[...]stico frouxo da cueca, desbeiçada. a circunferência que não parava de arredondar, de absorver as coisas do mundo, todas as coisas do mundo, como se fossem feitas ou dirigidas a ele. um imã em vida atraindo para os cantos das unhas cortadas rente à carne o peso e o quilate dos olhares seguidos de silêncio. o profundo desprezo de quem o conheceu, grudado nos fios que separam unha de carne. dois cortes nos dedos, no indicador esquerdo e no mindinho direito, cujas cicatrizes, embora discretas e já bem fechadas, apenas dissimulavam o abismo de dentro que caía fundo, como falésia, na neve e na língua inglesa que ele deixou pra trás. mas não as esqueceu. ainda borbulhavam às vezes, vertendo pelas mãos: a doçura politicamente correta dos canadenses. que saudade. sonhava em voltar. e poderia? teria idade? seria um bom candidato à migração? contribuiria para o país tanto quanto ou o máximo que pudesse, agudo ou crônico, simbolicamente retribuindo ao país e à cultura aquilo que lhe proporcionaram? que nenhuma cicatriz seja capaz de apaziguar isso, de acalmar esse desejo. triste. sozinho em casa, de cueca. sonhando com o que fervia nas fendas das cicatrizes, arrastando os quilates de desprezo entre as unhas. respeitoso do tempo e dos corpos dos outros, ele era. mas não dos seus. nunca quis ser deste mundo. nunca quis estar aqui num corpo. mas estava, e se perguntava se haveria outro ou outros mundos nos quais poderia ou deveria estar. e se perguntava se já não estaria, naquele preciso momento, existindo de outra forma em outro mundo. não num mundo novo, não numa nova vida: apenas em outras condições, em outras linguagens e comunicações, em outras coisas que não o orgânico, o carbônico, o fisiológico. se, num outro mundo, não houvesse palavras, ele ainda estaria triste? ainda usaria cueca desbeiçada? ainda cortaria rente à carne as unh[...]

o fracasso segundo z

eu não precisaria contar o que houve hoje, tampouco os planos que tenho feito para mim visando um futuro próximo. não foi deus, nem o neutro das coisas, que eu vi e que eu experimentei. não tenho nenhum relato filosófico-espiritual para fazer a partir dessa parte pequena do meu dia; tenho apenas uma série de conexões mais ou menos conscientes de uma psique organizada em torno daquilo que experts chamariam de neurose depressivo-obsessiva - três palavras que em sequência e separadas dizem pouco. o importante não é contar o que significou fazer o que fiz, nem o sentido que pode haver num ato cuja única testemunha está morta – única testemunha além de mim mesmo, mas embora eu já tenha testemunhado contra mim, não tenciono fazê-lo neste caso. não se trata, portanto, de hermenêutica. trata-se das conexões possíveis de serem feitas, e que foram realmente feitas, no curto tempo que levou ao acontecido, ao próprio acontecido, e aos desdobramentos do acontecido, que já se enfraquecem agora, impotentes. porque, afinal de contas, o mais importante não são os neurônios, mas as sinapses. o mais importante não são as leis, mas as jurisprudências.

