder afirmativamente no meio de uma multidão e quando questionado: “sim, fui eu quem escreveu” ou “sim, fui eu quem pensou”. Eu não faço ou nós não fazemos nada disso: não rompo nem rompemos com coisa alguma. Mas isso não basta para justificar esse mistério acerca do autor ou dos autores dos textos aqui publicados. O princípio de responsabilidade só existe com o objetivo de recortar isso que chamamos de autor de uma massa amorfa e insípida para, então, expô-lo à visibilidade. O princípio de responsabilidade é também um regime de visibilidade no qual inscrevemos o autor ou os autores: para controlá-los, para saber deles, para conhecê-los, explorar-lhes os meandros da mente, as maneiras com que associam ideias, os modos com que sua subjetividade foi construída ao longo de sua história de vida, as razões que o lveram a morrer da forma com que morreu, se morreu. E em nome desse regime de visibilidade reviramos a biografia daqueles que elegemos como sendo autores em busca das esquinas que essas pessoas precisaram dobrar, em busca dos traumas de infância pelos quais passaram, na tentativa de reconstruir – seja através de filmes, de músicas, de fotografias ou mesmo através de outros textos – os momentos seminais que fizeram do autor isto que conhecemos, e não uma outra coisa. Queremos beber desta vida e apertar a mão daqueles que foram seus mestres. Entendes a crueldade? Eu não quero nem nós queremos dar o rosto à vista, ou dar a assinatura à pena, sequer as impressões digitais à tinta, porque não quero nem queremos ver nossas vidas revisadas por qualquer outro que seja. Porque da minha vida só sei eu, e da nossa história só escrevemos nós. E se outros as quiserem contar, que esteja claro que estas vidas recontadas são biografias absolutamente irrelevantes, produções editadas de um material que não é passível de representação – porque, como já sabemos, por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz. Com isso não quero dizer “minha vida é apenas minha”, nem “nossa história é somente nossa”, porque não há vida que tenha um único dono ou uma mesma dona; com isso sugiro que não há vida que legitime nem subjetividade que responsabilize suficientemente alguém por dizer o que diz ou por escrever o que escreve. Não é perscrutando a biocronologia de uma pessoa que vamos achar as causas, as justificativas, os porquês ou as motivações veladas de se pensar o que se pensa. Se eu não assumo um rosto aqui é porque há abutres querendo comer a carcaça do ventríloquo que aqui fala através deste teclado; se nós não assinamos estes textos com nome e sobrenome é porque não faltarão pessoas a nos cobrar recalques, depressões, desejos sexuais perversos de onde supostamente emanam as razões de escrever isto que está publicado aqui há mais de um ano. Não tenho e não temos por que matar esse limbo feliz de uma não-identidade em nome de um princípio de responsabilidade, muito menos sob a insígnia de um regime de visibilidade. Por outro lado, quanto ao medo... (silêncio)... Sinto e sentimos, de fato, muito medo. Se há algo que posso ou que possamos dizer que me ou que nos caracteriza, isso seria o medo. Porque há muito que posso perder e há muito que possamos sofrer com rostos, com assinaturas, com impressões digitais. Assumir um nome, ou vários nomes, seria endossar nosso assujeitamento ou complacência sobre certas posições das quais não me orgulho, nem nos orgulhamos. Sou e somos indulgentes com muitos de quem amamos, e expor essa veia aberta nesse regime de visibilidade me traz e nos trazem problemas éticos gravíssimos. Não posso contar a vida de terceiros aqui simplesmente usando-os como motivo de chacota ou de deboche e também não podemos descrever cenas que muitos considerariam íntimas para censurar-lhes as fraquezas. Não é só pelo fato de eu ou nós considerarmos que a definição de privacidade é fazer cocô de portas fechadas que fará disto um conceito para todos. Há quem não se importe em ver aqui publicada sua história de como foi cagar em um banheiro público sem portas, e esse mesmo alguém pode se sentir prostrado em ver sua depressão, sua insegurança e sua infelicidade contada aos detalhes, às minúcias ricas em ironia, para quem quer ler. De medo estou e estamos borbulhantes.

- Há algo mais que tu ou que vocês gostariam de falar sobre o medo?

Continuação da entrevista IV

- Mas o autor não é capaz de criar? Nós não somos capazes de originalidades?

- E quem de mim ou quem de nós disse em algum momento que somente autores criam? Salvemo-nos da obrigação de criar, salvemo-nos da ditadura da originalidade, por favor. Mais: criação nunca foi sinônimo de originalidade. Criar algo não significa que esse algo criado é absolutamente novo, inédito, inaugural. Pense: o que em ti é inédito? O que te faz pensar que tu és a autora da tua existência? Passamos boa parte das nossas vidas respondendo às demandas que nos são oferecidas – veja, usei ou usamos a expressão ‘oferecidas’ e não ‘impostas’, como gostariam alguns intelectuais. Se a sociedade pede, respondemos afirmativamente buscando novos corpos, novas profissões, novas especializações, novas terapias pro ego, novos silicones pras nossas caídas e despeitadas subjetividades (risos). Então, quando dizemos ‘a sociedade pede’, ‘a sociedade demanda’, ‘a sociedade impõe’, quando dizemos estas coisas todas estamos também nos colocando no lugar de quem pede, demanda e impõe. Todos nós estamos no mesmo barco, cujo nome é ‘sociedade’. Há mesmo algo de novo pairando no ar? Há de fato algum novo espectro rondando a Europa? Há realmente algo de podre no reino da Dinamarca? Nem Marx nem Shakespeare foram autores absolutamente originais. Apenas equalizaram a polifonia de suas épocas, meteram em megafones vozes que antes eram murmúrios. Eles pinçaram burburinhos sem nome, capturaram os sussurros impotentes e lhes deram filiação, endossaram suas verdades através do ajuste que fizeram com as regras do então jogo, compactuaram com as leis do enunciável de suas épocas e vociferaram ideias que não são necessariamente só suas, mas que são toda a expressão de um tempo, de uma geração. Marx e Shakespeare hipertrofiaram palavras magras e, de brinde, assinaram-nas com seus nomes, documentos nominais com suas assinaturas, isso que hoje chamamos com muita pompa e circunstância de ‘suas obras’, converteram-se em ‘autores’. Aquilo que cintila e que ecoa, tudo aquilo de visível e de dizível que cada época tem, isso tudo não é da ordem da originalidade: isso tudo é da ordem do assujeitamento, pois aqueles que se assujeitam às regras do poder dizer e do poder fazer ver é que, de fato, nos aparecem como autores – e na maioria das vezes ainda ganham o glorioso adjetivo de ‘originais’. Falam para nós - e quase sempre falam de nós, falam coisas que supostamente deveríamos saber sobre nós - de modo claro e nos fazem ver coisas que antes julgávamos inexistentes. Oh, exclamamos nós, que pessoa original! Interessantes mesmo são aqueles que gritam em vez de nos falar, são aquelas luzes que nos cegam em vez de nos iluminar. Interessantes são aqueles que derivam, que incomodam, os inclassificáveis. Van Gogh não vendeu um quadro sequer até morrer porque suas pinturas eram desprezadas. Mas o bárbaro de Van Gogh não é sua assinatura; a originalidade de Van Gogh, pra usar uma expressão que talvez te faça entender melhor meu argumento, estava no fato de ser solenemente ignorado pelas regras de sua época. Sua técnica de pintura e seus temas eram profundamente desprezados; eis seu magnetismo.

- Ótimo, muito bom. Tu te considera ou vocês se consideram autores, ou autores originais?

- Não. Eu não me considero, nem nós. Não assinamos nada, não doamos nossas impressões digitais, não temos caligrafia, nem rosto para uma foto três por quatro. Não há nada em mim, nem nada em nós, que me faça ou que nos faça arcar com a responsabilidade disso que está sendo falado aqui.

- Será algum medo da responsabilidade de articular estas palavras e ideias, além de publicá-las?

- (silêncio)...

