eu sabendo que em cada dobra do corpo haveria um resquício a ser lido, decifrado, interpretado e passado às gerações vindouras com pouca ou nenhuma deturpação em sua mensagem, em sua informação, no gérmen de vida que estaria inscrito em cada pequeno sulco das rugas das palmas das mãos, cada um deles e todos eles juntos, as linhas das mãos que eram mapas de como chegar, de como seguir em frente, em cada dobra do corpo haveria um pequeno tesouro em hieróglifo ainda se pretendendo arqueológico, lendas de uma vida cancelada em sua mais nobre tarefa, conjunto de uma biofantásticagrafia que deveria ser dada àqueles que viessem depois de mim não como mera ficção neurótica mas como mito coletivo que abraça e atravessa o mais belo gesto de toda a população de quem sou pai, um corpo envolto em uma pele e uma pele encapsulada em um destino, em um dever, em um comando, um corpo que haveria de ser procurado, escavado e posto nu ao olhar dos descendentes em todo seu brilho escravo e fosco, e mãos com linhas cartográficas que se imporiam sobre o futuro de toda a prole.
iludir: forçar crença na máscara; seduzir pelo brilho do verniz; raptar a dúvida; desintegrar os rastros que apontam para o erro e para o equívoco. escolher: errar nos termos do acerto; acertar nos termos do erro; engolir as sobras do "não" sem explodir; arrastar os restos do "sim" ao longo dos dias. saudade: escombro ou ruína do outro em mim; pedaço quebrado de vidro atravessando o peito; ato de chicotear a memória; nuvem densa e carregada carinho que chove quando choramos.
"o cheiro do fracasso impregna tão pesadamente que agora até minha pele está exalando este fedor", disse um personagem de desenho animado às 22 horas e 15 minutos de um dia de semana, num desses canais de tevê paga cuja programação é voltada para as crianças. é esta uma das corredeiras através das quais desagua o conteúdo do buraco, da fenda, do vacúolo? ou teria sido mais importante, e profilático, ter estancado o próprio cavocar que forjou o buraco que viria a ser preenchido até a borda com o fedor? durante as conversas mais profundas, mais terríveis, eu desvio o olhar do meu interlocutor e pouso a vista em algo que escapa da mirada do outro, por um instante, para formular uma ideia que não seja capturada em seu processo de feitura, para evitar o vacilo e desinteresse do olhar do meu interlocutor - que me perturba e me empurra para fora do vagão em trânsito -, e em seguida eu volto a seus olhos para dizer nada do que eu havia formulado. foi assim muitas vezes hoje. a felicidade dele um pouco enviesada, díspar em relação à cor bronzeada da pele, irredutível aos movimentos dos braços e ao emprego dos adjetivos de intensidade, me fez contornar a imensidão corporal e o continente de sentimentos para rapidamente encontrar-me atrás dele, na parte além da sua falésia, na parte de fora da  pele das suas costas, eu em frangalhos, eu em destroços, "eu me despeço; eu em pedaços". alguma força estranha varreu meus cacos na sarjeta, juntou-me na pá e me trouxe para casa num punhado. que cheiro tem o fracasso que já dura três décadas? na mesma medida em que eu desviava do olhar do meu interlocutor meu corpo se encurvava, como haste elástica torcida, com as pontas moles (mãos, pés e cabeça) que pareciam derreter-se como gelatina pouco máscula, pouco viril, pouco tesa. o fim do dia é isto: assistir ao desenho animado num dia de semana, num desses canais de tevê paga cuja programação é voltada para as crianças.
desafogar: arrancar de um estado de queda; catapultar para fora [seja o dentro qualquer um dos limites possíveis]; fluir sem resistir; reverter o processo de sufocamento por falta de ter o que viver. desacreditar: drenar o sentido, esvaziá-lo, "desafogar" o sentido; deslocar a fé de uma potência a outra; estancar o som oco da batida em uma porta onde já não mora mais ninguém. abandonar: separar; colocar para além [não necessariamente fora]; despedir-se; caminhar no sentido oposto, inverso ou avesso; fazer viver em separado, fazer viver de longe, viver depois da bifurcação ou da esquina. titubear: tremor; dar um passo a frente e outro atrás; duvidar que haverá um fim e recusar-se a por um fim; driblar a despedida ou fingir que se está indo embora, esperar atrás da porta; tocar com a mão quando não há mais esperança. luto: processo pelo qual a falta escorre e provoca erosões em tudo o que restou; estado de recolhimento nos restos; situação de lamento pela despedida do que havia de quente ou morno ao vê-lo; condição de construção de vida a partir dos escombros; o corpo que se deita na cama vazia novamente, sem nunca ter tido outro corpo ao seu lado [entendimento de que nunca existiu alguém ali, nem fora, nem dentro].
o que é mesmo aquela tristeza, o silêncio em que ela vem envelopada, a desistência de ter de recomeçar (ou o horror de ter de recomeçar), a retirada sem anúncios e sem trombetas, o recolhimento no escuro, a imobilidade entre os lençóis, a sensação de que a aposta gorou, a impressão de que a empreitada falhou, o olhar que olha sem ver atravessando as paredes, o soluço seco sem lágrimas, a frieza de uma presença distante, o conforto do vazio depois da guerra de si, em si, na qual não houve quem ganhasse?
desejo-me. neste conjunto da histórias de abandono e cômodos conjugados, separados pela parede, desejo-me, desejo aquele centro carnudo de mim, uma parte suculenta e enervada, saltitante, que jorra quando é mordida. desejo o centro, o meio, a parte entre o início e o final, a coisa espremida que dá nome à história: abandono. "qual é o nome da minha alma?" o meio do vácuo é o mais denso do vácuo, do silêncio e da indiferença àquilo que poderia existir. parado na porta da frente, me pergunto se posso entrar: se posso pisar no meio, no dentro, dentro da entrada e da saída, dentro da frente e do atrás. desejo-me nesta fase, neste grau e neste andar, neste espaço comprimido e celebrado que é o conteúdo. o conteúdo é meu amigo. a forma me trai.