Perguntas tolas

Ao me responder a pergunta, tive a sensação de que ela já sabia que eu perguntaria exatamente aquilo, exatamente dele. E se ela fosse tão médium quanto dizia que era, de fato ela saberia. Pois então, com toda força de sua mediunidade – que tinha um preço, nenhum pouco barato – ela me disse que meus caminhos não comportariam alguém que precisasse de amarras para viver em segurança. E estava dito.
E me disse outras coisas mais: que eu viajaria, e viajaria muito. Tanto, mas tanto, que de uma dessas viagens eu não retornaria. Estaria ela falando da morte? Não. Ela disse que aqui eu não fico, que aqui não é meu lugar, que na verdade eu não tenho lugar algum, que meu destino é ficar errando – e, ao errar, ir acertando as dívidas com meu kharma – pelo mundo, nomadismo, vida cigana, sem raízes, rizoma puro. Quem diria: uma cartomante deleuzeana! Disse também que viajaria pra longe, pra além mar, e que lá está o dinheiro que vou ganhar – e muito – e que lá está minha carreira sólida – no mínimo, de muito sucesso – e que lá está o homem com quem vou passar mais da metade da minha vida. O amor está do outro lado do mar. Do outro lado do mar e no avançado futuro. Do outro lado do mar, no avançado futuro, em um país bastante frio. Em pensamento, de modo bastante elegante, agradeci aos deuses por me reservarem um marido loiro, de ascendência viking, com um pinto bem rosa. (O que não quer dizer, é claro, que eu não vá encontrando – ou errando, errante que sou – alguns pingos de felicidade em ébanos rígidos afrodescendentes que tanto admiro).
Marquei teu nome e o que veio foi aquilo que já sabíamos: não. Entre uma doença ali e uma inveja aqui, ela disse que tu és do bem, que me quer bem e que está do meu lado sempre que eu preciso, mas que é só. É só e é raso. E tem fim. Pois quando eu puser o pé no avião, e eu vou por, teu caminho vai seguir um rumo que irremediavelmente te levará para um ninho que não tem lugar pra mim. Isso porque, em primeiro lugar, eu nunca tive um ninho – sou errante, nômade, lembras? – e em segundo lugar, a praça onde farei meu acampamento cigano fica longe daqui, além mar. E ela me disse que tu jamais vais conhecer o além mar. Então tá: ponho os pés no avião, e tu assenta tuas raízes. Eu sou do ar, e tu da terra. Disso nós dois já sabíamos; então pra que perguntar novamente – tolamente – sobre algo que já tínhamos uma resposta?

Cartas a uma jovem bicha - galetinhos

Terra do Nunca, 30 de fevereiro de 2012

Querida bicha;
Te escrevo deste terra linda, que um dia tens que conhecer! Ou não vais poder... Porque ainda esse ano o mundo acabada. Não vais conseguir chegar nem na esquina para vislumbrar o que se vive aqui, e como se vive aqui.

É uma pena. Mas te adianto: fazer sexo é como tomar chá: tomas com quem quiseres, a hora que quiseres, onde quiseres: todo mundo acha bonito e elegante: tem quem faça olhando pra rua, na janela, de cortinas abertas: há quem faça no parque, pela manhã e à tarde, em cima apenas de uma toalha xadrez: há utensílios especiais pra isso: todo mundo liga no dia seguinte perguntando se vai ter mais (pasme!).

Bicha, não crês. Mas sinto cá comigo um pendor leve para os galetinhos. Para os jovens, os efebos, os de penugem rala sobre os lábios, os de pernas roliças pela tenra idade. Aquelas panturrilhas de pelagem de primeira estação enfiadas em tênis e meias de futebol saídas de bermudões soltos... Me pergunto que interesse é esse o que eu tenho nesses corpos jovens e nessas mentes frescas. E te digo que é porque os jovens carecem de algo que excede nos velhos: o passado. É atordoante, beirando a demência, conviver com o passado de longa data de quem quer que seja. Eu tenho um passado, bastante denso é verdade, mas a leveza dos galetinhos chega até aí. Eles não se importam, ou pelo menos ainda não entendem, o peso que têm as lembranças.

Bicha, te lamente. Porque os galetinhos aqui tomam chá comigo todos os dias. E às vezes fazemos sexo. Ou o contrário. E quase nunca, e quase sempre, sinto saudade dos velhos. É certo que tenho que ensinar e mostrar aos galetinhos os caminhos do pescoço aos pés, da boca ao cu, da mão ao peito, do coração à mente. O melhor disso é que nos perdemos lá pelos meios, e inventamos atalhos e digressões, fugimos para um terceiro corpo (quase sempre de um outro galetinho), e abandonamos qualquer razão e qualquer emoção por outras coisas várias e inusitadas que não cabem nem lá nem cá, mas que aqui, aqui sem dúvida, são perfeitamente possíveis.

