Convalescendo

Oi, pai; oi, mãe

Escrevo rápido hoje, com menos do que eu gostaria de dizer, porque estou me recuperando.

Estou parindo um livro. Às vezes eu gostaria de contar que já o tenho escrito, mas eu apenas digo: tenho um livro dentro de mim. Ou dois. Não importa. E vocês me disseram tantas vezes pra eu ser discreto... e como eu pude? Nunca fui. Duvidem do meu corpo quando ele escorrega, duvidem do meu olhar. Eu só finjo por vocês. Duvidem da minha alegria, da minha beleza. Não sou belo; nem o pai, nem a mãe são.

Estou fugindo. Nem de longe suspeitarias, mas lá me vou. Crês em Deus Pai? Já fui. Essa doença feia que herdei: ficar pedindo desculpas, sentir-se culpado. Estou grávido de um livro, te interessa?

Há tantas frases que eu gostaria de te dizer. Mas siga, vá, não te pares por mim: eu só vou te atrasar, te dizer chega, te censurar. Caminhe adiante.

Não há nada pior que o corpo que caminha adiante.

Degenerescendo

Oi, mãe; oi, pai.
Não posso escrever muito, pelo menos não tudo o que tenho.

Se é verdade que nunca falei, que nunca disse nada com todas as letras em sequência inteligível, também é verdade que nunca escondi, que nunca dissimulei. Essa forma de lidar com o não dito mas visível lhes é estranha. Não os culpo: apenas os chamo à responsabilidade de entender outras maneiras de habitar o mundo que não as suas próprias, que não apenas as suas próprias.

Eu formulei frases ótimas para dizer-lhes, frases cheias de verbos. Eu as esqueci. Eu continuo pensando nelas, construindo argumentos. São textos de teatro. Não lido com improvisações. Decoro as falas. Eu as esqueço. Gaguejo em frente à plateia. Devolvo-lhes o dinheiro.

Por que razão eu deveria me arrepender da conduta que venho adotando até então? Muitas respostas: desde os rasgos da boca e do pulmão ao sêmen não derramado. Desde os silêncios, silêncios de reticência que sempre se encarnavam em olhos cabisbaixos que olhavam para o chão, até as sungas não usadas e as camisetas não tiradas, o corpo não descoberto, até as viagens abortadas e as rotas de fuga, os atalhos, as noites trancadas nos quartos de hotéis anônimos. Desde passaportes feitos e nunca usados em 10 anos. Desde histórias falsas sobre baleias voadoras e músicas de dormir como “Boi da Cara Preta”, desde amigos imaginários que nunca foram bem-vindos lá em casa. Até namorados que foram muito bem-vindos, até pratos imensos de comida, até as noites sem ar-condicionado no verão, até a primeira taça de vinho aos 15 anos de idade, até os 11 anos de aluguéis pagos, até as roupas que serviram para cobrir o corpo, até os telefonemas. Muitas são as razões: desde o celibato forçado até o celibato voluntário. Desde o assassinato da criança que eu era em nome do adulto prematuro. Desde a vergonha endereçada até a vitória inesperada, ao amor pela chuva e pela cama quente no inverno, ao amor pelo vinho e pelo banho quente no inverno. Até a chuva batendo na janela, que eu escuto sozinho, até a cama quente vazia, até a garrafa de vinho não compartilhada, até o banho anônimo e silencioso, quente, no inverno. Desde o amor por aviões até a reserva medrosa em relação às praias e às areias, às águas em geral. Ainda ouço gente dizer “esse guri é poeta, essa bicha é poetisa”, mas eu sei que vou morrer a sós com meu corpo, sem mediação nem consolo, e já não sinto mais medo disso.

É essa vida toda que eu tenho que mudar agora e é demais para eu fazer em tão pouco tempo. Eu sobrevoarei uma por uma de todas as minhas cisões e contracorrentes. De todas as minhas vergonhas eu vou procurar me esquivar, e são muitas, andarei em ziguezague. Eu vou pra fora, pro lado de fora, rarefeito. Não é longe, é aqui do lado, do lado de lá da minha pele.

O lucro do luto

[...]visitar as sombras e por ali ficar, gastar um tempo com as sombras, deitar nelas. Nunca vi tanto lucro no meu luto: capaz de comprar uma vida inteira, reluzindo de tão nova. Deitar nas sombras e adormecer, e ao adormecer sonhar com aquilo que morreu ou com aquilo que matei. Acordar e regozijar com meu homicídio ou suicídio[...]
[...]as a vida grita mesmo assim. Eu fui até a janela, e nem a superfície da piscina estava calma. Não adianta represá-la, nem fazer barricadas: ela avança. Quando se está à espreita a vida acontece. E nisso há aqueles que se acanham, que se encolhem na sua pequenez de misericórdia, e ficam murmurando suas mágoas, seus restos de opiniões, juntando as migalhas de pão mofado para dar de comer às suas soberbas. Há aqueles que fogem, que se calam, que se misturam ao silêncio, que tentam passar incólumes, que preferem não ser vistos nem ouvidos e que trancam o que há pra sair. Há aqueles que choram e que rosnam, raivosos, aqueles que vociferam e ensaiam uma altivez cretina. Há aqueles que olham pro horizonte, estufam o peito e abrem os braços, caindo de olhos bem abertos no redemoinho que sabem que não podem evitar[...]

Um mês antes do Natal

[...]ada. Não tinha taça, nem vinho, nem roupa de cama, nem água. O beijo, por mais suculento, não tinha nada. E um mês antes do natal ele enfeitou a árvore: que linda árvore com bolas e folhas, e luzes, e galhos. Nada de mais sedutor que as palavras escritas com obscuro do verão do hemisfério sul. O braço, eu me pergunto sobre o braço: ele sente sono? Porque, não: eu não te amo. Mas nada me impede de cair por ti, de afeições e afagos, e nada te impede de aproveitares isso, um sorriso ou uma conversa, ou um abraço, ou uma coisa linda qualquer. Não me seduza com tua inteligência ou com teu frio, com tua frieza, tua terra é fria. Mas me conceda o passaporte, e o visto a tempo, me deixe entrar, me deixe carimbar essa lente louca que me olha e que me julga querendo ou não entrar na tua terra. Se teus olhos já passaram por aqui – de servidor público ou de desempregado, de solteiro ou de casado – tu é quem decide se deve ou não fechar a página ou continuar escutando nossas vozes agudas, de adolescentes, falando sobre essas coisas íntimas e bonitas do qual falamos. Não me responsabilize por tremer ao te ver, ou por comprar um café pra tomar contigo. Não me responsabilize por essa fome, ou solidão, ou vontade de beber toda a garrafa de champagne: eu vou bebê-la, o que não significa que eu não penso em ti, ó gordinho lindo, coisa mais bela da minha semana! Sem que se peneire quadro a quadro, nada haverá de sustentar qualquer toque ou gozo sobre minha pele. Retome isso. Decore. Nada haverá sobre minha pele. Um olhar me vale mais do que essa coisa branca que despejas em mim: um beijo? Uma mentira? Não me surpreende que tu estás nesse casamento. Porque casamento é isso mesmo: aquilo que te faz tirar a primeira gota de sangue do tórax. NADA. Uma praia branca vazia. Habite-se. [...]

Zelo

[...]mpre o mesmo banco, mas nunca os mesmos homens. Porque eu passo correndo por ali, literalmente correndo, e vejo aqueles homens sozinhos, insulares, sentados nos bancos e se articulando através de olhares que te escaneiam. Centopeias oculares, flexo e reflexo. Eu poderia passar por ali dois séculos depois de hoje e eu ainda acharia rastros desses olhares – sem dúvida não acharia os mesmos homens, tampouco o mesmo jogo de flexo e de reflexo, mas eu acharia algo todo novo e inusitado que, de certa forma, seria um quê herdeiro dessa disponibilidade, dessa disposição, dessa inquietude dos homens que se sentam naquele banco. Uma beleza tardia se despencou na minha frente: nunca a supus, e quanto tempo perdi procurando-a e produzindo-a sentado num banco que nunca mudava. Sem medos ou esperanças: o que se faz diante dos meus olhos? Aquilo que se arrisca no olhar, aquilo que fulgura; aquilo que impede Narciso de apaixonar-se à beira do rio. É uma água turva, movente, que bloqueia qualquer marasmo ou estado plácido de calmaria que transforma a superfície da água em espelho – nunca haveria de refletir rosto nenhum. E, quem diria?, uma parte toda lisa de mim te absorve e te reflete, te irradia. Flexo e reflexo. É mentira que as pessoas deixam o céu aberto porque não querem se molhar: é a chuva que chega e que se gruda nos corpos querendo ir embora das nuvens. Nunca percebeste? Então vem, te gruda em mim, corre no meu entorno, que eu te espero com zelo sentado naquele banc[...]