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era metade da tarde, um dia quente e úmido de verão. mesmo depois das tempestades de manhã cedo, a temperatura não havia cedido. cada pelo do meu corpo grudava em cada centímetro quadrado de pele, e o suor exalava um cheiro de homem indisfarçável. eu estava de passagem da sala para o banheiro. vi no chão do canto do quarto, oposto da janela e bem ao lado da cama, um pequeno monte de roupas para lavar. não havia cesta de roupas, nem saco de roupas: era um canto onde eu as jogava. num relance estremeci. roupas claras e escuras se misturavam, contrastando com a parede texturizada branca que encontrava o guarda-roupa, formando o canto das roupas sujas. a confusão era efeito de dias de muito álcool, de quando eu chegava em casa bastante alterado, mas não tanto a ponto de prescindir do banho antes de deitar na cama para dormir. eu já havia caído dentro do box do banheiro devido a essa excentricidade (que alguns experts chamam de neurose); eu já havia feito feridas nos dedos de vezes em que eu escolhia limpar o box do banheiro precisamente nas noites em que eu chegava da rua bêbado, me jogando numa escovação frenética com desinfetantes e água sanitária (alguns experts chamariam isso de transtorno obsessivo). estremeci porque o monte confuso e colorido de roupas sujas assinalava as noites mal dormidas, as manhãs de dor de cabeça, a indisposição gástrica, a gastança desnecessária. assinalava também a sujeira que precisava ser limpa. a energia necessária para escovar, desinfetar, polir, enxugar. a energia necessária, a energia: era preciso ter energia. o sol não entrava no quarto, somente a luminosidade do dia. veja: a coisa em si não entrava nunca no quarto, somente seu efeito. não havia movimento na luminosidade, somente na própria luz solar. a luminosidade era uma coisa estática, que ou estava ou não estava. era um quarto no qual não havia movimento. mesmo assim eu dei quatro passos dentro do quarto e parei meus pés quase no monte de roupas sujas. olhei novamente: camadas de tecidos revoltos, tecidos sintéticos, algodão, elastano, jeans. todas as cores misturadas. não poderiam ser lavadas juntas. era preciso ordenar critérios para separar as peças e colocá-las na máquina de lavar respectivamente, obedecendo às condições e aos requisitos da boa lavagem. havia pelo menos dois modos de separar as roupas: pela cor ou pelo tecido. pelo tecido, haveria empate entre tecidos sintéticos e tecidos naturais, mas as cores se misturariam. pela cor, as peças claras eram em maior número. decidi estabelecer o critério das cores como definidor - mas por que mesmo? onde mais eu estabelecia o critério da cor como definidor? ora, em praticamente tudo. a única dimensão da vida em que eu era daltônico era no amor. meu amor, o conjunto de coisas que chamo de amor: a sobreposição dos corpos, o banho acompanhado, o zelo pelo sono do outro, a espera ansiosa pelo tom de voz do outro, a compreensão e respeito pela opinião divergente, os filmes e as músicas que nos costuram e que nos juntam, a beleza dos pequenos atos de falta de higiene (soltar puns à noite, pegar pedaço de pão caído no chão e comê-lo, não limpar direito a bunda, usar all star sem meias, repetir por dois dias a mesma cueca e, no terceiro, virá-la do avesso). amor cinza: se estivesse no monte de roupas sujas, estaria em menor número e seria lavado. meu amor cinza, feito de tons de cor e de não cor, num monte de roupas sujas.

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agachei-me. e a minha coluna lombar doeu. porque tenho um problema crônico na coluna lombar, nas quatro primeiras vértebras da coluna lombar. compressão da medula. era preciso fortalecer os músculos através da prática de atividades selecionadas e orientadas. oficialmente eu estava proibido de correr, mas estava obrigado a me exercitar. esse tipo de paradoxo é comum nos dias de hoje: nos impedem de algo ao mesmo tempo que impõem esse algo como um dever. e ali, agachado em frente a um monte de roupas sujas claras e escuras, de vários tecidos, eu fui separando camisetas de bermudas, cuecas de camisas, meias de calças, amor de esperança, corpo da vida. o corpo apartado da vida, excluído da celebração da vida, habitando um quarto luminoso porém sem sol. eu era todo separado da coisa viva em si mesma. habitava espaços que corroboravam para essa separação e a reforçavam. se houvesse um rastro de vida no meu corpo, esse rastro estava comprimido nas minhas vértebras e doía. para que mesmo, para que a coisa orgânica do corpo? era o corpo que precisava de roupa, ou eram as roupas que precisavam de corpos? pois se fossem as roupas que precisavam de corpos, estávamos num estado zumbi assustador. éramos usados pelas coisas, que não tinham identidade alguma porque foram criadas outrora por nós - os prescindíveis. peguei uma calça e uma camiseta, nelas as etiquetas reluziam na luminosidade parada do quarto: a notícia boa foi que eu era um zumbi. os objetos do mundo tinham ganhado autonomia e nos usavam: as roupas, os guarda-roupas, as máquinas de lavar roupas. isso explicaria em parte o porquê de muitos de nós desejarem ser objetos, portarem-se como objetos, consumirem uns aos outros como objetos, como coisas autônomas, inanimadas e sem identidade que usam as pessoas. eu era todo usado pelas etiquetas. eu era consumido como coisa pelas outras pessoas. isso também explicaria em parte o consumo excessivo de álcool que eu fazia (no limite, era o álcool que me consumia): era como uma religião, um ato ritual através do qual eu procurava me religar com o rastro comprimido de vida recolhido entre minhas vértebras, era uma forma de eu perder a autonomia de objeto com etiqueta no mercado da carne. o consumo excessivo de álcool era uma forma de eu desprender da carne, ir embora da carne, esquecer da carne, e tentar ascender de modo sôfrego e doloroso, sacrificial, a um estado não humano, não objeto, não carne, despido em todos os aspectos, sem a etiqueta da linguagem e sem a etiqueta da cultura, sem a etiqueta da psique e da consciência. roupas e máquinas de lavar roupa precisam de etiquetas para ser. o humano precisa de critérios para separar-se. é por isso que ser humano é, necessariamente, não ser. a notícia boa foi que eu era humano - ou, dito de outra forma, eu era um zumbi usado pelos objetos e pelos humanos-objeto. razão que explica em parte o fato de eu nunca ter amado; na melhor das hipóteses, eu poderia ter sido eventualmente objeto de paixão.