Quando ninguém mais nos ama

Te aceito com tudo que vem contigo: tua história, tua proveniência, tua trajetória, tuas certezas e também com os parasitas da acne que perfuram teu nariz. Aceito de bom grado tudo o que te fez chegar até mim deste jeito, e não de outro. Ignoro os erros, o sêmen desperdiçado, as horas de sono que avançaram sobre as aulas da faculdade – ondas que apagam o rosto desenhado na areia. Desvio das tuas dores e das doenças que maltrataram teu corpo, que foram laceando o couro sobre o qual eu hoje me deito, e empurro mais para o lado, suavemente, o viço opaco da tua pele saudosa de juventude. A história de cada um tem essa beleza, a de corroer cada dia mais a arrogância do nascimento. Suspendo por um instante os amantes que te fizeram amar como hoje tu amas, e todas suas músicas e murmúrios lânguidos, sonolentos, suas promessas pretensiosas de paixões eternas que, ria-te se fores capaz, provaram ser cópias farsantes de um romantismo vil unicamente pelo fato de tu estares aqui hoje desejando meu corpo. Meu corpo não te promete, não contrai dívidas contigo; não jura nenhuma verdade, nem entrega amiúde relatório da sua viagem. Meu corpo recebe tua história sem pompa, sem recepção solene, e se insinua pelos teus cantos, esguio, balbuciando palavras frias das quais só se escuta o eco reverberando lá dentro de ti (vazio, apesar da proveniência altiva): “ninguém mais nos ama”.

Cartas a uma jovem bicha que deu certo - saudades portuguesas

Oi, minha amiga!

Desculpe a demora em te responder.

Olha só:

- dê o cu em Portugal. Por favor, Beibe, deixa de ser boba e libere o buts. Não vem me dizer que “ai, dói”, ou “os paus que tem por aqui são muito grandes” ou “estou plenamente satisfeita dando minha buceta”. Para com isso. A questão é tu deixar de achar que o cu é igual à merda, ou deixar de achar que merda é sempre ruim, e soltar essa louca anal que há em ti (que há em todos nós, na verdade). O problema é tu achar que é um problema cagar fora de casa, ou com gente por perto escutando os sons, os ruídos, os cheiros. Isso é corpo, e corpo tem cheiro ruim, tem sons e ruídos, o corpo é de última. Dar o cu é aceitar o corpo, a merda e o prazer que ele tem a nos dar. E passar um belo de um cheque é ter de encarar a dor e a delícia de ter um corpo, de viver num corpo. Tu até podes fazer a chuca pra não passar o cheque (não sei como fica essa história da chuca aí em Portugal, já que o chuveirinho que nós usamos aqui no Brasil pra lavar o reto eles aí usam pra lavar a cabeça – vá entender), mas saiba que passar o cheque FAZ PARTE DO PROCESSO DE ENTREGA E DE EXPERIÊNCIA DO CORPO. Não dá pra ser bonita sempre. Seja feia alguma vez, mas se dê de presente um orgasmo anal.

- desejo do fundo do meu coração (que é raso) que tu voltes daí carregando uma pedra em cima do nome do Bófi. Deu, acabou, terminou, passamos pra outra fase do videogame. Aí na Europa tu podes perceber que há outros homens no mundo, outros homens bonitos, outros homens inteligentes, outros homens de outras cores, e tu é apenas e tão-somente mais uma mulher no mundo. Não adianta usar isso pra justificar “ah, mas o Bófi é tudo, mas com o Bófi eu tive um relacionamento de verdade, mas ele é tão culto, com ele eu podia ir ao cinema e conversar sobre o filme logo depois” só porque outros caras não conseguem ser do mesmo jeito que ele é. Não dá pra continuar procurando o Bófi nos outros. Será que não é tu que insiste em dar valor somente a algumas características e esquece que as pessoas têm várias qualidades? Detestei ver o Bófi no aeroporto aquele dia, mas entendo perfeitamente os motivos que o levaram até lá e também entendo o fato de tu ter gostado de vê-lo por lá. Só que não consigo concordar com isso, não gosto dessa pseudo-relação que vocês mantêm, acho que faz mal pra vocês dois – e pros terceiros e terceiras que existem entre vocês. Vai viver outras coisas e deixa que ele viva outras coisas também. Vocês já aprenderam o suficiente um com o outro, não há mais porquê vocês ocuparem as moitas e não darem lugar pra outras pessoas passarem nas vidas um do outro.

- trabalhe. Trabalhe de graça, trabalhe com sub-remuneração, tenha (mais uma vez na vida) a experiência de dar tudo o que tu podes dar e ganhar bem pouco em troca. Mais ou menos aquilo que tu viveste no X ou no Y. Não quero que tu fique pra sempre trabalhando que nem uma camela e ganhando pouco, mas acho que quando a gente sente na pele a injustiça que é o trabalho, a injustiça que é a profissão, o desgosto que é ter de arcar com a responsabilidade de produzir alguma coisa pros outros e praticamente não ser recompensada nem ser reconhecida por isso, a gente quase sempre se torna mais humilde. Eu mudei muito minha relação com meus pais (e até sobre tudo o que penso sobre minha irmã) depois que eu comecei a trabalhar sério no Z e na faculdade por causa da bolsa. Mudei minha relação com meus amigos. Mudei a maneira com que eu valorizo as pessoas que eu passei a conhecer na minha trajetória. Não acho que “o trabalho dignifica o homem”, mas acho que o trabalho dá um outro sentido pra nós, muda o jeito com que a gente lida com o dinheiro, com nossos valores e nossos princípios. Sabe por que eu te escrevo isso? Porque quando a gente sentar na Redenção ano que vem, depois de eu ter voltado do Rio e tu de Portugal, eu não quero te ouvir falar só dos homens tu pegou durante a semana. Quero te ouvir falar também sobre eles, sem dúvida, mas não quero ouvir só isso, como se beijar e trepar fossem os acontecimentos máximos da tua vida. Tu tem potencial pra muito mais que isso, pra trabalhar e pra estudar, pra viver outras coisas além dos prazeres da conquista. A gente deixou de ser adolescente já faz um tempão, tu não precisa mais me perguntar o que eu acho de tu mandar um cartão de ‘feliz aniversário’ pra um namoradinho teu (lembra disso? Foi nossa primeira conversa na escada do XXX, quando tu me perguntou se tu deveria escrever um cartão pro Outro Bófi). Hoje em dia a gente pode fazer de tudo, Beibe, tudo mesmo, a gente conseguiu chegar num estágio ou num patamar que até viajar pra fora de Porto Alegre, pra fora do Brasil a gente pode. Acho que está na hora de nós dois sermos mais adultos. Eu espero isso de mim, e ficaria feliz em te sentir da mesma forma.

- aproveite. Não é todo mundo que tem o pai e mãe que tu tem, que podem te dar uma viagem pro exterior pra estudar. Eles são ótimos, cada um com seus defeitos e suas qualidades, mas eles são bárbaros e fazem de um tudo por ti. Acho que tu tem isso de maravilhoso, que é viver rodeada de pessoas que gostam muito de ti e que desejam que tu vá sempre pra frente. SEMPRE PRA FRENTE, e não parada num mesmo lugar, não indo de lado como um caranguejo ou dando pra trás. Sempre adiante, com ritmo e vontade. Se tu tiver tirado todas as fotos que tu queria tirar de algum lugar, tire mais algumas, de um outro ângulo, de uma outra paisagem ou de algumas outras pessoas. Sempre tem algo de novo nas pessoas ou nos lugares que a gente pode enxergar. Se te convidarem pra um café, pra um vinho do Porto ou pra um bacalhau, aceite. Pode ser péssimo, e daí a gente vai rir muito disso. E pode ser ótimo, e tu jamais vai esquecer dessa situação. Sempre aceite os convites, sempre deixe guardado mais um “sim” pra dizer pros outros. Sempre tenha mais um olhar fatal pra lançar pra um português (ou italiano, ou espanhol, ou alemão, ou norte-americano ou.... ou um brasileiro!). Sempre tenha mais 5 minutos pra ficar na cama em dia de chuva. Essa parte do email ficou parecendo “Filtro Solar” do Pedro Bial, mas a minha mensagem é que A GENTE SEMPRE PODE FAZER MAIS COISA QUE A GENTE PENSA. E isso é o que eu chamo de ‘aproveitar’.

