"Além das quatro civilizações de vermes florescendo no intestino..." (HERINGER, 2016, p. 142)

a primeira civilização foi marcada pelo tribalismo, forma de vida baseada na transmissão de valores por meio da cultura oral. a primeira civilização era composta de algumas comunidades, membros que se reuniam em pequenos grupos, que compartilhavam não da mesma fala mas das mesmas crenças sobre a origem de sua existência, sobre vida após a morte e, sobretudo, sobre a natureza mágica que fornecia alimentos para todos. houve um deles que, entrevendo o comum entre o diverso das diferentes tribos, e expressando-se maleporcamente nas variadas línguas faladas dessas pequenas comunidades, uniu-as todas e pela primeira vez sob o signo de um conjunto de valores transcendentais (embora poliglotas): foi Ascaris Lumbricoides, da tribo dos nematódeos. entrou pra história como Áscaro, o Conciliador, por ter entretecido politicamente os fios da unificação que resultaram na primeira civilização. reinou por longas décadas, na qual a coexistência das diferentes culturais orais das tribos unificadas foi defendida por meio do exercício da mais fina diplomacia. o período de reinado de Áscaro é hoje conhecido como a pax lumbricaa.

a segunda civilização, diferente da primeira, foi marcada pela escravização das comunidades tribais unidas por Áscaro e pelo totalitarismo no governo dos seres. a crença de que uma raça, e somente uma, era a melhor para governar o mundo baseou-se na fé de que uma energia literalmente superior havia escolhido os cestóda como os merecedores para reinar. os cestóda eram monoteístas, ao passo que os nematódeos eram politeístas. um orador carismático e populista passou a empregar as antigas crenças ancestrais dos nematódeos para pregar palavras sobre um futuro glorioso, de uma civilização guerreira e temível, da qual seria o líder. trata-se de Taenia Saginata, ou Tênio, o Terrível (ou Tênio, o Rude). em sua ânsia por governar, Tênio dizimou as muitas tribos nematódeas que resistiram à sua pregação fanática. tinha porte pesado e tinha maneiras grosseiras, de um genuíno soldado. articulou uma brigada e marchou sobre a comunidade de Áscaro, cuja essência humilde e política obrigou-o a tentar dialogar com Tênio. as tentativas foram vãs, e Tênio assassinou Áscaro. dizendo-se emissário de uma força maior, Tênio submeteu as tribos nematódeas a um governo centralizado em seu ser, anexando territórios e escravizando a maior parte do povo. ele, Tênio, e apenas ele, decidia sobre o futuro deste que foi o primeiro império da civilização. constituiu um enorme exército do qual fez seu filho general. embora marcada pela violência, a civilização sob o reinado de Tênio aprofundou as trocas comerciais e a produção agrícola familiar. até onde guardam os registros, Tênio supostamente morreu de causas naturais depois de superar Áscaro  em tempo de duração como soberano. especula-se, entretanto, que tenha sido vítima de eutanásia realizada pelo próprio filho.