O PÓ SOBRE MIM

Num momento de desatino, eu até poderia ter feito algo do qual meu corpo se orgulharia mais tarde. Mas não fiz. Bebi, bebi muito, e beberia mais. Porque pouco me importa a saúde do meu fígado, ou o estado do meu estômago. Pouco me importa a segurança da minha cidadania quando eu sento nas raízes das árvores querendo sexo na madrugada. Pouco me importa a decência das minhas roupas. Eu apenas me perfumo para despistar minhas misérias. Houve um momento de desatino, de grito, de coisa estridente, de barulho. Um momento me perdendo nos olhos, e nos dedos, e na roupa, e na história. E não haveria algo de mais sublime que perder-se na história de alguém? Me conte toda ela, não seja tímido, me desvende tua vida com tua literatura – com aquelas histórias que tu narras e que tua achas que são verdadeiras, ou que sabes que são ficção: são lindas. Me conta do teu corpo, de como ele envelheceu e criou rugas, de como tu cortas a tua pele, de como nascem teus pelos, de como tu te deitas e de como tu comes. Tudo é algo novo sobre mim, espana meu pó pra longe. Eu já deveria ter limpado essa casa do avesso não sei quantas vezes, seus vidros, suas louças sujas, suas tolhas pra lavar. E eu faço: minha tristeza é não ter mais vidros, mais louças, mais roupas, mais pó. Eu não sei se há mais perguntas a serem feitas, mas também não te convido para entrar, pois há tantos outros que eu convidaria para entrar, há tantos outros com quem eu passaria uma noite, ou uma tarde, que já não sei se tu és tu nisso que eu quero. Não sei se tu é pó ou espanador. Nem mais a bebida eu aceitaria depois disso. Quando eu me viro pra luz eu vejo que meu corpo todo é recoberto por essa penugem ingênua de quem crê em tudo o que é puro e sincero. Acorde: a vida toda é feita de pequenas perversidades. Não me custaria nada rasgar tua cara, te sodomizar em frente a todos. Tua feiúra grita nessas brechas ocas de uma beleza que não tem nada a dizer, de uma beleza reticente, inabitada até por mosquitos. Um beijo meu te salvaria? É disso que tu precisas? Venha cá, te dou de bom grado tudo o que tu precisas para uma viagem migratória, um cruzeiro em alto mar, uma noite em paz. Te dou o que precisas, eu sei que posso. Jamais escreverei palavras de amor, mas os meus murmúrios e meu pó vão ecoar, como ondas, nesse teu labirinto opaco – que truque interessante, apagar tua luz: tudo em ti brilha pros meus olhos. Não tens como te esconder.

Jamais escreverei um romance

[...]alar o menos possível. Porque o que mais tem aí fora são pessoas falando e gritando, criança chorando, esposa querendo afeto de macho e macho querendo desejo de outro macho. Falar o menos possível, o silêncio: quanto exercício. Talvez eu deixe separada em uma das minhas gavetas uma carteira de cigarros, porque quando eu fumo eu penso – necessariamente. Eu sou capaz de ir lá no saguão do prédio pra fumar, não apenas pra isolar a casa do cheiro da nicotina e do alcatrão, mas também para ficar sozinho e separado de toda gente. Pra escrever textos com as cinzas. Pra não ser eu mesmo – e é tão clichê dizer isso depois de Clarice. Fumar um long cigarette com um vestido sereia, perolado, com uma piteira imensa, deitado em uma chaise negra. Cruzar a linha do possível e te arrancar do nada, te arrancar da inércia, te acomodar entre meus braços e te levar nessa onda tumultuosa que eu vivo. Aceitas? Escrever essas coisas depois de Clarice não é nada fácil. Te arrancar do nada e trazer pra essa flora profunda, de raízes radículas, que te engolfam e te calam a boca se eventualmente tu quiser me elogiar. Pra isso não pronuncie palavras: apenas emita sons guturais, emita gemidos, vibrações vocais. Não há nada no mundo que me irrite mais na hora da sedução que palavras. Gema. E revire os olhos. Fale o menos possível quando eu te arrancar da linha do possível. Encoste teu corpo todo no meu, desde os dedos dos pés, as pernas, os quadris, a barriga (eu gosto de barrigas), o peito, os braços, os ombros; encoste as costas e a bunda e a nuca. Vire-se do avesso. Fale o menos possível. Jogue um beijo no ar: ele vai se cravar no meu rosto. Eu não escrevo romances por isso (e por várias outras razões): porque começo escrevendo sobre uma coisa e me grudo em outras, sem seleção, e sigo seus rumos. Não haverá romance pra esse trânsito: primeiro porque um romance não pode ser infinito, porque ele precisa ter um ponto final, uma página de fim, um posfácio, um silêncio. E meus grudes nas coisas que seguem é intenso, é caótico. Não caberia nessa estreiteza física do romance. Segundo porque um romance precisa de um título, e um título é sempre um jeito que a gente acha de resumir, de condensar, de sintetizar a coisa toda. E não se trata disso: o objetivo é multiplicar, cortar, enxertar. Múltiplas experiências a partir dos textos, a partir de uma cena, de uma frase ou de uma palavra – ou de um som, de um gemido, de uma vibração gutural –, multiplicar os caminhos e expandir o texto. Rasgar as linhas. Jamais haverá título, nem subtítulo, para um romance meu. Porque é preciso falar o men[ ...]

Uma chuva bem fina

Eles me diziam que eu estava errado: ninguém chove, ninguém amanhece, ninguém tem crepúsculos. Eu argumentava que nem todos e que nem todas, de fato, poderiam amanhecer [é duro, é difícil, é cruel amanhecer em vida]. Eu argumentava que eu já vira muitos e muitas choverem, peneirando pingos de chuva e tomando-os, espalhando-os pela pele. Mas é possível, é absolutamente possível. Há restos em dois dos seis ralos da minha casa, e nesses dois ralos estão retidos restos, fragmentos orgânicos que represam a água. Ralos, restos retidos, represando. Há três toalhas para serem lavadas, peças de roupas em um monte. Há bolinhas de pó no pé da minha estante da sala que se encostam ali nos cantos, e a estante está quebrada, pendendo para o lado. Esta é uma casa insegura. Esta é uma casa que tem um crepúsculo, eu posso dizer que minha casa tem um crepúsculo. Mas ela tem, igualmente, uma aurora, uma manhã de festa, uma luz que é própria do alvorecer e que perpassa todas as suas paredes, que brilha das janelas para fora, que ilumina o chão: uma luz de dia que nasce – por mais que dias não nasçam, se eu assim escrever, todos e todas entenderão de que luz eu estou falando e acharão lindo (como eles dizem no primeiro dos mil platôs). Então por que razão, será, que eu mesmo não posso chover? Eu posso, é possível: eu chovo uma chuva bem fina, mais leve que o vento, e o vento rouba meus pingos e os faz tremer no ar. Uma chuva bem fina é essa que eu chovo, sem raios nem trovões, sem inundações ou granizos. Quase uma garoa, mas um pouco mais vigorosa que uma garoa, do tipo que molha sorrindo. Eu chovo a chuva que te faz dormir.

Beiradas

[...]or a mais, amor demais. Mentiras, trapaças e traições; é demais. Porque chego na beirada, na linha que precipita o corpo, no trampolim: e eu não me jogo, não me atiro, não pulo. Sigo andando pela beirada, como quem caminha sobre uma mureta ou meio-fio da calçada, colocando um pé depois do outro e mantendo o equilíbrio com a ajuda dos braços estendidos na linha dos ombros. De braços abertos eu me equilibro caminhando na beirada. Jamais caio, pois o jogo termina se eu cair. Se eu cair, serão eles que terão me vencido, serão eles que terão mudado meu percurso. Não caio; não, Caio. Mas não me tirem nada, nem os pelos das orelhas, nem uma lembrança que pesa meu rancor: qualquer subtração do meu amontoado desestabiliza meu caminhar, e aí sim eu caio. Nem a barba, nem a pança, nem os cisos: não me tirem nada. Eu desequilibro com subtrações. Só aceito agregar: um beijo teu, e eu inundo; um beijo teu, e eu surfo na beirada. É difícil de escrever isso; gaguejo ao redigir esse texto. Prefiro fechar toda a casa, ir embora. Vou com a chuva para longe. É horrível escrever esse texto. Falar em ti já não é mais tão f[...]

o riso da diaba cristã

[...], essa culpa sibilante que me persegue, cascavel, que se enrosca em mim e me sufoca, jiboia, que me persegue e me assusta e se levanta sobre mim, naja, que me mal-trata e me pisoteia e que me despreza, sucuri, tu que não liga nem bate na porta, mentiroso, que me prometeu mais uma vez e outra e quiçá mais uma, víbora, que me dá pó de vidro pra cheirar e eu fico viciado, essa culpa rastejante de seis patas, escamada, de língua bifurcada, ofídica, essa culpa pela inalação e pela inação, pela paralisia, essa culpa pelo desprezo, mas nada se encaixa melhor em ti do que o continente que se desprendeu de mim quando eu te tirei da minha vida, essa culpa monumental e venenosa de sentir prazer em ser feliz, essa arrogância linda de quem é feliz e o sabe, de quem é feliz e pode pegar no ar a inveja alheia, essa impáfia linda de quem ri da miséria de espírito daqueles que pensam ter um espírito: o riso da diaba cristã que há dentro de mim [...]

Um grande SIM feito de espinhas inflamadas

[...]belos na minha cama e gotas de líquidos corpóreos. Coisa doida. Consigo contar pelo menos cinco diferentes formas, cores, texturas e gostos para esses pelos e cabelos, para essas gotas e líquidos. Nenhum deles se repetiu. Só eu, mas isso já estava suposto, isso era necessário.

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Não, não, não me censure, não diga que é feio. Eu só preciso me acomodar numa linha de força, num trilho de trem, numa corrente de água do mar e então eu vou seguindo bem confortavelmente até quando eu sou ejetado, pulo fora, renuncio à coroa. Porque eu gosto mesmo é do cetro. Não pense isso de mim: eu mudei. Eu até consigo seduzir. Eu até consigo arrancar as roupas, não de uma nem de duas, mas de três ou mil pessoas quase ao mesmo tempo – porque eu mudei. Nem sobre as nuvens, nem sob o chão. Eu minto, não nego, deixo a verdade pra mais tarde. Mas nada me impede de gozar, e de gozar sozinho ou em grupo, e de me acomodar novamente em mais um trilho de trem e seguir soltando fumaça como uma locomotiva – porque agora sou um criminoso por soltar fumaça.

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Nem no chão, nem no ar: não explodo nem me esvazio. Porque não há mais um pontilhado ou uma membrana que me divide de tudo que está fora (tudo que está fora: eu, tu, eles, os corpos com pelos e cabelos e líquidos, minha cama, as nuvens e o chão, as praias, os medos, os planos, a água. Tudo). Não há mais pontilhado que me divide de tudo isso; logo, não há como dizer que estou vazio ou que estou explodindo. Porque se vazio, é porque nada me afeta, é porque não tenho superfície. É porque não tenho ondas, nem marolas, não posso emergir e não venho à tona. Porque se explodindo, é porque absorvo demais, estendo demasiado a pele, estico o rosto num sorriso muito largo que rasga a boca. Nem dentro, nem fora: entre mim e todo o resto, entre mim e todo o entremeio do resto.