E eu tou bem triste aqui. Porque me dei conta que não tenho mais amigos. Aos poucos, com esse meu jeito sensível de ser, eu cortei as pessoas da minha vida. De alguns eu não sinto falta, ou até sinto, mas entendo que não podem fazer mais parte da minha vida porque simplesmente já vivemos o que tínhamos pra viver, já aprendemos juntos, foi legal e passou. De outros eu sinto muita falta, saudade mesmo. Fica um buraco em algum momento do dia, são pessoas pra quem eu podia ligar pra dar um ‘oi’ e não posso mais. Eu sou meio assim, vou podando as pessoas, cortando, rasgando, amassando e seguindo em frente, deixando rastros e migalhas pra trás. Chega num ponto em que a gente paga por ser desse jeito. Abri mão de muita coisa em nome do trabalho, em nome do estudo, em nome do namoro, em nome do sono. Mas eu sempre soube, às vezes mais claramente e às vezes mais sombriamente, que esse seria o meu jeito de levar a vida: como um turista, um estrangeiro perdido, um exilado. Eu sei que vou morrer sozinho, isso já não me assusta tanto; o que me interessa é ‘aproveitar’ até chegar lá. Fazer sempre mais do que eu acho que posso.

E desculpe se esse email tem muitas palavras repetidas como ‘vida’, ‘os outros’, ‘viver’. É que essas coisas todas (vida, os outros, viver) tão me azucrinando nos últimos meses, elas têm estado na minha cabeça zanzando como moscas.

Beijo e saudades, saudades grandes e densas!
Use gel lubrificante pra dar o cuzinho!!!

Continuação da entrevista III

- Eu gostaria de esclarecer o seguinte: o que seria isso que tu chamas de reinvenção de si?

- Essa é uma pergunta fundamental, importantíssima. Reinvenção de si, para mim ou para nós, significa estar sempre atento ou atentos àquilo que poderíamos ser diferentes de antes. Reinvenção de si, para mim ou para nós, é entrar no fluxo do processo de não ser sempre O Mesmo, não ser sempre idêntico. É dobrar sempre mais uma esquina, entrar sempre por mais uma porta ou sair sempre por mais uma janela. É olhar-se e nunca reconhecer-se como outrora, é como ser um constante retrato cubista. Sobretudo, significa transformar a questão “quantos leões terei de matar hoje?” para “quais os leões que posso domar hoje?”. Reinventar-se é a possibilidade de mudar a todo momento as relações que nos assujeitam. Isso tem importantes implicações, por exemplo, para a função autor a partir da qual começamos essa nossa conversa. O autor ou a autora, ou os autores ou as autoras, não é ou não são proprietários e proprietárias, sequer inventores ou inventoras, de seus textos. Colocando-me ou colocando-nos contra a vontade da maioria, que nem de longe é democrática, não admito ou não admitimos ser punido ou punidos por aquilo que escrevo ou escrevemos. Sou ou somos porta-vozes dessa nossa polifonia. Admito ou admitimos, então, que posso ou podemos ser boca-maldita ou boca-do-inferno, mas tão-somente se a maldição e o inferno forem aqueles compartilhados por todos nós.

- Mas o autor não é capaz de criar? Nós não somos capazes de originalidades?

Continuação da entrevista II

- (...) Parece-me que tu tens uma certa aversão à noção de identidade...

- (silêncio)... Jamais disse ou dissemos que a noção de identidade me ou nos causava aversão. (silêncio). Veja, esse problema, o da identidade, não é apenas uma questão teórico-conceitual, não é apenas um modo de expor ou de descrever as maneiras com que o mundo hoje se produz e as maneiras com que ele é vivido. Dizer “o mundo é assim hoje por causa disso e daquilo”, ou dizer “o que estrutura o mundo hoje é isto e aquilo” são formulações que empobrecem isso mesmo que têm pretensão de explicar: o mundo. Não me ou nos interessa tanto o mundo quanto as pessoas que dele fazem parte, que o sustentam e que fazem do jeito que aí está. (silêncio). Seria possível de levantar a questão do mesmo, da identidade, do idêntico, enquanto função que cruza o domínio da produção das subjetividades de modo contundente. Com isso, sugiro ou sugerimos que O Mesmo, assim escrito, com letras maiúsculas, implanta não exatamente um lugar confortável a se habitar, mas faz aparecer um jogo a partir do qual ele será produzido e re-produzido constantemente. Tenho ou temos um casal de amigos que estão juntos há quase quinze anos e em todo aniversário da relação eles vão ao Mesmo restaurante, comem a Mesma comida, depois vão para o Mesmo ponto da cidade admirar a vista – que não é a Mesma de quinze anos atrás, e por isso eles reclamam – e depois fazem sexo e gozam na Mesma posição. Para este ano, eles planejam renovar ou reafirmar o voto de matrimônio. Perguntamo-nos: é necessário? Respondemos: Sim! Porque O Mesmo precisa, requer, demanda, pede, grita pela reafirmação, pela repetição. (silêncio). O problema da mediocridade me parece ou nos parece que tem a ver diretamente com o jogo do Mesmo, da identidade. É a repetição à exaustão daquilo que é idêntico ao anterior: casamento, família, amor romântico... Mas não só isso! Temos o costume de enxergar com desprezo todos esses valores pequeno-burgueses, assim mesmo, com esse nome, por causa de nossa genealogia marxista. Outrora acreditamos que a revolução da classe oprimida nos libertaria da coisa mais odiosa que pode haver: a própria opressão. E foi então que, depois de investir fortemente na produção desta revolução, nos demos por conta que a classe oprimida também faz uso da opressão. Mais uma vez, nos deparamos com o jogo da identidade: a opressão não está intrínseca à classe e àqueles que a compõem, mas na relação que a classe estabelece com as demais. Há também repetição e mediocridade nesse culto à putaria, à cocaína, à prostituição. Acredito ou acreditamos, contudo, que há muito mais possibilidades de reinvenção de si para aqueles que habitam tais margens, como as da putaria, da cocaína e da prostituição do que para aqueles que insistem na família e no amor romântico como modelos de vida a serem perseguidos, como é o caso desse casal que acabei ou acabamos de mencionar. Eles detestam o fato de a paisagem da cidade ter mudado em quinze anos, ou seja, detestam o movimento que o diferente imprime ao idêntico. As ditas classes oprimidas exerceram opressão idêntica àquela que sofreram, e o jogo do Mesmo se atualizou. Não houve reinvenção nem para as classes oprimidas, nem para meu ou nosso casal de amigos. (silêncio). Haveria rompimento da repetição, talvez, se esses dois amigos que estão juntos há quinze anos cheirassem cocaína no dia de aniversário da sua relação, e pagassem pelos serviços de um profissional do sexo para trepar com eles, e se mesmo depois disso eles estivessem juntos no seu aniversário de dezesseis anos de relação para, então, ir ao Mesmo restaurante e pedir a Mesma comida e perceberem que o tal restaurante tem uma cozinha horrorosa. O que quero ou queremos dizer é que a diferença provoca e desafia a identidade, não no sentido de superá-la para dar-lhe outra identidade, mais reforçada que a anterior, mas no sentido de fazê-la reorganizar seu sentido. (silêncio). Isso porque a diferença não tem um lugar, não tem uma marca, ela não compactua com nenhuma regra do jogo da identidade. (silêncio) E quando falamos em “o autor”, quando lhe atribuímos um nome próprio ou uma coerência à obra por ele ou por ela produzida, estamos endossando o jogo da identidade, o jogo do Mesmo. Seja pela sua caligrafia, seja pela sua estilística. Desculpe-me ou desculpe-nos pelos inúmeros momentos de silêncio. É que essa problemática da identidade é algo que me comove ou nos comove.

- Entendo perfeitamente e louvo sua habilidade em falar de um assunto tão difícil; voltaremos a esse tema em breve. Eu gostaria de esclarecer o seguinte: o que seria isso que tu chamas de reinvenção de si?

Continuação da entrevista

- (...) Mas voltemos a um ponto: o da caligrafia. Tu achas que o fato de os textos, hoje em dia, serem digitados no computador faz com que a caligrafia se perca? A digitação desconstrói essa identidade da letra desenhada com o próprio punho?