a terceira civilização aconteceu sob o reinado de Tênio Segundo, o Grande (ou Tênio, o Solitário para os solidários; ou Tênio, o Virgem para as máslínguas). Nome de batismo: Taenia Solium. não tinha o aspecto forte e rude do pai: era magro, alto, longilíneo, de aparência até frágil. porém, sua inteligência aguçada fazia com que suas astúcias fossem uma verdadeira armadilha para seus opositores. não era um líder, um populista, um carismático como o pai. Tênio Segundo era mais discreto, mais sutil, e infinitamente capaz de disfarçar suas opiniões com o objetivo de assegurar seu lugar de cabeça do império. abominava o exército construído pelo pai e odiava o longo período em que serviu as forças, mas justamente por ter passado a maior parte do tempo da sua vida na caserna podia (e sabia como ninguém) manejar os capitães de modo a transformar as tropas em seus emissários diretos junto ao povo. fez do exército um ministério público. fez do totalitarismo um status adorado. fez-se um imperador respeitado até pelos revolucionários insurgentes nematódeos. transformou alguns quartéis em bibliotecas. de meros comerciantes locais e produtores agrários familiares, Tênio, o Solitário extinguiu impostos e estimulou as trocas de riquezas entre as várias comunidades do império. e, pela primeira vez, mandou emissários para terras-além-mar, encarregados de enviar notícias a outras civilizações da existência de sua própria. entretanto, sua política de gestão interna passou a dar sinais de defasagem nos últimos anos de sua vida. apesar de combater o espírito de medo implantado pelo seu pai e de converter soldados em agentes públicos de cidadania, Tênio Segundo ainda encontrava problemas em lidar com a participação popular no seu reinado, bem como resistia a entender e deixar debater sobre regimes de governo diferentes do império. morreu velho e sem filhos nos braços de um antigo companheiro de serviço militar, que acompanhou a vida inteira do soberano atuando como seu secretário particular. esse amigo de longa data suicidou-se após os trabalhos fúnebres de Tênio Segundo e deixou apenas um bilhete: "enfim juntos novamente, agora para sempre".

a quarta e última civilização começou com um período de regência, no qual alguns generais revezaram-se no trono imperial até que se decidissem sobre que rumo a política deveria seguir. alguns defendiam a prospecção de um novo líder nematódeo, ancestral, que resgataria a pax lumbricaa; outros, mais ansiosos, apostavam em um perfil de soberano agressivo e inquisidor, crentes de que a confusão popular produzida pelo estado do governo acéfalo seria sanada com um líder forte e incisivo; outros apostavam na coroação de um dos sábios formados pela educação das bibliotecas, cuja inteligência apaziguaria o império. um dos generais a ocupar o trono durante a regência tentou dar um golpe nos demais. por três dias houve lutas, rebelião, mortes, com greves e incêndios, bloqueio de estradas. o tal general foi morto numa emboscada de radicais nematódeos. sem que a maior parte dos generais percebessem, a tribo dos enteróbios infiltrou-se em todos os escalões do exército, tornando-se maioria entre os agentes públicos de cidadania. por um longo período durante o reinado de Tênio Segundo, a tribo dos enteróbios planejou e executou o plano de imiscuir-se em todas as esferas do governo, começando pelas tropas e subindo para os altos postos, ocupando sobretudo cargos burocráticos que os cestódas não achavam digno ocupar. por décadas os enteróbios espalharam-se em todo o império, multiplicando-se discretamente e tornando-se indispensáveis para o funcionamento da gestão imperial. tal plano foi concebido pelo singelo Oxiurus Vermicularis - ou Oxioro, o Conquistador. pequeno a ponto de ser quase invisível se comparado aos solenes Tênio, o Terrível, e Tênio, o Grande, ele conseguiu orquestrar uma invasão tão silenciosa quanto eficaz em toda a máquina de gestão imperial. tornou os velhos equipamentos governamentais mais ágeis, eliminando boa parte da burocracia que sua tribo conhecia tão bem. arrojou as bibliotecas, ampliando-as. agilizou as trocas comerciais suspendendo impostos (mas aumentando juros dos empréstimos), implementou políticas de formação especializada para os agricultores. e treinou os exércitos para, em vez de matar, vasculhar e colonizar novas terras (algo que os emissários diplomáticos de Tênio Segundo não tinham e, ao que parece, nunca conseguiram, posto que jamais voltaram de suas missões em terras estrangeiras). o próprio Oxioro liderou uma missão de vasculhamento e colonização de terras além-do-império. poucos relatos temos hoje dos resultados de tal empresa. pois a civilização do império de Oxioro, o Conquistador, foi dizimada por meteoros que caíram do céu em bolas de fogo durante cinco dias ininterruptos. não há hoje documentos que provem que Oxioro tenha conseguido fixar-se em terras estrangeiras. sabe-se apenas que os remanescentes históricos dessas quatro civilizações memoráveis não são mais do que ruínas em desertos desolados, inabitáveis.