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Não te assustes, nem te apaixones, se o ser pequenino que te habita não me parecer monstruoso. Teu corpo não me estranha. Não é castigo, nem punição. Não é descuido. Não é falta de amor próprio, nem falta de autonomia. Não é opressão, não é burrice. Esse pequenino ser que agora te habita manda beijos, te lambe, desliza pelas tuas artérias, e nada disso te faz um monstro. Agora tu vive com ele, convive com ele, forma um outro corpo com ele. Esse pequenino ser que agora te habita dança axé na tua superfície. Nem a imensidão azul ou verde, nem a distância cinza: um brinde amarelo com gosto de lúpulo pelo pequenino ser que agora te habita. Nem choro, nem vela, nem procissão, nem círio. Nada me faz chorar, nem o Grande Não que recebi daquelas Mãos Judiadas. Foi só quando eu sobrevoei o mar que me dei conta do perigo pelo qual eu passei – uma espécie de pequeno monstro me habitava –, e foi então eu que renunciei a tudo que eu havia colocado uns sobre os outros: a mentira, o desejo, os óculos, os tanques de guerra, o tesão, os gatos, o sêmen, os telefonemas e os pesadelos com a Faixa de Gaza. Somente o sobrevoo me permitiu essa renúncia, e eu, de bom grado, prescindi de tudo e fiquei nu. Então, veja: eu também posso ser um pequenino monstro. E sou. Eu minto. Eu planejo vinganças – e as executo. Eu debocho e eu ironizo o sofrimento alheio. Eu desprezo o amor ao próximo e a reverência aos mortos. Eu rio do erro dos outros – na verdade eu gargalho deles. Quantas e quantas vezes eu mesmo disse: “cuidado com teu olhar, cuidado com o que tu olha e com o jeito que tu olha”. Quantas vezes eu neguei que houvesse praias brancas e desabitadas nessa costa imensa de superfície: uma impossibilidade geral de ocupar o que me era de direito, já que desde sempre me sentei à beira da saída de emergência da minha vida, louco de medo de haver um acidente fatal e, ao mesmo tempo, me sentindo totalmente incapaz de abrir a porta em caso de despressurização. Se tu me pedisse pra eu te salvar, eu daria uma gargalhada e gritaria, enquanto o avião despencava: “ERA TUDO MENTIRAAAAA!!!”. Porque eu minto e eu nego, e eu omito fatos e frases, e eu crio diálogos. Impossibilidade geral de assumir que tenho asas, ou turbinas; impossibilidade geral de aceitar que tenho curiosidade de vida, que tenho uma inteirinha que eu criei só pra mim e que ninguém entende como pode ser possível.

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Eu peço outra e outra e outra e outra. Eu não sei ter limites, eu desconheço a hora de parar. Em um momento de desespero, à beira da saída de emergência, eu me escoraria na porta e, deslizando por ela, chorando, eu pediria desculpas ao meu corpo por essa resistência em tratá-lo bem. Porque, é patético, mas parece que eu o odeio – talvez tanto quanto tu odeias o teu corpo com seu pequenino monstro nas artérias, talvez tanto quanto ele odeia o corpo dele com sua tradição de cinco mil anos. Ódio profundo de toda materialidade orgânica, de todo carbono-hidrogênio-oxigênio: impossibilidade de ocupar essa carne vistosa e falível (corruptível, maculável, matável). Nuvens negras, raios e trovões nunca me assustaram exatamente por este motivo: eu sou um pouco deles também. Maremotos, terremotos, tsunamis, erupções: só peço que não me matem lentamente. Porque, como eu disse, já não há mais pontilhado que me separa deles, não há membrana, nem porosidade: eles são um pouco de mim. Mesmo que eu sobrevoasse toda a terra conhecida, e que todos os pelos/cabelos e todas as gotas de todos os líquidos se deitassem eu todas as minhas camas, meus olhos conheceriam nenhuma nuvem além daquelas que eu atravessei: não há maremoto pior que aquele quando eu choro, nem tsunami melhor que quando eu gozo, nem erupção mais cintilante que quando eu grito.

{{ }}

Eu peço mais uma e mais uma e mais uma e mais uma. Porque eu desconheço limites, eu não habito minhas praias brancas, eu minto e eu omito: um verdadeiro pequenino monstro. E, mesmo sendo tudo isso, até amendoins me oferecem sem eu pedir. Que mundo é esse que recompensa pequenos monstros? Espinhas na cara, purulentas, vermelhas, inchadas: compõem o mapa de um grande SIM que eu disse à vida. Meu rosto diz SIM em toda sua extensão, com sorriso ou com lágrimas. Me surpreende que o rapaz de 14 anos mais ali adiante reconheça o SIM do meu rosto – porque, talvez, suas espinhas jovens ainda não saibam bem que caminho desenhar [porque são muitos os caminhos nessa idade]. As minhas espinhas, com trinta anos de existência, desenham um SIM gigante no meu rosto. Peles de bebê nunca me atraíram, tu vê, que curioso: sempre preferi peles manchadas, marcadas, grossas de barba, cicatrizadas; enfim, peles que tenham o que dizer e dizem. Peles que sentiram, peles que fazem sentir. Sempre detestei peles lisas: gosto da montanha russa das peles esburacadas. Meu grande SIM esburacado. Meu grande SIM à vida, estampado no meu rosto com espinhas inflamadas. Não há remédio que cure o meu SIM: ele é um mapa, um percurso. O pequenino monstro acha suas coorden[...]

Companheiros

Não nos falta nada - já percebeste?

Temos os corpos. Porque carregam em si tudo que já foi, porque materializam tudo o que queremos. Porque no instante em que penso em ti há uma cisão, um corte, uma separação absoluta que nos impede de sermos um - e aí está nossa graça, nosso charme, porque manteremos intactos nossos quatro braços, nossos dois narizes e nossos seis olhos tais quais eles são. Seis olhos! Porque quando eu te chamo tu não escuta, tu não responde, tu não te vira; mas também porque no momento em que tu me toca eu não sinto, eu não deslizo, eu não arrepio. Porque nós gritamos e nós corremos. Porque nos colidimos e nos chocamos contra paredões. Porque nós choramos, porque nós dormimos, porque nós soltamos gases inclusive. Temos conosco o benefício da traição da promessa: nós não prometemos nada, nem a nós; não empenhamos nossa palavra e não damos partes dos nossos corpos em nome daquilo que dizemos. Ninguém poderá levar nossas orelhas, nossas falanges, em nome de palavras não cumpridas. Porque mentimos, e mentimos muito, e omitimos. Porque não há nada além de nós, nem nada passado por nós com o que mantenhamos dívidas ou juras de veridicção. Porque não pensamos um no outro com cobiça ou com posse, porque não sequestramos nossos planos, porque não esterilizamos nossa vontade. Tudo em ti é possibilidade, tudo em ti é chance, e em mim também; e quando a chance não chega ou não bate, e quando as possibilidades não combinam, não nos acusamos nem nos ressentimos. Porque somos absolutamente incomensuráveis, irredutíveis. Porque estamos juntos por muito pouco, porque há muito pouco de nós que combina, porque há quase nada em ti que me seduz e há menos ainda em mim que te fascina; mas esse pouco, esses nossos pouquinhos e essas nossas nossas migalhas são tão reincidentes e tão preciosas; porque nossos pouquinhos são tão irmãos, são tão amigos; porque essas pequenas partes dos nossos corpos corpos se gostam tanto e com tanta intensidade, e se encostam tanto e se lambem tanto; porque há tão poucas palavras a serem ditas depois da fricção dos nossos corpos que é justamente daí e por causa disso que vem tanto gozo, em jatos altos, e tanto silêncio depois, um silêncio abraçado, um silêncio epidérmico das peles que se confudem. Porque há tanto em mim que conhece o mundo através de ti e por tua causa, porque há tanto em mim que deseja a vida que tu me oferece. Porque tu não me cobra taxas por isso. Porque quando tu me odeia, tu me diz. Porque quando eu te odeio, eu simplesmente não te olho. Porque esse pouco de mim que te fascina circula com força, em espirais, por todo o teu corpo, e entra e sai de ti provocando calafrios. Porque quando tu deita na cama à noite, ou cedo da manhã, não é com o gosto dele que tu adormece (dele, desse outro recém descoberto): é pelo meu sabor que tua boca saliva. Sou eu insidiosamente por toda tua superfície, gritando nos teus tímpanos. É a minha boca selando tuas pálpebras pra tu dormir, é o meu sorriso te velando. Porque não nos falta nada - talvez só mais alguns passos, ou só mais algumas palavras, ou só mais alguns goles. Porque já temos tudo: todos os dias daqui pra frente.

Silêncio absoluto

Apenas isso, e já estava de bom tamanho. Umas reticências antes de cada frase, pra início de conversa, e tudo parecia que já estava dito naquele breve lapso temporal em que os olhos de um desviavam dos olhos do outro pra começar a frase. Apenas isso, e já se sabia o que viria em seguida.

Enfiar o dedo no nariz; limpar o nariz; olhar em volta. Fazer uma bolinha com a sujeira recém tirada graças à prospecção da unha um pouco mais crescida que o habitual. Aguardar alguns instantes e deixar cair a bolinha da sujeira do nariz no chão ou, se muito pegajosa, grudá-la em algum objeto próximo. Certificar-se de que ninguém ao redor testemunhou essa pequena nojeira. Extrair prazer desta infâmia por ela ser, em primeiro lugar, reprovável e, em segundo, invisível. Inaudita. Altamente censurável, mas exequível.

Por outro lado, limpar a boca. Não apenas escovar os dentes, mas de fato limpar a boca. Passar o fio dental cuidadosamente em cada face da junção entre os dentes. Tirar os restos de comida que ficam entre a gengiva e os dentes. Fazer isso em cada uma das junções, da arcada superior e da arcada inferior. Depois escovar os dentes, grandes dentes amarelados, escová-los com calma e perícia, de todos os ângulos possíveis, forçando para alcançar imensos cisos lá atrás. Escovar para fazer bastante espuma. Enxaguar e cuspir. Pegar uma outra escova de longo alcance e escovar somente os cisos superiores, esquerdo e direito, com ardor e bem lá no fundo da boca. Enxaguar e cuspir. Medir 30 ml de fluor líquido, bochechar por um minuto. Cuspir. Uma belíssima boca, asséptica e sozinha.