- Essa pergunta me parece ou nos parece interessante. Penso ou pensamos que não faz sentido falar numa perda da caligrafia, ou numa perda da identidade da escrita de próprio punho. A princípio, tenho ou temos sempre a vontade ou o desejo de entrever a positividade dos acontecimentos: a caligrafia não se desfaz com os teclados dos computadores, ela é reinventada. Pensemos, por exemplo, no quão difícil era entender o que estava escrito numa receita médica. A total confusão das palavras ali escritas, do modo com que elas estavam escritas pelo punho do médico, era ela própria uma relação de poder: somente o médico ou a médica e o farmacêutico ou farmacêutica entendiam o que ali estava – e às vezes nem um nem outro (risos). O paciente, ou o cliente, ou o usuário dos serviços de saúde não decifrava o que estava escrito, apesar de saber sua saúde em estado de dependência daquele texto incompreensível. Se um médico ou uma médica hoje em dia pode escrever sua receita através de um programa de computador e apresentá-la impressa para seu paciente ou seu usuário, isso desfaz muitos mal-entendidos! Digamos que essa – abre aspas – perda da identidade – fecha aspas – da caligrafia médica tem a potencialidade de mudar a relação de poder entre médico e paciente. Pensemos, por outro lado, o quão difundidos eram algumas décadas atrás os tais cadernos de caligrafia. Eu cheguei a fazer muitos exercícios neste caderno, meus pais me estimulavam para isso. Minha mãe, que é professora primária, dizia que isso facilitava o trabalho das professoras e dos professores na correção dos textos dos alunos, sobretudo quando nas séries iniciais, de alfabetização. Ora, os cadernos de caligrafia não passam de uma técnica de disciplinamento dos corpos! Eles efetivamente se constituem numa estratégia de docilização dos corpos, no sentido de compor uma uniformização da letra escrita sob a alegação de prover maior e melhor clareza e compreensão do texto do aluno ou da aluna em processo de alfabetização – o que não passa de um incremento no controle exercido pelo professor ou pela professora sobre seus alunos e alunas. Mais que isso: os cadernos de caligrafia, atuando na uniformização da letra escrita, acabavam por apagar isso que hoje chamamos saudosamente de – abre aspas – identidade da caligrafia – porque visavam a um modo único de escrever. Em suma, essa mudança técnica, conceitual e política que hoje se coloca para o exercício da escrita usando computadores já está inserida na nossa sociedade há muito tempo, mas através de outros processos que historicamente são invisibilizados. O caderno de caligrafia é um deles. A máquina de escrever, a seu tempo, foi outro. Mas o que eu queria ou nós queríamos é sublinhar que, sim, talvez exista atualmente uma descontrução disso que se chama a identidade da caligrafia, mas também me parece ou nos parece importante assinalar o deslocamento dessa suposta identidade do desenho da letra para a forma com que se usa ou se brinca com as palavras, com as vírgulas, com os travessões, com as regras de gramática e uso de expressões coloquiais nos textos escritos e publicados. Da estética visível, que é a caligrafia, para a estética sensível, que é a da compreensão e habilidade para jogar com a linguagem. Isso, é claro, renunciando avidamente esse lugar vazio, o do autor.

- Renunciar ao lugar do autor? Parece-me que tu tens uma certa aversão à noção de identidade...

- (silêncio)...

Entrevista com o, os, a, as autor, autora, autores

- Ouvi dizer que tu não és um, és vários. Isso é verdade?

- (risos) Veja que a pergunta traz em si suas próprias armadilhas. Em primeiro lugar, a expressão “ouvi dizer” já não combina com a palavra “verdade”, embora para alguns “a voz do povo é a voz de deus” (risos). Quando se ouve dizer, assim, num comentário ao pé do ouvido, num murmúrio longínquo, enfim, quando alguma informação sem autoria nos chega, é possível que nada dela se extraía a não ser calúnias com vontade de verdade. Acusações sérias e graves como essa normalmente não são feitas sem que seu autor, ou seus autores, tenham nome, endereço, cep, celular, email, perfil no orkut, tudo revelado. Isso porque muitos querem pra si o orgulho de que tal acusação seja verdadeira. Segundo, ser “um” é um sonho tão patético! Jamais somos “um! Na nossa masturbação diária em frente ao computador somos os mesmos daqueles que somos quando sentamos à mesa para almoçar com nossos pais, nossos filhos, nossos homens ou nossas mulheres? Por que motivo, então, me cobram ser um ou uma quando escrevo, ou quando escrevemos, para esse blog e outro ou outras quando saio ou quando saímos pra comprar pão? A questão de eu ser eu, ou não ser eu, ou de ser eu e mais outros tantos, entre outros tantos eus, é tão óbvia quanto irrelevante, porque tudo que aqui há também está nas novelas da televisão, nas letras das músicas do rádio e da internet, nas notícias dos jornais, em suma, as histórias que aqui se leem não são minhas ou dele, ou dela. São sobretudo nossas! São produtos de um tempo específico, do nosso tempo. E, perdoa-me, me parece muito antiquado perguntar “é verdade?” para um entrevistado, ou para vários entrevistados (risos).

- Por quê?

- Porque a questão da verdade não é formulada desse jeito, “isto que afirmo é verdadeiro ou falso”, não sem antes poder ser formulada no interior de um campo de possibilidades do verdadeiro.

- Podes explicar melhor?

- Sim, claro, sou generoso, ou generosa, ou somos generosos com as mentes menos brilhantes. Não faria sentido perguntar para um escriba da Mesopotâmia se ele era um ou vários autores dos pergaminhos escritos em seu colo, já que não havia muitos que soubessem ler e escrever. Não faria sentido perguntar para um remetente se ele ou ela era um ou vários autores da epístola que viajava de Veneza à Londres no século XVII. Isso porque, em ambas as épocas, as possibilidades técnicas de escrita dificultavam que houvesse mais de um autor para um mesmo texto, o que não significa que um escriba não pudesse continuar escrevendo um pergaminho inacabado, ou que algum impostor não pudesse falsificar a letra de um amante e escrevesse uma carta cuja autoria fosse uma – abre aspas – falsidade ideológica – fecha aspas. Com isso, quero ou queremos sublinhar que justamente numa época como a nossa, em que o teclado dos computadores digita letras sem caligrafia nas folhas em branco, em que existe um espaço como a internet em que os escritores de textos podem permanecer anônimos, nesta nossa época se faz possível um certo conjunto de dúvidas sobre a autoria de alguns textos que vemos circular. Nesta nossa época é possível duvidar que não exista apenas um autor ou uma autora para um ou vários textos. Duvida-se, de um lado, que um autor ou uma autora tenha escrito vários textos, e se duvida mais ainda que vários autores tenham escrito apenas um texto! Nessa nossa época é que se faz possível questionar-se sobre a verdade ou a falsidade de afirmações do tipo “você é um autor” ou “você são vários autores”.

- Obrigado, sua resposta foi bastante esclarecedora. Mas voltemos a um ponto: o da caligrafia. Tu achas que o fato de os textos, hoje em dia, serem digitados no computador faz com que a caligrafia se perca? A digitação desconstrói essa identidade da letra desenhada com o próprio punho?
Muitos substantivos, eles dizem, textos muito substantivados. O “eu” continua sendo o ator/autor da narrativa, continua sendo um personagem autônomo, autocentrado, cheio de poder para dar significado à vida. Usa demasiadas palavras para dizer o que pensa, e como pensa, quando na verdade o que existem são inúmeros vacúolos de silêncio no seio desse “eu” pensante que tenta disfarçar suas lacunas com palavras. Nada mais claudicante que palavras para dar conta do niilismo do “eu” – nem o corpo lhe serve como abrigo ou como substância.