Bicha, e os velhos. Os velhos daqui, tal qual os daí, se arrastam e se afogam nos seus passados. Mas não são feios! São belíssimos! Arrastar-se e afogar-se, assim como trepar (ou tomar chá), têm outros sentidos aqui. Eu nesse lugar onde estou sou um velho. Também o era quando estava aí. Mas aqui eu sou lindo e, juro sinceramente, prefiro os galetinhos.

(Sem título)

Vez em quando eu aborto. Sai como um vômito de mim qualquer coisa que eu vinha gestando, criando, preservando, cultivando. Nem sempre sai pro bem, nem sempre avisa que vai sair: por isso chamo de ‘meu aborto’. Vez em quando, também, eu soroconverto. Sorologicamente positivo para o HIV, para hepatite, para sífilis, para meningite, para paraplegia e tetraplegia (uma certa cepa de vírus me rouba os movimentos), fico de cama um tempo remoendo minha incapacidade, reproduzindo vírus, eu mesmo virulento e pesado. Vez em quando eu deixo de acreditar, me canso. Ou sou surpreendido por um futuro vindouro que me arranca ‘as rédeas da minha vida’. Que tolice, não é mesmo?, achar que temos o poder de decidir sobre o que somos e sobre o que nos tornaremos, achar que nosso corpo nos pertence e que nossos sentimentos são sinceros. Que tolice, nunca pensaste nisso?, achar que de uma vez por todas seria possível um beijo seguido de um abraço sem que algum preço tivesse de ser pago para que consecutivas noites fossem costuradas com essa linha e com essa agulha. Somos desde sempre um tanto paraplégicos, outro tanto tetraplégicos. Noutro momento já me conformo com o aborto, com minha condição sorológica, com minha tolice. E conformar-se não seria também um jeito de ir resistindo sem ser percebido?

Cartas a uma jovem bicha - o diagnóstico do presente

“[...]asar e morar junto, entendes? Isso pra mim não é sequer da ordem do ‘susto’ ou da ‘repulsa’, é simplesmente da ordem do inaceitável. Perde-se espaço e tempo para ficar só – e ficar só, hoje em dia, é um exercício cada vez mais recomendável. Entendo o princípio da comunhão, da não-separação, da divisão das tarefas e dos afetos, mas meu argumento vai no sentido de dizer que não é necessário morar junto, sob o mesmo teto, para que a cumplicidade, honestidade, paixão, tesão, saudade, admiração e respeito se construam e se consolidem. Ele, por sua vez, argumenta que não é só porque se mora junto, sob o mesmo teto, que a individualidade, que a circunspecção, que a tranquilidade, que a privacidade vão-se embora. Nós dois temos razão, mas não estou disposto a abrir mão do espaço que meu corpo e que meu ego ocupam para ir brigar lá noutra cama, com outro corpo e com outro ego, por um pedaço das cobertas para me aquecer numa noite fria. Acordo sorrindo todo o dia. Até mesmo quando brigamos ou quando nos magoamos, nos entendemos pela madrugada, lá na calada da noite quando o sol já faz a volta para subir de novo, e quando sentamos à mesa para tomar café já estamos em paz com as arestas que um tem sobre o outro. Ficamos em silêncio um bom tempo, mas também tagarelamos muito sobre coisas que vagueiam entre nós. Observo a pele dele, que reveste esse corpo que agora conheço e exploro, e beijo e lambo: ela tem vincos e abismos, corta-se com facilidade e sangra – e faço curativos, com o maior cuidado e preocupação –, ela tem dobras, superfícies irregulares. Vejo fotos de 10, 20 anos atrás, e lá onde agora vejo essas ondas epidérmicas, antes havia um lago de águas lisas. Uma tez lisa e esticada pelo vigor da idade. Mas o que realmente me interessa não é o liso nem o esticado da pele, porque não me interessam águas lisas e rasas. Prefiro, milhões de vezes, as ondulações rugosas da pele dele que agora sinto e que agora vejo: sinto e vejo beleza nos vincos próximos às orelhas e por aqui, debaixo do pescoço. Às vezes me deito por ali, assento minha cabeça nessas rugas e lhe beijo as marolas que se formam aqui no canto externo dos olhos... É tão bonito e tão confortante. Será que ele não percebe, meu deus, que já moro no seu corpo? Eu já estou lá de todo modo, naquela casa e naquele banheiro. Passo a mão nos meus cabelos e sempre vêm alguns fios de cabelo, que julgo belos por serem ondulados – também tenho minhas ondulações. Há dezenas desses meus fios boiando nas águas densas daquela cama. Já não estamos mergulhados, cada qual à sua maneira, no caldo grosso um do outro? Já não estamos construindo, cada qual no espaço-tempo um do outro, uma terceira casa além das duas que já temos onde possamos morar e nos refugiar?[...]”