Foi promovendo tais limpezas profundas e significativas que ele habitou sua casa naquela noite: noite de velório. Uma parte de si havia morrido: nas noites de velório um silêncio absoluto o acompanhava e se avolumava pelos cantos, na casa inteira. Ele limpou o nariz, limpou a boca e limpou todas as demais cavidades que mereciam algum tipo de atenção especial. Em breve aquela casa não seria mais dele, e ele teria de esquecer de tudo, recomeçar de outro lugar. Sempre que havia um recomeço ele fingia não guardar lembranças das dificuldades, dos cheiros e das sujeiras. Promovia limpezas: o silêncio era uma maneira de limpar os espaços já tão densamente carregados da sua presença.

Quisera ele pudesse arrancar o outro de si como o faz com a sujeira que ele tira do nariz: limpar suas cavidades da presença do outro, limpar seu corpo dos resquícios da mastigação do outro. Enxaguar e cuspir o outro. Contra aquela presença insidiosa do outro ele outorgava o silêncio. Se tudo desse errado, na manhã seguinte ao velório ele partiria para o exílio. Nem aos cães de guarda ele avisaria de seu adeus: a despedida, talvez a mais sincera e autêntica contribuição que ele poderia dar, seria ir embora todo envelopado num silêncio absoluto. E não haveria saudade. De ninguém.

Porque não era possível limpar as vontades do seu corpo como ele tão habilmente limpava seu nariz e sua boca. Não havia como escovar o outro de si. A sensação que tinha era a de estar quase se precipitando no abismo, mas segurava o passo mesmo assim, pois a queda livre seria deixar-se ir com a loucura: seria chorar e gritar, ajoelhar-se aos pés do outro e pedir que não o limpasse da sua vida. Queria permanecer dentro dele como a sujeira do nariz, como o resquício de comida entre os dentes. Queria envelopar o outro no seu silêncio e velar o corpo do outro num velório permamente.

Telefone sem-fio

[...]ão podia sequer olhar, nem dizer nada. Era terrível, mas de certa forma ele se sentia melhor assim: não precisava assumir, sabe? Não precisava arcar com a responsabilidade – e era uma responsabilidade. Era uma vida ali diante dele, era uma história, um punhado de lembranças. Era um homem ali na frente dele, um homem de talento, e ele teve medo desse homem. Eram dois homens, um com todos os “sim” do mundo, o outro com todos os medos.
(Não me perturbe com limites de cartões, com saldos negativos em conta corrente. Me deixe falar dessa história, me deixe narrar. Não me interrompa, nem me faça escutar o som da tua respiração).
Entende? Ele perdia noites de sono embarcando nessa loucura, nessa realidade non-sense, fantástica: um homem pensando no outro. E nessa viagem, ele escutava as copas das árvores produzirem o som alto e ruidoso de quando o vento de temporal bate nelas, e ficava cronometrando um tempo que só ele entendia entre o vento bater nas copas das árvores e derrubar as primeiras folhas no chão até escutar os primeiros pingos de chuva baterem no telhado da casa. “Eu gosto de ouvir a chuva chegar, tu não? Acho que agora eu consigo dormir”, falava ele baixinho, meio sussurrando, para um lugar oco que ficava ao lado dele na cama – em qualquer cama –, fantasiando que havia alguém ali. E quem diria que não havia? Ele escutava todos os pingos caírem, todos, e todos os ventos baterem nas copas de todas as árvores. Ele contava cada folha caída. E no final de tudo, ainda não dormia. Ele voltava a sussurrar: “Eu não consigo dormir, mas tudo bem, não tem problema, o que eu gosto mesmo é de acordar e saber que tu tá aqui comigo debaixo dos cobertores”. Parava a chuva e parava o vento: ele continuava acordado ao lado do lugar oco. Ele não se importava.
(Olhe pra mim quando eu falo. Detesto a tua mania de olhar pro nada e levantar as sobrancelhas, sugerindo que está incomodado com a história que eu conto. Eu cheguei à conclusão de que não há outra maneira de tu me entender se eu não te falar tudo, e do jeito que eu bem entender, e tu tem que escutar. Eu sou um pouco de ti, um amontoado de carne que derivou de ti. Não vá achando que isso que sou é tão diferente de ti, porque não sou. Agora olhe e escute).
Ele me disse que não sabia o que iria fazer. Que tentaria fazer qualquer coisa, tomaria qualquer atitude, e que qualquer atitude seria melhor do que fazer nada, mas que sentia medo. Eu argumentei o contrário: eu disse que era pra ele ser feliz e arriscar, mas que era pra tomar uma atitude que o valorizasse, que permitisse que ele vivesse algo de bom. Eu acreditava que poderia dar certo. Ele negou com a cabeça. Disse que da outra vez que tentou arriscar, ele acabou recolhendo os dentes mortos do outro no asfalto. Me falou com dureza da profunda impossibilidade que tinha em negociar com a previsão de um “não, não é isso, tu está enganado, é uma outra coisa”; mas que, de verdade, o que mais lhe doía era a chance do “sim, eu topo, eu também quero, vamos tentar?”. O que fazer com esse mundo que se abre, com essa vida imensa, com essa história singular e esse punhado de lembranças que dizia “sim” – um “sim” grande, volumoso – pra ele bem na sua frente, sorrindo: corpo denso, corpo lindo, se insinuando e dizendo que quer ser dele? O que fazer com isso tudo: ele não tinha braços suficientes pra abraçá-lo, pernas suficientes para atravessá-lo, boca suficiente para comê-lo. E ele queria “comê-lo, degluti-lo, mastigá-lo, lamber sua língua”. Havia muita vontade nele, e isso me preocupava.
(Nojo? Que nojo é esse que tu sente? Nojo de eu ter tentado, de eu ter vivido? Sinto muito se a tua escolha foi ignorar isso tudo que eu vivo hoje. Porque eu vivo, sim, e vivo com intensidade. Mergulho nisso que tu chama de lixo).
Eu sugeri que ele pusesse pra fora. Não precisava ser com palavras, como estou fazendo agora, mas poderia ser com um toque. Ou com uma música – que lindo seria, com uma música. Um filme. Uma caminhada na chuva fina. Um momento de silêncio sentado ao lado dele, corpos próximos. Eu sugeri um carro de som, uma drag queen cantando “with or without you”, uma chuva de pétalas de tulipas negras. Ele riu e disse que não. Ele ficou quieto de repente, desfez rápido o sorriso. “Eu vou esperar desaparecer”, disse, mexendo na pele das mãos, já bem enrugadas e judiadas. Suas mãos judiadas. Tem gente que é assim, sabe? Tem gente que espera as pessoas e os sentimentos desaparecerem – egoístas que são, ficam lá fingindo que nada houve, que nada aconteceu, que nada mexeu com elas –, e tudo e todos vão embora mesmo. As pessoas, aquilo que sentimos por elas: vão embora, se esvaziam. Senti uma pena muito grande dele. Fiquei olhando ele mexendo na pele das mãos, depois limpando os farelos de torrada que caíram na calça, a cabeça baixa, resignado pela dúvida, paralisado pelo medo do “sim” imenso e volumoso que estava na frente dele. Um grande “sim”, um “sim” corpulento, um “sim” viçoso. E ele limpando a sujeira embaixo das unhas já crescidas. “Não vai tentar mesmo? De nenhum jeito?”, eu perguntei. “Desistir já é uma forma de tentar”. “Que covarde”, provoquei. Eu relatei as noites de insônia falando sozinho com lugares ocos na sua cama. Relatei todos os pingos de chuva, e todos os ventos soprando em todas as copas de todas as árvores, e contei uma a uma todas as folhas que caíram. E disse pra ele: “depois de tudo isso tu continua aí, falando sozinho, dormindo ao lado de um espaço oco. Tu já escutou toda a chuva, e todo o vento, e todo o som do temporal e ainda continua aí sozinho”. Eu fico preocupado com ele: o que vai restar ali? Se ele não tentar, o que ele vai fazer com tudo isso dentro dele: todas essas frases sussurradas no meio da madrugada pra ninguém, todas as fantasias e as situações que ele simula naquela cabeça baixa e tristonha, onde ele vai botar isso tudo? Tenho medo que ele acabe enlouquecendo, matando alguém ou se matan[...]
(Pronto, acabei. Agora pode te levantar, pode sair. Não, não comente nada. Não quero saber o que tu pensa disso, não quero saber a tua opinião. Só te levante a saia daqui. Vai, sai. Viva com isso que te contei, se puderes).