Existe linguagem possível? Pra dizer que quando teus cabelos voaram sobre a testa, repartidos pelo meio da cabeça, e teu olhar me reconheceu e eu te reconheci? Pra dizer que te sabia por trás do interfone, subindo o elevador, caminhando pelo corredor? Pra quando senti teu dedo pressionando a campainha? Pra dizer que palpitou meu olhar e saltou minha mão, antes descansando sobre minhas pernas cruzadas, na direção da tua, pra dizer que teu peito passou demasiadamente próximo dos meus olhos e que não pude crer – nunca tinha percebido antes – o quão possante ele é? Eu sei que tu te insinuas, que tu baixas a cabeça quando não sabes o que dizer, mas mesmo aí nesses instantes teus olhos sobem e procuram os meus formando um ziguezague que nem desce ao chão e nem voa pelos ares. Eu sei que tu te enroscas nos postes, que tu deslizas pelas ruas na caça, na procura, na peregrinação solitária de mim. Eu estou aqui, estou aqui, e não em outro lugar.

De pé, em frente às portas abertas que dão para um imenso salão supostamente vazio e escuro, concordo que meu vazio és tu, que nunca será preenchido.

O que é um autor

Hoje me joguei na biblioteca. Me sentei e li durante alguns minutos várias páginas sobre o que foi, ou quem foi, um autor que gosto muito. Já morreu, faz tempo. Estranho exercício o de construir roupas, risos e rostos para atribuir as palavras que admiro tanto. Porque, na verdade, ele tinha muito de normal (justamente do ‘normal’, daquilo que ele passou boa parte de sua vida na inglória tarefa de desconstruir). Porque, na verdade, vejo muito de mim naquela figura esguia, cujos fundos das gavetas e das prateleiras pareciam guardar sempre mais caminhos interligados a cômodos impensáveis dentro de sua casa. E ontem me joguei no shopping. Comprei calcinhas finas, de pleno potencial para o rasgo, de modo que sejam facilmente sugadas pelo turbilhão do meu “meio”, do meu “entre”, do meu “meridiano” – tanto o frontal quanto o dorsal. Gostoso mesmo é sair da loja com a certeza de que não tenho como pagar pelas calcinhas, que não tenho muitos a quem mostrá-las, mas a delícia é usar algo que não é meu e, ao mesmo tempo, apoderar-se dele: sugá-lo para dentro, in-corpo-rá-lo. E anteontem me joguei na terapia. Fui tratar dessa compulsão pela verdade, pela retidão e acertos de escolhas, pela vontade de transparência. Não sou, não posso ser transparente, não quero exigir o mesmo dos outros. E como é difícil não poder intuir, ou fazê-lo minimamente, quase às cegas! Porque vontade de transparência e paixão pela verdade são formas de vigilância e de controle, tesão por governar o outro. Ora, que governo quero exercer? Já não me basta a calcinha enfiada no meio das pernas, ainda sinto desejo de vigiar a cueca alheia? Quem é esse autor?
Tardes cinzas que eu supunha esquecidas voltaram em tons degradê. No tobogã que se abriu em curvas, do branco ao preto, nenhum sulco colorido impediu meus movimentos. Não é somente um outro jeito de olhar, nem um outro jeito, talvez mais ingênuo, de se mostrar. A descrença e a desconfiança são modos de materializar a vida; tão concretas quanto as novas imagens que fazem e desfazem as telas onde lemos e escrevemos sobre nós mesmos.

Aniversários

No primeiro ano de namoro, comemoramos todos os meses. Meses como se fossem anos. Cada noite de cama compartilhada, cada dia amanhecido, cada reinado da escova de dentes de um na casa do outro, cada briga, cada gozo têm um aspecto de elefante. No primeiro ano de namoro, cada reconciliação é um novo começo e não um remendo mal feito numa roupa já puída pelo tempo, absolutamente demodê. Cada pedido de desculpas tem a mesma função de uma nova roupa estendida no varal: limpa, cheirosa, quase pronta e esperando para ser usada. No primeiro ano de namoro, o corpo de um jamais será uma formiga para o outro: é uma serpente, uma jiboia que enrosca, que sufoca, que aperta – mas não mata. Cada almoço ou café da tarde precisa ser detalhado, cada telefonema não pode ser suspeito. Não pode haver comunicação anônima, comunicação oculta, códigos e simbolismos. Tudo precisa ter uma vontade de transparência, ou ilusão de sinceridade, porque a proporção de uma semana, de um dia e de uma hora é de uma baleia para um verme. E a primeira noite separados, e o primeiro dia de mau humor, e a primeira agressão e a primeira lágrima, tudo pesa mais que rinocerontes. A metade de um ano nunca é só a metade; é sempre mais, sempre mais importante, mais densa, sempre significa mais que as próximas metades dos próximos anos. Os próximos seis meses talvez serão, aí sim, seis meses. Mas não os primeiros seis meses. Os primeiros seis meses são tigres albinos. No dia de aniversário do nosso namoro, são dois burros que assopram velinhas?

Escatologias indizíveis

Sentei no vaso sanitário e senti uma satisfação irrefutável. Entrei no elevador e precisei soltar um: alegria desconcertante. Feitas de pequenos prazeres, as escatologias indizíveis dessa minha vida de doente incurável se rebuscou com momentos de silêncio constrangedor em torno dos fluidos, gases, secreções e excrementos que meu corpo processava. Havia horas de vergonha profunda, quando eu ainda andava, quando eu ainda falava, e as outras pessoas ainda poderiam objetar que era falta de educação, insensibilidade e indelicadeza arrotar no restaurante depois do primeiro copo de cevada. Mas depois que me foi negada a possibilidade de usar meu corpo como todos os demais usam (para andar elegantemente, para sorrir de um modo polido, para cumprimentar, beijar e dançar), decidi, então, usá-lo como todos os demais jamais gostariam de fazer. Por experimentar umas outras experiências corpóreas. Comecei soltando gases, freneticamente um em seguida do outro, debaixo dos lençois e dos cobertores. Ninguém percebia até que algum movimento dos tecidos deixasse escapar alguns centímetros cúbicos do ar pesado que por baixo me esquentava – de fato, essa estratégia me foi útil nos dias de inverno rigoroso. A defecação também foi bastante proveitosa: a pressão do bolo fecal na última porção do intestino misturava uma certa ansiedade com a alegria do descarrego, da liberação. Sentir as fezes ultrapassando o corpo, tensionando o corpo, sentir o corpo expulsando as fezes é mais do que o último movimento da digestão. É um exercício de desapego, já que passei a não mais me preocupar com o cheiro, nem com os vestígios que isso deixa. O vômito também foi bem-vindo, mas exigiu maior maturidade, pois é exatamente o inverso da defecação. Precisei entender que às vezes é fazendo o caminho inverso que posso me sentir mais leve. Assim foi com o suor e com o hálito. Também com a urina. E não me preocupei com limpeza, pois pra mim tornou-se importante apenas a limpeza do meu corpo a contar da pele para dentro, e não da pele para fora. Da pele para fora, a limpeza do meu corpo só interessa a quem comigo está. Da pele para dentro, ela só interessa a mim mesmo. Resolvi deixar de atentar para o que os outros diziam sobre meu corpo. Da pele para dentro, meu corpo estava leve, mesmo tendo sido privado dos gracejos mais comuns e dos galanteios mais sedutores. Gracejos e galanteios são da pele para fora, e da pele para fora não há limpeza possível de apagar as marcas dos nossas escatologias.

Assassinos que há em mim

Tem por aí um cheiro forte de tarde que termina, um cheiro de cansaço do fim do dia, de gozo esquecido desde a manhã entre os lençois. Não chega a ser nauseante, nem é delicioso. É mais um dia já do segundo semestre de um ano ímpar que faz o sol se por.

E não haveria de ser? Pela manhã me satisfiz em arquitetar pequenas vinganças, mil vinganças pululantes para meu futuro próximo: um olhar de desprezo, um riso irônico, umas palavras cortantes (It’s word, its sword), dezenas de facas lançadas em velocidade cortante sem alvo algum. Fazem, todas essas, parte da minha bagagem – e da minha munição – para dar mais um passo além sem ter que baixar a guarda para nada.