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com dor na coluna, separei as roupas de acordo com o critério da cor. um pequeno monte de três ou quatro peças escuras, um monte de seis ou sete peças claras. o monte de roupas escuras à minha esquerda, o monte de roupas claras à minha direita. fiquei feliz com a organização, que deveria ser respeitada por mim até o momento de lavar as roupas - o que poderia demorar alguns dias. só mesmo uma pessoa infeliz ou bastante lúcida da sua condição humana para criar uma regra arbitrária e regozijar por obrigar-se a cumpri-la. não era este, enfim, o princípio basilar da civilização: aceitar os impedimentos oriundos da Lei? pois que seja, e que a Lei que me impede de algo seja feita por mim mesmo! e uma aranha saiu por entre as peças de roupa escuras. era grande, marrom. deslocou-se para a parede texturizada branca e foi subindo. quem era ela? de onde vinha? o que comia? como se comportava? a quem obedecia? o ser inumano, sem etiquetas, que morava no monte das minhas roupas sujas. o ser inumano que coabitava o meu quarto, em minha companhia. finas patas marrons que subiam a parede branca. uma vida não humana que valia nada. coisa não morta, cidadã da pequena república que eu recém criara: aquela composta pelas roupas claras e pelas roupas escuras. testemunha da minha dor, do meu amor cinza. no chão, perto dos montes de roupas sujas, estava o livro "a legião estrangeira", de Clarice Lispector, cujo conto "o ovo e a galinha" eu havia lido na noite anterior. era a única ferramenta de assassinato possível naquele momento. tomei o livro e, num tapa brusco, esmaguei a aranha na parede branca com a contracapa. ironicamente, a gosma da aranha espalhou-se sobre a foto do rosto de Clarice.

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"é agora que eu devo lamber a contracapa do livro e engolir o que veio de dentro da aranha? é agora que eu preciso experimentar o leve salgado da coisa neutra da vida?" não. pois eu era humano, um humano sem amor. levei a contracapa do livro ao banheiro. limpei com papel higiênico. em outras ocasiões, ali também haveria uma coisa neutra, meio adocicada, de vida - da minha vida. para onde ia a minha vida, saída em gosma de mim? para onde ia minha vida em gosma, comprimida entre minhas vértebras? porque minha escolha foi de não acessar o divino por meio da gosma neutra da aranha. não há neutralidade na gosma, nem no sêmen, nem no sangue. algumas patas da aranha permaneceram grudadas à parede texturizada branca, e lá eu as vou deixar como etiqueta da parede. os restos da aranha ficarão na parede enquanto for necessário me lembrar de que não há muito mais que dois ou três montes de roupas sujas toda a semana, duas ou três vértebras com medula comprimida, cinco ou seis máquinas de lavar que lavam as etiquetas. as patas separadas do corpo da aranha ficarão grudadas na parede enquanto for necessário eu me manter circunscrito àquilo que no mais mundano ainda continuar sendo humano.