Intramuros

Não há nada no mundo que me faça suar. Nada. Porém, hoje eu senti um desânimo profundo – em outras épocas eu seria mais sincero: diria que era medo mesmo – em ter de entrar em casa. Abri a porta e me virei de costas para a abertura na parede. Entrei de marcha ré na minha casa. É um horror cada vez que vejo, é um horror! É uma maldição! Limpei tudo: a louça, as roupas, aspirei o carpete. Um horror. Uma parede da minha casa começa a se encher de mofo, e eu finjo que não vejo. Eu finjo que não vejo, finjo que não falo: dissimulo e faço teatro desta minha condição. Da minha garganta saem dragões, os dragões que habitam minha garganta, e me dói. Tu me vem com essa furadeira, com essa machadinha, cortando e separando, fazendo de pedaços em pedaços o pouquinho – bem pouquinho – que tenho a esconder de ti. Não há parte de mim que não cintile quando tu me põe os olhos. E vai crescendo na minha mente, tomando volume, adensando: tu perfura e penetra meu crânio, quebra o muro dos meus ossos. Não dói, e eu adoro. A pior parte é enganar os demais: “não há raio de luz em mim”, quando há, sim, e eu tento encobrir com minha roupa. Com a manga do casaco, com o cachecol. Pergunte que eu te respondo, mas pergunte! Pergunte em voz alta, olhando pra mim e fazendo uma breve introdução: “eu sei que tu não vai mentir se eu perguntar, então eu vou perguntar”. Pois pergunte. Pergunte que eu respondo, e respondo em voz alta. Não há nada no mundo que me faça desistir de deixar tu entrar. Entre e se perca sem demora. Me dói aqui atrás, bem abaixo dos ombros, num ponto médio das escápulas, onde ficam minhas lembranças. Para minha sorte, ele fala outra língua, ele não entende o meu corpo. (a) Não há lugar pra mim extramuros. (b) Permaneço no exílio. (c) Quebro minhas próprias regras. (d) Abaixo meus olhos. (e) Sorrio no canto da boca. (f) Puxo o lábio superior direito ao pronunciar o meu “s” sibilante. (g) Não saio correndo para tropeçar, com a desculpa de ter que pedir ajuda depois para me levantar. (h) Homem, homossexual, homofobia, hosana nas alturas e nas baixezas. (§) Paro de cantar. (&) Não conheço os limites que tu pode me impor. (@) Tu não percebe o quão longe eu fui. Já estou no segundo comprimido da décima terceira cartela. Se dependesse de mim eu continuaria tocando a tua mão, e se tu viesse me perguntar o porquê eu responderia em voz alta. (i) Não se levante, não desenhe, não escreva sobre isso. (j) Pare agora de escrever sobre isso. (k) Mais nenhuma palavra; elas podem perder o controle, podem se materializar. (l) Não pense mais nele, nem redija textos sobre ele, nem textos sobre o que tu pensa que sente sobre ele, nem textos sobre o que tu pensa que ele sente por ti. A hipocondria pode te salvar, mas há um preço caro para pagar. O fígado, uma geleia. O pâncreas, insuficiente. O cérebro, uma sopa. O coração, uma engrenagem. Vou continuar arrancando os pelos das minhas orelhas com a pinça enferrujada que guardo comigo, junto com outras duas mais novas – meu corpo deu pra ser sincero depois de certa idade. Nada me dá mais prazer hoje que cortar minhas unhas e arrancar os pelos das minhas orelhas. Pode não aparecer, mas tenho um pelo enorme, branco e fino, bem no meio da minha testa. Não há outra pessoa no mundo que vai te fazer ver isso, um dia tu vai dar valor pra essas coisas peludas e enferrujadas que tenho aqui dentro dos meus muros de ossos. (m) Feche a mão em concha. (n) Assassine a criança que pede pelo balão a gás. (o) Na cozinha eu afio a faca. (p) Na sala eu rasgo as paredes. (q) Não chame por ajuda, aguente. (®) Poderia haver uma saída pra mim, mas não nesse corpo, não nesse mundo: e, de qualquer forma, é só o teu corpo que me serve de entrada. Vou deixando que tu vá, e tu vai, e tu desprende de mim. Não há nada no mundo que me faça chorar, mas hoje eu entrei de costas na minha casa com medo de chorar. Se há algo que pode me fazer chorar, isso existe intramuros. Tu me pediu, eu sei que tu me pediu, mas eu não posso ir até lá contigo. Poderia ir se tu me jogasse uma âncora, mas não me imagino exatamente como um barco ancorado. Não me vejo velejando. Não sou do mar, menino das águas extensas. Se eu não vejo, eu sinto o cheiro. O problema é que, no teu caso, eu vejo E sinto o cheiro. (s) Tu me escuta? (t) Tu saiu e nunca mais voltou. (u) O remédio começa a fazer efeito. (v) O fígado para de funcionar. (w) Faliu o corpo sem outro corpo, foi encontrado dias depois pelo cheiro, não pelo carinho. (x) A vida sem ti, seja na minha imaginação ou quando tu não vem tomar um chimarrão, me dá sono. E como tenho estranhado a luz do meio-dia, os paralelepípedos da calçada úmida. A gota de chuva que cai na minha nuca e que me estremece. É impossível de haver fora de mim um lugar mais seguro pra ti nesse mundo. (y) Pare de escrever sobre ele. (z) Pare de trazê-lo para o texto, pare de dedicar este texto a ele. (*) Saí de casa hoje só para conseguir um abraço teu, e tu me deu uma flor. Que jeito lindo de derrubar meus muros e de se espraiar por todos meus cantos. Que belo, que sentimento morno, que aconchegante que é a tua presença nisso tudo que construo. Um trovão, e eu sem ti - isso deveria ser proibido por lei.

Netuno em oposição a Mercúrio

Estou pendurado pelos pés. O sangue todo desce para a cabeça, e a mente agora exagera na imaginação.

Por onde andavas, em que mares velejavas? Chegaste até aqui quando, como foi que isso se deu, eu não posso lembrar. Mas se não lembro, eu crio: vestias azul. E sorrias. Era turva a imagem que eu via, não a distinguia muito bem de alguns vultos e sombras. Eu o vi. Havia três caminhos possíveis para que tu chegasses até mim, e tu escolheste todos. Fincaste as três pontas em mim, e elas só poderiam fincar em mim. Não havia outra saída para as tuas múltiplas entradas: tu só podes terminar em mim. Não te enganes: mire teu radar espiritual pro meu lado, sintonize na minha frequência. Há aqui uma paz, uma beleza e um som tranquilo que só eu posso te dar.

Tampouco adianta pular de um pensamento para outro, me escapar por entre um argumento e outro. Tenho pés com asas. Onde tu supões fugir de mim, ou me despistar, eu já lá te espreito e te surpreendo. E tu gargalhas e foges pra mais outro pensamento, ou outra fantasia. Não é uma fuga por repulsa ou nojo, ou ódio, ou medo. Nem eu nem tu sentimos medo. É um jogo, e como tal tem suas regras, suas penalidades: é um jogo sem ganhadores, só com jogadores. Pode ser um jogo de esconde, mas também é um jogo de estratégia. Olhares e toques, e abraços, e sorrisos, as lições que te dou e que tu me dás, os beijos: estrategicamente pensados para nos deixarmos conquistar um pelo outro.

Essa nossa pujança jovem, as nossas fantasias, o nosso toque silencioso e cúmplice. As nossas promessas de sonos compartilhados, de sonhos materializados. Nossas memórias e nossas lembranças, o cheiro das nossas peles: os pés e as testas que se tocam, e a tua voz que faz vibrar tua garganta e que me adormece. Fale um pouco mais perto do meu ouvido e entre uma palavra e outra morda com parcimônia a ponta da minha orelha. Não é necessário falar apenas palavras doces, ou juras de amor. Não me jure nada. Só vá embora quando deixar de acreditar; enquanto isso vá ficando, me faça dormir, sonhe junto comigo. Dance. Diga que me entende, diga que jamais pensou no que eu te mostro. Diga que é a primeira vez que vês essa beleza. Diga que estamos com os pés e as testas amarrados.

Ontem, antes de dormir

[...]atro cobertores sobre mim. Não está tão frio, eu diria inclusive que está quente, que está úmido. Mas eu gosto do peso, sabe, do peso dos cobertores. Imobilizam meu corpo sobre o colchão, me impedem de cair da cama. Ouço um parabéns a você no apartamento ao lado – quem será que tem a inglória tarefa de viver mais um ano? Os cobertores... Eu poderia dormir novamente, mais treze horas ininterruptas. Sem remédios, sem truques químicos. Dormiria com esse poder imaginativo cruel e perverso que me faz achar carinho em qualquer corpo. E acho. Não há ninguém aqui desse lado da cama, nunca houve, é só um espaço oco por dentro, uma casca sem conteúdo – pois o conteúdo e a substância eu mesmo enxerto, eu mesmo dou conta de preencher. Quem está de aniversário hoje? Quem comemora esse dia? É com profundo pesar que me deito dentro dos teus olhos e mordo tenramente essa tua boca linda: eis o conteúdo da casca oca que jaz ao me lado, toda noite, na minha cama. Como tu é bonito! Ao alcance da minha mão, a tua: dedos e unhas, pele, ossos. Bastante concreto. Minha imaginação me presenteia tão somente com um abraço durante a noite, assim, um pouco inconsciente por causa do álcool, um pouco consciente demais também e justamente por causa do álcool. Tu vem e senta na beirada da minha cama, eu quase dormindo, e tu me pede com a voz torta pra se deitar comigo debaixo dos cobertores. Eu respondo que ‘sim’ um pouco confuso pelo sono, mesmo não entendendo direito o que tu quer, mesmo estando um pouco nervoso, mesmo pensando que talvez o melhor fosse negar o pedido e dizer que nossa relação não é dessa esfera, mas de outra. Eu aceito, todavia. Tu te enfia debaixo dos cobertores pesados, cola teu peito e tua barriga nas minhas costas, me abraça e coloca tua mão direita sobre meu peito. Meu coração já bate bem forte, e o teu também, eu posso sentir. Entrelaço meus dedos nos teus. Depois de um silêncio um pouco constrangedor tu me pergunta se pode dormir ali. Eu respondo ‘sempre’. Os cobertores pesados nos imobilizam: tu nunca mais vai conseguir sair da minha cama, pra sempre preso dentro da casca oca ao meu lado[...]