À tarde me ocupei dos socos, dos tapas e dos pontapés que desejo dar, das grandes violências e dos assassinatos por estrangulamento que sonho em cometer – justamente por estrangulamento, de modo que minha vítima não fale, não sussurre, não seja capaz de pronunciar palavra sequer; ou seja, morte pelo silêncio. Entretive minha mente no planejamento dos espancamentos que anseio: pegar pelos cabelos e bater com força sua testa contra o marco da porta, reincidir uma cadeira em suas costelas, jogar pela escada e ver suas pernas e seus braços darem nós enquanto rola degraus abaixo. Jamais torturaria, pois gosto de agressões explosivas e agudas, nunca seria capaz de sofrimentos crônicos e requintados.

À noite, depois que o cheiro do fim se desprenda e depois que as pessoas esquecerem que lá se foi mais uma quarta-feira, acho que vou investir nas decepções e nas mágoas. Nos dramas que farei quando eu for trocado por um corpo mais rijo e mais enxuto, nos textos teatrais que vão misturar culpa e rancor, que vão se perguntar “por que eu não sou melhor?” – e cuja resposta será sempre um vácuo anônimo. Depois de assassinar, violentar e me vingar, vou lamentar tudo isso. Pra poder recomeçar do zero na manhã seguinte.

Cartas a uma jovem racha - saudades francesas

Pessoa insana;

pelamordeDIEU (sim, porque je parle Frances aussi), quando tu voltas, se é que voltas?

A umidade tá correndo solta por aqui, assim como a gripe suína. Ainda ontem eu tava tomando um café e tava com o nariz escorrendo, com um lenço a tira colo, e as pessoas me olhavam torto, me censurando, se levantando das mesas e saindo de perto de mim. O medo e a insegurança estão horríveis, nem mais boquete na Redenção à noite está rolando (os bofes tão exigindo exame que comprove soronegativo para vírus da gripe suína, por aqui também chamada pelo nome carinhoso de PIG). Mas eu não estou com a PIG, é tudo preconceito & discriminação - nada com o que eu não esteja acostumado.

Eu sempre detestei Brasília. Sempre. Quando tu me disseste que tu ia pra aí, eu te disse: "Brasília é a pior cidade que eu conheço". E é. Mas ainda bem que tu estás numa bolha de luxo & glamour, né, meu bem, porque bichas de terno fazendo a linha New Yorker é tuuuuuudo. Aqui eu tenho que aguentar até meia soquete com sapato de fru-fru.

E as festas? E os homens?
E o (piiiiiiiiiiiiii)? E aquela boca gostosa dele?

Eu sigo na minha vidinha matrimonial, cozinhando às quintas à noite pra esperar o marido (e se a janta não está na mesa quando ele chega aí eu apanho, apanho mesmo, apanho de vara e de pau duro, mas tu sabes que eu sempre fui mulher de brigadiano, eu góstio). Não piso numa buatchy desde aquele fatídico sábado de carnaval. Ah: comecei há um mês um curso de tarô & astrologia (porque já deu pra perceber que o doutorado não leva a nada). Tou linda e astróloga. E pasme: não bebo álcool há 14 dias - de nenhum tipo.

Quando termina esse curso?
Quando vai ter um novo concurso para Miss Elegância (já que nem eu, nem tu jamais fomos Miss Simpatia)?

muah, muah, au'revoir Shirley!

Perguntas tolas

Ao me responder a pergunta, tive a sensação de que ela já sabia que eu perguntaria exatamente aquilo, exatamente dele. E se ela fosse tão médium quanto dizia que era, de fato ela saberia. Pois então, com toda força de sua mediunidade – que tinha um preço, nenhum pouco barato – ela me disse que meus caminhos não comportariam alguém que precisasse de amarras para viver em segurança. E estava dito.
E me disse outras coisas mais: que eu viajaria, e viajaria muito. Tanto, mas tanto, que de uma dessas viagens eu não retornaria. Estaria ela falando da morte? Não. Ela disse que aqui eu não fico, que aqui não é meu lugar, que na verdade eu não tenho lugar algum, que meu destino é ficar errando – e, ao errar, ir acertando as dívidas com meu kharma – pelo mundo, nomadismo, vida cigana, sem raízes, rizoma puro. Quem diria: uma cartomante deleuzeana! Disse também que viajaria pra longe, pra além mar, e que lá está o dinheiro que vou ganhar – e muito – e que lá está minha carreira sólida – no mínimo, de muito sucesso – e que lá está o homem com quem vou passar mais da metade da minha vida. O amor está do outro lado do mar. Do outro lado do mar e no avançado futuro. Do outro lado do mar, no avançado futuro, em um país bastante frio. Em pensamento, de modo bastante elegante, agradeci aos deuses por me reservarem um marido loiro, de ascendência viking, com um pinto bem rosa. (O que não quer dizer, é claro, que eu não vá encontrando – ou errando, errante que sou – alguns pingos de felicidade em ébanos rígidos afrodescendentes que tanto admiro).
Marquei teu nome e o que veio foi aquilo que já sabíamos: não. Entre uma doença ali e uma inveja aqui, ela disse que tu és do bem, que me quer bem e que está do meu lado sempre que eu preciso, mas que é só. É só e é raso. E tem fim. Pois quando eu puser o pé no avião, e eu vou por, teu caminho vai seguir um rumo que irremediavelmente te levará para um ninho que não tem lugar pra mim. Isso porque, em primeiro lugar, eu nunca tive um ninho – sou errante, nômade, lembras? – e em segundo lugar, a praça onde farei meu acampamento cigano fica longe daqui, além mar. E ela me disse que tu jamais vais conhecer o além mar. Então tá: ponho os pés no avião, e tu assenta tuas raízes. Eu sou do ar, e tu da terra. Disso nós dois já sabíamos; então pra que perguntar novamente – tolamente – sobre algo que já tínhamos uma resposta?

Cartas a uma jovem bicha - galetinhos

Terra do Nunca, 30 de fevereiro de 2012

Querida bicha;
Te escrevo deste terra linda, que um dia tens que conhecer! Ou não vais poder... Porque ainda esse ano o mundo acabada. Não vais conseguir chegar nem na esquina para vislumbrar o que se vive aqui, e como se vive aqui.

É uma pena. Mas te adianto: fazer sexo é como tomar chá: tomas com quem quiseres, a hora que quiseres, onde quiseres: todo mundo acha bonito e elegante: tem quem faça olhando pra rua, na janela, de cortinas abertas: há quem faça no parque, pela manhã e à tarde, em cima apenas de uma toalha xadrez: há utensílios especiais pra isso: todo mundo liga no dia seguinte perguntando se vai ter mais (pasme!).

Bicha, não crês. Mas sinto cá comigo um pendor leve para os galetinhos. Para os jovens, os efebos, os de penugem rala sobre os lábios, os de pernas roliças pela tenra idade. Aquelas panturrilhas de pelagem de primeira estação enfiadas em tênis e meias de futebol saídas de bermudões soltos... Me pergunto que interesse é esse o que eu tenho nesses corpos jovens e nessas mentes frescas. E te digo que é porque os jovens carecem de algo que excede nos velhos: o passado. É atordoante, beirando a demência, conviver com o passado de longa data de quem quer que seja. Eu tenho um passado, bastante denso é verdade, mas a leveza dos galetinhos chega até aí. Eles não se importam, ou pelo menos ainda não entendem, o peso que têm as lembranças.

Bicha, te lamente. Porque os galetinhos aqui tomam chá comigo todos os dias. E às vezes fazemos sexo. Ou o contrário. E quase nunca, e quase sempre, sinto saudade dos velhos. É certo que tenho que ensinar e mostrar aos galetinhos os caminhos do pescoço aos pés, da boca ao cu, da mão ao peito, do coração à mente. O melhor disso é que nos perdemos lá pelos meios, e inventamos atalhos e digressões, fugimos para um terceiro corpo (quase sempre de um outro galetinho), e abandonamos qualquer razão e qualquer emoção por outras coisas várias e inusitadas que não cabem nem lá nem cá, mas que aqui, aqui sem dúvida, são perfeitamente possíveis.

Bicha, e os velhos. Os velhos daqui, tal qual os daí, se arrastam e se afogam nos seus passados. Mas não são feios! São belíssimos! Arrastar-se e afogar-se, assim como trepar (ou tomar chá), têm outros sentidos aqui. Eu nesse lugar onde estou sou um velho. Também o era quando estava aí. Mas aqui eu sou lindo e, juro sinceramente, prefiro os galetinhos.