O nosso quartinho

Sabe do que eu to falando? Do nosso quartinho, aquele que ficava lá atrás de casa, na parte mais austral da casa. O nosso quartinho escuro, secreto, que a gente frequentava quando éramos bem crianças, quando a gente acreditava nos amigos imaginários. Pois é: o quartinho não existe mais, tá? Nunca existiu.
Entende? Deixa de ser ridícula e vê se cresce: nunca houve quartinho nenhum. Sua louca. Eu tentei de avisar, eu gritei contigo, até te dei uns tapas: nunca existiu. Eu me dei conta disso no dia em que tu decidiu que eu simplesmente não fazia mais parte da confraria do quartinho. E nesse dia tu me impediu de entrar no nosso quartinho, mas daí eu vi que aquele cubo obscuro onde a gente entrava e fingia tecer histórias reais, eu vi que ele não existia porque mesmo tu dizendo que estava lá dentro eu ainda conseguia te ver do lado de fora. Era como se fosse um cubo de acrílico transparente. Sua louca ridícula.
Sabe?... Eu fiquei te olhando, falando sozinha, mexendo nos teus brinquedos. Não me deu nem pena. Vai embora, eu nunca mais entraria lá, nem se existisse. Foi quando tu me mandou embora que eu fui viver minha vida – bem longe de cubos de acrílico transparente enfiados no breu. Tu me mandou embora e isso não resolveu teus problemas. Não é me mandando embora, nem mandando qualquer outra pessoa embora, que tu vai conseguir resolver teus problemas. Feia. Isso te faz uma pessoa feia.
Muito me surpreende o fato de tu não entender que não houve, nunca, um quartinho nosso. Era só uma fantasia que era realidade enquanto nós dois acreditávamos nela. Não me culpe por isso, não me responsabilize. Não me mande embora novamente desse teu quartinho apertado onde tu vives hoje. Não vai adiantar. Ridícula. Só vai piorar e estreitar, apertar ainda mais o cubo seco onde tu mora.
O meu quartinho já está cheio pra te receber.

Enganos

[...]anado, muito e redondamente. Eu lembro de ter me esquivado um pouco, de ter sido reticente. Okay. Mas isso não nos dá o direito de tomar os lixos como o jeito privilegiado de levarmos a vida. Tu te engana quando diz que foi assim, que sempre foi assim, que desde o início tem sido assim. Que nunca mudou. Eu não sei que narrativa linear de tropeços e entrecruzamentos é essa que nós estamos tentando reconstruir. Sim, eu vou revisitar os nossos cantos obscuros quantas e quantas mais vezes me forem necessárias. Se tu não quiser ir lá comigo, não precisa: fica aí nesse canto estreito onde cintila a luz. Eu prefiro os nossos breus, os nossos lusco-fuscos. A escuridão é mais criativa, mais surpreendente. Não, é um engano teu. Não te dou o direito de reconstruir a nossa história, que é também um pouco da minha história, a partir do eixo daquilo que sempre foi dito da mesma forma. Não é a repetição que nos trouxe até aqui da forma com que chegamos aqui. Não é recriando uma inteligibilidade racional que vai nos fazer parar. Não adianta falar, verbalizar, desenhar, escrever, tirar fotos: Freud e Lacan estavam errados. Eu quis retornar para aquele lugar, para aquela parede e para aquele pilar, tantas vezes. Eu quis repetir aquela roupa, aquele corte de cabelo. Pedi para o DJ tocar novamente aquela mesma música. Eu cheguei a olhar no relógio naquela mesma hora. Mas tudo já foi embora, já foi longe, tudo é tão radicalmente outra coisa. Não, tu te engana e ainda tenta me enganar: eu voltei lá, eu te chamei pra voltar. Chamei por ti, chamei pelos outros. Nenhum voltou. E mesmo que tivessem voltado, seria outro que os chamaria, não eu – não o mesmo eu. Não há bonecos de cera ou obeliscos lá onde nossas histórias começaram. Eu recolhi pedaços do que eu lembrava, uma memória bastante entrecortada devido ao álcool, mas recolhi com carinho e emoldurei na minha mente: não adiantou. Eu revisitei essa memória tantas vezes, e ela mudava tanto. Sim, estou te dizendo. E quando eu os reencontro, tu inclusive... Não são os mesmos. Não são. E tu vem me pedir pra “deixar, pra esquecer, pra silenciar e não falar sobre o que não foi dito”? Eu quero mais é mexer na merda mesmo. Eu levei um susto quando eu o reencontrei – na verdade foi ele quem me achou. E não foi como da primeira vez; ou melhor, foi. Como sempre, ele sente meu cheiro à distância, ele reconhece meu rosto e meu corpo. Ele sabe quem eu sou, ele sabe quem eu fui, ele sabe que eu posso ser outro, mas que esse outro pode também ser bonito a seu modo. Foi mais frio, mais triste dessa vez. Mas não foi feio. Não éramos mais nós – aqueles nós de dois, três anos atrás. Os nós de hoje, tão psicanalisados, tão tratados, tão descolados (e deslocados), tão moderninhos: os nós de hoje ainda pensam que são os nós que se encontraram da outra vez. Trocamos umas palavras cintilantes e calamos. Investimos num silêncio gostoso, com a diferença que o último silêncio que nos envolveu nós estávamos um dormindo no colo do outro. Quantas noites, mesmo quando um terceiro ainda se deitava na minha cama, quantas noites eu lembrei com uma ponta de dor e uma maré de saudade daquele último silêncio. Aquele me rodopiava, que me fazia dançar e sapatear: aí está ele de novo. Mas é novo? Não sei se é novo, radicalmente novo, mas é estranho, é estrangeiro. E tu vem me pedir pra não falar? Tu está enganado. Eu vou falar, sim: vou me esgueirar por esse lixo que a gente deixou entre nós, me arrastar por entre o lixo que a gente deixou acumulando no nosso breu, e eu vou gargalhar esse reencontro de dois estrangeiros estranhos. Não te dou o direito de recontar uma história que é a minha, nem te dou o direito de me fazer calar. Eu vou falar, sim. Vou falar sobre ele, sobre como eu o desejei, sobre como eu fui ridículo gostando dele, sobre como eu fiz coisas patéticas pra ficar com ele. Sobre como eu desliguei o telefone dizendo que ia dormir e na verdade fui abraçá-lo, beijá-lo; deitar no colo dele pra ficar em silêncio. Eu vou falar, sim, sobre como eu menti pra ficar com ele, sobre como eu fantasiei ficar com ele. Até pra conjurar qualquer esperança de que ele seja o mesmo. Agora que já posso falar, que já posso gritar e gargalhar o que eu quiser, no escuro e no breu que eu quiser, eu vou desfazer a moldura da memória que tenho do nosso primeiro encontro. Vou jogá-la fora. Vou me sentar ali, ó, por entre aquelas coisas todas que eu e ele não nos dissemos, vou me sentar bem no meio do nosso silêncio um no colo do outro, que é a única coisa de nós que se manteve mais ou menos incorruptível, que é a única coisa de nós que pode se repetir, que é a única coisa de nós que essa tua baixeza não pode confiscar. Vou me sentar ali e só vou ficar ali gostando de estar ali. Não, tu está enganado: quando eu quiser falar, eu falo; quando eu quiser calar eu calo, e eu vou calar no meio do breu e do silêncio pra tu nunca mais me reenc[...]

Um retorno inesperado

Noite dessas eu parei tudo e fui tentar fumar: saí de casa. Não gosto do cheiro do cigarro infestando meus espaços, a não ser meus pulmões. Escorei na máquina de lavar, na área de serviço, e acendi o cigarro. Fiquei ali olhando em volta: o pó se grudou aos vidros e há mofo no teto. As lajotas do chão estão manchadas e pode haver infiltração de água que produz mofo no apartamento de baixo. Eu já sabia, já pressentia, mas ali mesmo eu soube que teria de sair daqui.

Voltar pra onde, pros braços de quem? Nunca houve. Minhas mãos já estão velhas, já estão ásperas, não dão mais o mesmo carinho. Ir pra onde, levando o quê? O que eu haveria de tirar de dentro de um para por dentro do outro? Carregar minhas coisas, varrê-las e juntá-las com pá, ajeitar as pontas cortantes dentro de uma trouxa de roupa suja e ir embora. Muitas pontas cortantes. Ou fazê-las minha coroa, meu diadema. Arrastá-las, engoli-las, sair andando com todas dentro do meu estômago. Empurrá-las com toda a minha força até onde eu as pudesse ou até onde elas aguentassem. Abraçá-las, embrulhá-las pra levar. Não me distanciar de nenhuma delas, nem do pó que pousa sobre elas, nem das suas manchas. Preservá-las comigo em sua integralidade, mantê-las intactas. Ancorá-las em mim e por mim. Ignorar outras coisas, que não são minhas. Ir apenas pra onde e pra quem aceitá-las.

Ou deixá-las todas, doá-las a quem não tem coisas. Não esquecê-las, mas superá-las. Acho que eu preciso superar minhas coisas todas, uma a uma. Das feias e úteis até as belas e cosméticas. Jamais esquecê-las, ou esquecer de algumas [só das belas] – uma memória reconstituída das minhas coisas, refeitas e redistribuídas ao ponto de despistar meu passado daquilo que ele realmente foi. Porque ele nunca foi realmente coisa alguma – nem a minha coisa. Esquecer estrategicamente das minhas coisas, só de algumas delas, e lembrar de coisas que não foram minhas mas que eu gostaria que tivessem sido. Sim! Isso sim seria superá-las. Distribuí-las de maneira comedida na distância fria da morte em relação ao nascimento: bastante ecumenicamente reparti-las ao longo dessa linha temporal e inundar os espaços com elas – as minhas coisas. E aquela mais doída, mais sofrida, mais triste, essa seria dissolvida ou quebrada em pedacinhos bem pequenos como açúcar e espalhada assim, num movimento rápido, em todo meu passado. Um temperinho de dor, mas só um temperinho que é pra eu ficar bonito – eu fico mais bonito quando estou um pouco triste.

Ou queimá-las. Incinerá-las para que não pertencessem a mais ninguém. Pulverizá-las, triturá-las. Julgá-las culpadas de tudo, as minhas coisas, responsáveis pela minha demência, pela minha indecência. Rasgá-las e fazê-las de adubo para árvores, plantas, legumes e hortaliças. Desligá-las dos aparelhos, eutanasiá-las e cremá-las e com elas dizer adeus a esse moribundo que não morre nunca. Fazê-las morrer e fazê-las partir. Chorar por elas, sentir saudades, pedir pra ser enterrado junto com elas. Viver o luto de perdê-las e viver com sua falta transbordante, com sua falta constitutiva. Defenestrar as minhas coisas. Cortá-las para sempre, extirpá-las e começar a fazer novas coisas minhas. Ignorá-las, fingir que não existem, que são de outro, que não me dizem respeito e que mentem sobre meus defeitos, sobre meus hábitos. Ocultá-las por detrás de portas, dentro de bueiros, em cima de grandes prédios, amordaçá-las. Sequestrá-las e afogá-las. Negá-las e acusá-las de estarem mentindo, acusá-las de perjúrio, pedir a pena capital ou reclusão vitalícia. Fugir delas. Ou traí-las. Traí-las e dizer que não as amo mais, que estou indo embora reconstruir minha vida com outras coisas minhas com quem tenho um caso há vários anos. Deixá-las no vácuo da depressão e da solidão.