(Sem título)

Vez em quando eu aborto. Sai como um vômito de mim qualquer coisa que eu vinha gestando, criando, preservando, cultivando. Nem sempre sai pro bem, nem sempre avisa que vai sair: por isso chamo de ‘meu aborto’. Vez em quando, também, eu soroconverto. Sorologicamente positivo para o HIV, para hepatite, para sífilis, para meningite, para paraplegia e tetraplegia (uma certa cepa de vírus me rouba os movimentos), fico de cama um tempo remoendo minha incapacidade, reproduzindo vírus, eu mesmo virulento e pesado. Vez em quando eu deixo de acreditar, me canso. Ou sou surpreendido por um futuro vindouro que me arranca ‘as rédeas da minha vida’. Que tolice, não é mesmo?, achar que temos o poder de decidir sobre o que somos e sobre o que nos tornaremos, achar que nosso corpo nos pertence e que nossos sentimentos são sinceros. Que tolice, nunca pensaste nisso?, achar que de uma vez por todas seria possível um beijo seguido de um abraço sem que algum preço tivesse de ser pago para que consecutivas noites fossem costuradas com essa linha e com essa agulha. Somos desde sempre um tanto paraplégicos, outro tanto tetraplégicos. Noutro momento já me conformo com o aborto, com minha condição sorológica, com minha tolice. E conformar-se não seria também um jeito de ir resistindo sem ser percebido?

Cartas a uma jovem bicha - o diagnóstico do presente

“[...]asar e morar junto, entendes? Isso pra mim não é sequer da ordem do ‘susto’ ou da ‘repulsa’, é simplesmente da ordem do inaceitável. Perde-se espaço e tempo para ficar só – e ficar só, hoje em dia, é um exercício cada vez mais recomendável. Entendo o princípio da comunhão, da não-separação, da divisão das tarefas e dos afetos, mas meu argumento vai no sentido de dizer que não é necessário morar junto, sob o mesmo teto, para que a cumplicidade, honestidade, paixão, tesão, saudade, admiração e respeito se construam e se consolidem. Ele, por sua vez, argumenta que não é só porque se mora junto, sob o mesmo teto, que a individualidade, que a circunspecção, que a tranquilidade, que a privacidade vão-se embora. Nós dois temos razão, mas não estou disposto a abrir mão do espaço que meu corpo e que meu ego ocupam para ir brigar lá noutra cama, com outro corpo e com outro ego, por um pedaço das cobertas para me aquecer numa noite fria. Acordo sorrindo todo o dia. Até mesmo quando brigamos ou quando nos magoamos, nos entendemos pela madrugada, lá na calada da noite quando o sol já faz a volta para subir de novo, e quando sentamos à mesa para tomar café já estamos em paz com as arestas que um tem sobre o outro. Ficamos em silêncio um bom tempo, mas também tagarelamos muito sobre coisas que vagueiam entre nós. Observo a pele dele, que reveste esse corpo que agora conheço e exploro, e beijo e lambo: ela tem vincos e abismos, corta-se com facilidade e sangra – e faço curativos, com o maior cuidado e preocupação –, ela tem dobras, superfícies irregulares. Vejo fotos de 10, 20 anos atrás, e lá onde agora vejo essas ondas epidérmicas, antes havia um lago de águas lisas. Uma tez lisa e esticada pelo vigor da idade. Mas o que realmente me interessa não é o liso nem o esticado da pele, porque não me interessam águas lisas e rasas. Prefiro, milhões de vezes, as ondulações rugosas da pele dele que agora sinto e que agora vejo: sinto e vejo beleza nos vincos próximos às orelhas e por aqui, debaixo do pescoço. Às vezes me deito por ali, assento minha cabeça nessas rugas e lhe beijo as marolas que se formam aqui no canto externo dos olhos... É tão bonito e tão confortante. Será que ele não percebe, meu deus, que já moro no seu corpo? Eu já estou lá de todo modo, naquela casa e naquele banheiro. Passo a mão nos meus cabelos e sempre vêm alguns fios de cabelo, que julgo belos por serem ondulados – também tenho minhas ondulações. Há dezenas desses meus fios boiando nas águas densas daquela cama. Já não estamos mergulhados, cada qual à sua maneira, no caldo grosso um do outro? Já não estamos construindo, cada qual no espaço-tempo um do outro, uma terceira casa além das duas que já temos onde possamos morar e nos refugiar?[...]”

Por alguns pedaços de carne

Ele chegou em casa, lavou as mãos. Enquanto seu companheiro, que estava bastante incomodado com a recente discussão, trancafiava-se sozinho no seu fantástico mundo secreto de lantejoulas e canutilhos, ele decidiu apurar a janta. Foi direto para a cozinha cortar em lâminas o pedaço de filé que comprara no dia anterior. Precisava de uma faca afiada, muito bem afiada, para deslizar a carne no sentido de suas fibras com um mínimo de esforço para não lacerar aquele caríssimo pedaço de ouro. O sabor do prato dependia de sua habilidade com o fio.
Não suportava suas vontades. Para lidar com elas, somente três atividades lhe aliviavam: lavar, limpar e organizar. Tomou o corte do pedaço de filé como se fosse tudo isso. Como se fosse um jeito de lavar seu sangue, de limpar a gordura de sua própria carne, como se organizasse em pequenas tiras suas próprias ansiedades.
Vontade de apagamento. De apagar o passado, o seu próprio e o do outro, de modo que tudo começasse ontem. Ou anteontem, ou semana passada, mas desde que tivesse o direito de começar sempre, indiscutivelmente sempre, amanhã ou mês que vem se fosse o caso e se fosse de seu desejo. A vontade de apagamento era um dos sentimentos mais perversos que estavam por detrás do nobre objetivo de “começar de novo”. A face mais cruel de todas é que sentia vontade de apagar o passado do outro e o seu próprio do modo com que lhe conviesse, da maneira que melhor se encaixasse nos seus anseios por pureza. Em suma, vontade de apagar, mas de apagar do seu jeito, na sua hora, e apagar as coisas que ele quisesse. E ia separando a gordura do filé, feliz em pô-la toda no lixo e logo depois fechar a tampa. Amarrava o saco plástico com força, cheio de resquícios que seriam jogados fora, escondia o lixo atrás dos armários da cozinha ou embaixo do tanque da área de serviço.
Vontade de transparência. Bate punheta? Por quem? Em quem? Quando e sob que circunstância? Quantas vezes e em que intensidade? Vontade de cortar em fatias finas o desejo e as fantasias do outro, vontade de escutar e ver tudo daquela mente. Vontade de atravessar o corpo do outro e descobrir-lhe o lugar da paixão, do sexo, da saudade, da dúvida. Vontade de luz nas sombras do outro, de velas nos seus breus, vontade de desvelo, vontade de panoptismo. Curiosamente, ele próprio era alguém que não punha fé em nenhuma verdade, em nenhuma certeza; entretanto o que lhe nutria as vísceras em querer saber de tudo que emergisse na consciência do outro era a sensação de controle em intuir e conhecer a essência do outro. O que será isso a que damos nome de “essência” senão a mais cristalina e absoluta verdade sobre qualquer coisa? Cortava as iscas de filé e não achava nenhuma verdade, nem nas superfícies e nem nas entranhas da carne (verdade sobre o novilho morto? Verdade sobre o pasto usado para alimentá-lo? Verdade sobre seu criador?).
“Se eu cortar o corpo do outro, vou saciar minha vontade de transparência? Posso apagar seu passado se eu separar sua jugular de seu pescoço? O sangue é transparente ou, em últimos casos, pode servir de borracha ou corretivo?”
Na dúvida, resolver tentar.