As minhas coisas: o que posso fazer com elas antes que meu cigarro apague?

Pequena monstra

Não digas que não recebeu, pequena monstra: eu sei que recebeste e que estás louca pra me responder. Se não o fazes, é porque és uma fraca. Não diga que não vais poder comparecer, que não vais poder estar presente, pequena monstra: eu sei que é uma desculpa, um porém bem calculado para te esquivares das responsabilidades. Não digas que não sabias, que deslizaste, que estás doente, que estás sofrendo. Pequenos monstros e pequnenos vermes são muito pouco para desconhecer, para deslizar, para adoecer e para sofrer. Desconhecer é uma imensa tarefa, demais pros teus pequenos ombros.

Sons

Ele batia TAM TAM TAM, um som ácido e metálico!!!! E tirou um martelo gigante de dentro de uma maletinha de plástico!!! E martelava com força, com dor, com a vontade de abrir minha grade!!! Entortou um chave de fenda e entortaria várias outras!!!
§§§§
Eu escondia meu rosto com a mão. Tinha vergonha. Porque sabia que todos eles e todas elas, todos/as olhavam pra mim escorado na parede, pedindo por favor pra dormir na minha própria cama. Não dormi.
§§§§
EU NÃO SEI! Se eu soubesse eu não estaria aqui! Foi uma semana assim: de gritos.
PÁ PÁ PÁ PÁ. Passos no chão. E eu aguardando, sabendo que seria patrolado. Desejando ser atropelado. E não fui.
§§§§
Silêncio. Nem a criança do apartamento da frente existe. Nem tu respiras – sai daqui, já estás morto. Só eu. Um cello lá no fundo. Uma gota da chuva, gota atrasada em cair. Meu piscar, BRALMLURLAM, demolidor!
§§§§
Estalos. Minha boca na tua. Tua parte convexa em uma das minhas partes côncavas, entrando e saindo entrando e saindo entrando e saindo entrando e saindo entrando e saindo. Estalos da saliva.
§§§§
E tu, TUM TUM TUM, batendo aqui dentro a semana toda. Não esqueci de ti. Eu te escuto bem daqui. Saudades.

Surpresas

Eu bato aqui e faz TUM. TUM. TUM. Um soco sobre a pele e faz TUM. TUM. TUM. Oco, vazio. Mas não é um vazio ruim, triste ou solitário. É um vazio que se alastra e engloba tudo, cresce e rompe. Não é triste, nem dói. é um pouco de mim que ficou aí contigo, um pouco da minha surpresa, um pouco da minha ousadia. Eu te dei a minha ousadia e nós aproveitamos. De tudo isso que é oco, de tudo isso que é vazio, de todo esse vácuo absoluto que vem se deitando sobre mim tu é a parte mais bonita e, de longe, a mais preciosa: faz TUM. TUM. TUM quando eu bato no teu peito. E mais uma vez me supreendo contigo - tu, sempre pronto para me sorrir: "não é um vazio, é um músculo que bomba o meu sangue". Eu também o tenho? "Sim, está aqui, ó": e tu bates no meu peito, com os nós dos dedos sobre minha pele: TUM. TUM. TUM. Se eu rasgar meu corpo, tu entras?

Onde teus pés sentem o chão

E ela sai, belíssima, no seu vestido de sereia. O que isso garante a ela? Nada. Sua pele bem branca, seu perfume. Sua conta bancária. Sim, garantem. Minha mão. Minha mão calejada, e a dela? E a sua voz? Taquara rachada. A minha é de barítono. Mas é isso, é real, é essa coisa concreta: essa coisa que nos jogam na cara e nos dizem que esquecemos. “Vocês esquecem que temos que fazer alguma coisa quando um paciente surta”. Sempre temos de fazer alguma coisa, não apenas quando o paciente surta – meu bem! Isso que tu diz pra mim, o vinho que tu bebe, a cerveja que tu derruba nos meus pés, o movimento das tuas mãos, o tom da tua voz, o olhar que desliza: sempre há alguma coisa pra fazer, não é apenas quando o teu paciente surta. Aí quando tu decide ser outro, quando tu mente. E ela? Mente o tempo inteiro – e a gente paga por isso. Mas há algo que me prende a ela, há algo que me liga: uma senha, uma biometria. O que ela fez por mim, por milhões, ninguém poderá fazer novamente. Outras e outros farão, mas por mim, só ela. É difícil dar-se conta que se está nas mãos dessa pessoa tão pequena (não necessariamente baixa). E estou. Só sou por causa dela, mas também sou apesar dela. Somos. Veja: agora eu estou surtando – e o que você vai fazer? Contenção? Aqui onde teus pés tocam o chão, aqui onde a materialidade do mundo chega o extremo, aqui: aqui é onde finco os olhos.

unhas

[...]os meus dedos: minhas unhas sorriem![...]

O peso

[...]minhas mãos. Eu olhei para as minhas mãos, e quantas rugas: rugas nas mãos. Não entendi direito e olhei novamente: rugas nas mãos. Pensei que talvez fosse a luz, a incidência da luz sobre meu corpo, sobre minhas mãos: não, eram rugas mesmo. Mas é que as rugas são isso: dois pontos e explicação. São marcas das dobras, dos sorrisos largos. Sorrisos largos são isso: dois pontos e explicação. Marcas de quem sorriu. Minhas mãos, a pele das minhas mãos, os dedos das minhas mãos, as unhas das minha mãos: eu admiro muito minhas mãos. Tenho apreço por elas. Fazem maravilhas, dizem mais de mim do que minha boca. Falo pelas mãos, como bom descendente de italianos que sou. Mando beijos, manipulo corpos. As unhas, as unhas são muito importantes: corte-as. Guardo uma admiração louca pelas minhas mãos: dois pontos e explicação. São como eu toco o mundo e estabeleço essa ponte entre o que penso que sou e o que os outros pensam que sou. E só fica nisso: dois pontos e explicação. Eu pensando que sou isso e vocês pensando que sou aquilo. Ninguém é o que se pensa, nem ninguém sabe o que o outro é. A coisa toda só acontece pelas mãos. Minhas mãos enrugaram muito nos últimos anos: e olha que um dos elogios que me eram dados era exatamente a maciez e formosura das mãos. O tempo passa: dois pontos e explicação. Se me tirassem as mãos eu não seria nada, eu não seria eu, eu deterioraria. Hoje eu vi um rapaz sem um dos braços empurrando um carrinho de bebê no shopping e ele se dirigia pro banheiro. Fiquei pensando como ele faria pra mijar - ou cagar, que é mais delicado. Sem uma das mãos fica complicado. E ele era tão lindo, tão bonito tão vivo. Tão cheio de vida, de beleza, ele me olhou no olho e sorriu, uma pessoa avulsa capaz de me sorrir e de me plantar qualquer entusiasmo. Ele era lindo, e sua mão que faltava (será que era falta? não! ele era plenamente ELE sem um braço) eu tinha pra dar. Tenho várias mãos: dois pontos e explicação. Sonhei com ele. Sonhei com a coisa boa que ele me plantou nos olhos. Os olhos dele tinham mãos: dois pontos e explicação. As minhas pulsam: se eu parar de digitar, dá pra ver as artérias bombando sangue. A vida é movimento. E tem gente que morre vivendo. Tu estás morto: dois pontos e explicação[...]