Gotas, goles e garrafas II

Garrafas de surpresas: Surpreendentes enxurradas de 750 ml, novidades engarrafadas, imprevisibilidades com gás e rolhas. Nunca o corpo de um manteve uma ereção por tanto tempo pensando no corpo de um outro; nunca o corpo do outro foi tantas vezes, deslizantemente, auscultado pela língua e pênis de um outro (de um mesmo outro). Nunca a noite de um se estendeu por tão tarde ao ponto de fazer a manhã do outro começar tão mais cedo. Nunca o cabelo de um foi tão comprido e tão ondulado; nunca os olhos do outro foram tão azuis (nunca o olhar de um viu tantos outros ângulos de tantas outras situações [caleidoscópica relação]; nunca o olhar do outro viu o mesmo corpo com tanto desejo reincidente [sugado pelo buraco negro da estabilidade]). Tranquilidade inovadora. É possível – é necessário? – reinventar o desejo, a vontade de estabilidade? Em que medida, quando é imprescindível começar a reconstruir o corpo de um e parar de estranhar o corpo do outro? Haverá dias em que vou escrever palavras de raiva graças à traição do outro?

Gotas, goles e garrafas

É do veneno que se faz o antídoto?

Gotas de felicidade: os pés quentes sobrepostos ao fim das pernas entrelaçadas coextensivas aos corpos abraçados de lado, testa de um na nuca do outro. Manhã fria de outono dentro e fora do quarto. Primavera no interior e na superfície dos corpos. Surpresas de fim de dia – uma flor, um vinho chileno, um beijo cinematográfico. Uma esporrada na cara, é presente? Frases que colonizam o futuro – “quer casar comigo quando tu voltar?” – planos que colonizam o futuro – “eu não vou embora, eu volto, e quando eu voltar a gente pode viajar”. Um relógio anda mais rápido que outro, um é mais urgente que o outro. Um seca a louça que o outro lava, e eventualmente quebra uma taça; risadas soltas de um sobre o jeito desastrado do outro.

Goles de desgosto: que coisa estranha essa vontade de apagamento, vontade de assepsia que um tem do passado do outro. Desejo de fazer o passado deletar, fazer as histórias e as cenas passadas desaparecerem e, ao mesmo tempo, desejo de raspar o verniz do corpo do outro para transformá-lo em superfície lisa e virgem de inscrição somente – e tão somente – do presente que estamos vivendo. Ciúmes, flecha negra, raiva e desrazão. Se um é neurótico e se contamina com as realidades que ele próprio cria para justificar sua obsessão desmedida pela traição, o outro silencia sob a égide da suspeita constante de estar sendo vigiado pela catástrofe que um dia acometeu toda sua vontade de estabilidade. O monstro de um come o rabo do monstro do outro, e se preservam. Se um come o cu do outro, isso também não é vontade de ferir, de rasgar o corpo do outro?

Garrafas
(CONTINUA...)

Cartas a uma jovem bicha - impeachment

“[...]dopio como vodu, e eu fui pego de surpresa. Eu estava mentindo, estava sendo enganado. Tu me acusas, como se acusação fosse, de eu estar completamente apaixonado. Pois estou. Siga em frente no processo de impeachment do meu posto de amargo, de frio, de solene e de seco. No momento mesmo em que apontas o dedo em riste para mim sob essas alegações, eu já estou num outro ponto da espiral. E dessa espiral tu nunca vais fazer parte. Na minha espiral eu beijo, beijo muito, beijo quem eu quero e quem me quer. O “eu” conjuga seu verbo no plural “nós”: eu estou com ele porque queremos. Sinto vontade de tê-lo em mim, para mim e comigo, vontade de antropofagia. Pois não é isso o beijo, isso que tu nunca aproveitaste? Não é isso o beijo, senão um ensaio de devoração? Então de agora em diante me deponha do cargo, casse meu direito de legislar em favor da causa dos solitários e deprimidos porque este posto só pode ser teu [...]”

Um mundo sobre rodas.

Uma arqueologia é isso: é eleger ou de repente ver o que nunca antes pôde ser eleito ou visto, escavar o que lhe sobrepõe, achar outras coisinhas em volta, relacionar essas coisinhas àquilo que foi eleito, verificar as conexões que podem ser estabelecidas entre elas, produzir sentido ao que se vê ou ao que foi escolhido. Não há ponto de origem, marco inicial, monumento de referência; nada sinaliza o local exato onde tudo começa. Já escrevi sobre isso antes, outros já escreveram de uma maneira melhor que essa minha. Não vou me deter explicando isoladamente a teoria na qual eu vivo minha vida – sim, toda vida tem uma teoria, uma filosofia, um pano de fundo conceitual.

Um dia um bom amigo me ensinou que não há sede sem água, nem fome sem pão. Nesse dia eu entendi que nada acontece a sós, mas sempre implicando outra coisa num outro nível, numa outra dimensão. Nada de sobrenatural, de extra humano. O que vivemos e sentimos é desse mundo mesmo, ao qual pertencemos, da nossa história de aqui e agora. Não vou cair na breguice de dizer que eu só sou eu porque há tu, tampouco vou afirmar que agora minha sede está saciada da tua água e tua fome, do meu pão. É possível dizê-lo, mas isso seria não escavar, não explorar, não cortar em lâminas a superfície disso que eu elegi ou disso que eu de repente vi: tu.

Tu: um mundo sobre rodas. Isso já dá um livro de contos, horas navegando no Google, semanas de análise lacaniana, anos de interpretação junguiana, já é o suficiente para meu deleite. Pensar num mundo sobre rodas não é só pensar num mundo em movimento, ou num mundo dinâmico, mutável, leviano. Teu mundo não é leviano. Um mundo sobre rodas também não é um mundo à deriva, sem rumo, nem um mundo que escapa ou que foge. Tu não és um fugitivo. Um mundo sobre rodas não é rápido nem veloz. Portanto, um mundo sobre rodas – o teu mundo sobre rodas, tu – não significa velocidade, leveza, nem covardia.

Meu mundo era cor de rosas. Isso já deu semanas de análise lacaniana, anos de interpretação junguiana. Meu mundo era cor de rosas, mas nunca foi sempre feliz – digamos que os momentos de felicidade estavam salpicados, como gotas, nas pétalas. Também não foi sempre cheiroso, perfumado; meu mundo cor de rosas não foi sempre macio e aveludado. Meu mundo cor de rosas nem sempre foi rosa: foi, em sua maioria, da cor de um amanhecer de inverno. Meu mundo cor de rosas soube aproveitar bem seus espinhos.

Eis que houve o dia, o momento, em que o chuveiro e o vapor, em que as toalhas e o suor serviram de pretexto para pôr lado a lado, totalmente nus, teu mundo sobre rodas e meu mundo cor de rosas. Não tomemos este como sendo nosso monumento: não levamos nossos corpos até lá calculadamente, mas sim fomos levados e arrastados para lá por forças sobre as quais em geral não pensamos. Havia um desejo lá no teu mundo e também um desejo aqui no meu; havia um pouquito de tristeza lá nas tuas rodas e um tanto de solidão nas minhas rosas; havia histórias de outros tempos que nos conduziram até lá (no teu mundo, histórias de lentidão, de pesar e de coragem, histórias de monotonia, de mentiras) [no meu mundo, histórias de morte e luto, de cegueira monocromática, histórias de asperezas e friezas, de fedores]. Não acho que foram nossos olhos, por primeiro, que se tocaram. Foram os joelhos: nos ajoelhamos. Se não há ponto de origem para nós dois (poderíamos ser nós três; na verdade éramos nós cinco lá no chuveiro e no vapor, e desses cinco subtraíram-se dois [nós dois], e desses dois multiplicaram-se tudo o que fizemos até agora), se não há esse ponto inicial, há pelo menos um ponto de engate, de enlace, de intersecção: os joelhos. “Como vocês se conheceram?”, nos perguntam. Respondamos: “Foi pelos joelhos”. E dos joelhos achamos outras coisinhas em volta, outras coisinhas no seu entorno, coisinhas que se avizinham dos joelhos, e fomos escavando essas relações todas entre nossos joelhos, achando rosas sobre rodas e rodas rosáceas, e quadrados, ângulos, verdes e laranjas e morangos, risadas, dias, entardeceres e noites. Coisinhas em volta, conexões entre nossos joelhos. Estamos construindo algo, é bem verdade, montando um rosto para este terceiro mundo, uma face a que se reconhecer e da qual se alegrar. Mas também estamos escavando um ao outro, como se ao fazer nossa arqueologia também estivéssemos fazendo o que queremos do nosso presente.