Ética do dia de hoje

Treme minha mão, treme. Tremem essas coisas que eu tenho pra escrever, e elas transbordam e caem, se espalham, a garrafa cai e eu bebo do chão. Porque nada pode ser desperdiçado. Lá longe tem uma coisa boa, uma coisa linda, que eu fico olhando e me perfumando se é pra isso mesmo que eu estou aqui, mas eu daria tudo para estar na pista de dança, no som alto, junto do cheiro que mistura perfume e cigarro – eu adoro o cheiro de cigarro, eu gosto do cheiro que fica no tecido. Eu gosto – sim, eu gosto – do non-sense, do vácuo, do momento. Eu fui até lá e vi tudo, me virei e saí de forma elegante. Não tinha como eu me acampar. E não acampei. Fiquei sobrevoando, jogando sementes. Não me interessa saber se haverá frutos, mas só o silêncio e os olhos que deslizam, que não me encaram, ou que me querem, que se recolhem. É tudo, e é isso também: uma vontade imensa de deitar ali, de estar nessa cama que eu recém estendi, de me enrolar nos cobertores e habitar o quadrículo todo, é um pequeno quadrículo, mas de esquentar a coisa toda com meu corpo que não é nem vulcão nem geleira, mas só isso que deita. E que deseja também, mas essa semana eu não desejei – que mentira, desejei, desejei profundamente, aquelas bermudas de futebol, aqueles panos, aquelas camisetas suadas, aqueles tênis de futsal. Tu é muito lindo. Duvido que haja alguém mais apto a te dizer isso que eu. Porque tu percebeste, tu sabes que eu te olho, e tu até me deste tchau. E eu respondi: “OI!”. Não dou tchau a quem eu quero cooptar. Não é feio, nem triste: é morno. A garrafinha de long neck está congelada por fora. E eu ainda nem bebi. E é isso que é legal, ir pra um outro lugar onde o gelo nem se forma e o banheiro é movimentado, ah o banheiro, cada entrada é uma aventura. O hálito que sai da minha boca, esse ar morno com um cheiro estranho, esse hálito seduz. Mas hoje eu não quero muito mais que isso: uma cama estendida, uma televisão, dois travesseiros e uma vontade louca de mergulhar num futuro tão bonito. Tão Tranquilo. Tão Calmo. Tão Eu. Porque eu sou calmo, eu sou muito discreto: não transpareço o monstro que sou. Sou discreto. Um beijo, uma risada: eu vou ficar em casa hoje. Desculpe. Nada mais tem brilho, nada mais tem aparência: tudo se mostra como é. E que crueza é essa, que obscenidade. Obsceno, obsceno o teu eu! Eu deslizo pra esquerda e vou contornando, superando. Minha barba está longa, mas pretendo ir até suas raias. Vamos? Quem vai comigo? Eu queria estar lá, mas já esgacei a calça de moleton, o casaco de lã, a pantufa. Mentira, não uso pantufa: meus pés são gelados desse jeito mesmo porque fico sempre descalço. Eu fico sempre descalço! No verão e no inverno! Porque meus pés são muito sinceros, são o que são, e habitam minha casa – minha casa não é minha, minha casa é dos meus pés (tenho Netuno na casa 4): entra aqui e vê que coisa linda, que coisa morna, que coisa cheirosa. Sorrio e pisco os olhos. Há algo de profundamente novo nascendo em mim, há algo de muito inesperado que eu afogo, que eu encubro e disfarço. E volto pro mesmo medo de sempre. É tu que vai me tirar disso, é tu que vai ver isso e que vai me dizer, que vai me avisar. E eu vou escutar, porque eu escuto a tua voz. Eu vou escutar e vou deixar verter: me ajuda? Eu também te ajudo! Porque eu também vejo isso tudo em ti, e mais e mais, e eu vejo uma sintonia, e eu vejo uma propulsão, eu vejo uma vida, eu vejo uma admiração, um respeito, um carinho que vão muito além do “teu corpo é só meu” ou “tu me esconde coisas”. Eu não escondo nada de ti. E me orgulho de me mostrar assim do jeito que te apareço, do jeito que me mostro – e se me mostro é porque quero ser visto desta ou daquela forma. E tu me viu, que bonito. Que bonito. Tu é muito lindo. E contigo eu sou feliz porque amanhã eu vou poder acordar e trazer um café, um bolo que eu fiz, um pão que eu fiz, uma flor que eu colhi e um beijo que eu guardei pra ti. Nem sempre foi pra ti – em outros momentos guardei pros outros também. Mas agora são teus e eu tenho tanto orgulho de ti aí dentro desse corpo lânguido que se deita na minha cama. Agora chega: vou desligar a luz e dormir com ele. E nesse resto de consciência antes de dormir, eu encaixo no seu corpo (e ele no meu), e a gente pensa em milhares de outros corpos que não são nem eu nem ele, desejamos milhares de outras palavras que não foram aquelas que a gente se disse, mas somente essa cama é nosso denominador comum. Queremos outras coisas, outros corpos, outros beijos e eventualmente conseguimos. A gente vai lá longe e volta; nos Anéis de Saturno e volta. Porque é bom estar aqui – mas é melhor viajar até os Anéis amando alguém que fica.

Moral do dia de hoje

Nunca vi vontade de ficar deprimido que desse mais errado que a minha nos últimos dias. Eu tentei de tudo pra me achar um corrupto, mas não houve ficção que me convencesse. Comecei caindo na sarjeta com um estranho. Fiquei ali com ele um tempo, vendo o dia nascer. Um frio delicioso, e não tínhamos roupas suficientes. A noite que passou fora quente. Convidei o rapaz para dormir comigo, ele não quis. Começou a ter uma viagem interna bem ruim, provavelmente devido ao abuso de drogas ilícitas, e quis sair correndo. Eu me ofereci, então, para levá-lo até a parada de ônibus. Ele entrou onde devia, e eu peguei um outro ônibus que nunca tinha visto antes, mesmo sabendo que eu não tinha dinheiro para pagar a passagem. Apostei que seria jogado para fora do ônibus. Porém, o motorista disse que eu poderia ficar ali na frente desde que não tirasse o lugar de nenhuma pessoa que precisasse. Daí eu fui com esse ônibus até uma zona da cidade que eu não conhecia, que eu não sabia nem perto do que ficava. Casas, ruas e pessoas totalmente estranhas. Pensei que talvez se eu ficasse vagando por lá meio moribundo, um pouco com cara de mau (do que eu julgava ser mau), talvez aí as pessoas me achariam criminoso. Mas uma senhora teve pena de mim, e eu ia passando pela porta da sua casa simples, e ela me chamou. Eu voltei, exagerando na cara de mau, e ela me perguntou meu nome. Eu respondi, meio que rosnando. Ela disse o nome dela e me convidou para um café. O cheiro chegava até ali a porta, onde nós dois estávamos parados com os braços cruzados bem rente ao corpo porque fazia muito frio. Eu não pude resistir àquele cheiro. Desfiz a cara teatral e entrei na casa humilde, onde tomei o melhor café do mundo. Eu agradeci àquela senhora com um abraço bem quente, um abraço que só as manhãs de inverno guardam pra gente. E ela me disse que conhecia um vizinho que estava indo pro centro da cidade por aquela hora e me perguntou se eu não queria carona. Eu respondi que sim. Ela me levou até a segunda casa humilde logo depois da sua, e vi um carro bem antigo estacionado dentro de uma garagem que era apenas um puxadinho de madeira. A porta do carro estava aberta e prestes a entrar nele estava o motorista. Que rapaz lindo! Lindo daqueles de doer de tão lindo, de deixar a gente nervoso, meio anestesiado, com vergonha de falar muito alto senão era capaz de fazer quebrar aquele rosto talhado a facão, toscamente, de barba meio ruiva e meio negra, de dentes fortes, de cílios longilíneos e curvos, de dedos grossos. Ele aceitou me dar carona. E eu aceitei o desafio de me fazer odiado também por ele: vi reluzindo a aliança dourada em uma de suas mãos e armei uma estratégia para seduzi-lo durante o longo percurso que partia daquele nada imemorial onde eu estava até o centro da cidade. Durante o percurso eu abusaria dos meus olhares e dos meus toques no corpo daquele belo homem casado para, então, provocar uma situação de violência, para ser espancado por ele, agredido por ele, xingado por ele. Entramos no carro, trocamos algumas palavras (a voz daquele homem estremecia as partes ocas do meu corpo, que eram várias), e esperei a primeira sinaleira. Pus a mão na sua coxa direita. Ele não se mexeu, e o sinal continuava vermelho. Apertei sua coxa direita. Ele continuava quieto, e o sinal continuava vermelho. Não era possível que ele não faria nada! Abusei: fui deslizando minha mão em direção à sua barriga. O sinal abriu, ele acelerou o carro, eu tirei minha mão por um instante e ele me disse que eu poderia continuar com ela ali onde estava. Eu pedi pra que ele repetisse aquilo, que eu não tinha entendido. Ele me disse que já me conhecia da televisão, que já tinha me ouvido falar em um programa de rádio, que eu era muito mais bonito ao vivo e que eu podia continuar com a mão na sua coxa. Eu perguntei da aliança: era a aliança do pai, já morto, que deu para ele, seu primogênito, para que lembrasse de cuidar da mãe até que ela morresse. Então não havia casamento? Não. E na tentativa de ser odiado, eu acertei minha seta no alvo que eu não queria: o de ser feliz.

E hoje eu também aprendi que ......

É fundamentalmente diferente tirar o pó dos meus móveis hoje do que foi tirar o pó deles quando eu recém cheguei aqui onde moro, há 9 anos. Porque pó, pó mesmo, esse grosso e ruidoso pó que quando cai e assenta sobre meus móveis faz aquele estrondo de madeira caindo, esse pó pra mim não existia. O pó que se coloca hoje sobre meus móveis, camadas arqueológicas de meses sem espanar: esse pó não era pó há 9 anos. O pó de hoje fora rocha, depois pedra, depois pedregulho, depois pedrinha, depois chão batido. O pó de hoje me é totalmente estranho e estrangeiro. Amigos me aconselharam a manter as janelas do apartamento sempre fechadas para que o pó não entre. Meus amigos e minhas amigas não vêm mais me visitar porque as camadas de pó dentro do meu apartamento só me permitem entrar e sair dele, e circular aqui dentro com certa dificuldade. Minha autoestima, por exemplo, precisa dormir na sacada porque não há mais espaço entre as camadas de pó que eu fui deixando cair sobre os móveis da minha casa. Os móveis mudaram de 9 anos pra cá: novas estantes, novas televisões (4 no período de 8 anos, média de 1 a cada 2 anos, sou pequeno-burguês classe média). Novos computadores (6 novos, contando com 2 notebooks). A cozinha foi toda refeita. A área de serviço também. O quarto se mantém pelo roupeiro – que é um dos móveis que mais acumula pó. E a sala se mantém pelo sofá, que é o mais desconfortável que eu conheço. Pessoas fogem do meu sofá só de ouvir falar que ali onde agora se vê marrom já foi branco um dia (não há 9 anos, mas talvez há 11 ou 15 anos). Hoje meu banheiro foi reformado e ganhou rejuntes brancos novinhos. E um novo cano para a descarga do vaso sanitário. Plantei flores nos espelhos, e das centenas de livros que tenho aqui eu fiz quatro pés de uma mesa de centro com tampão de vidro grosso que se apoia nos pés feitos de livros. À mesa sentam até 13 pessoas: minha Santa Ceia particular, com direito a Judas Iscariotes e água em vinho saindo das torneiras das pias, do chuveiro e da descarga do vaso sanitário – pelo menos foi isso que me garantiu o rapaz que veio reformar meu banheiro. Tem coisas que até deus duvida. O teu deus, e não o meu deus ou minha deusa - porque o teu duvida de tudo. O meu deus ou a minha deusa sabe quem eu sou.

E hoje aprendi que .....

É fundamentalmente diferente voltar caminhando pra casa pelo lado da calçada da avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, que costeia o parque da Redenção ou que margeia o comércio, residências dos bairros Centro e Bom Fim. Nunca se encontram os mesmos carros, nem os mesmos corpos. A luz do sol é diferenciada: ela incide mais perpendicularmente do lado do comércio e das residências que do lado do parque. O clima nunca é o mesmo, pois posso escolher chegar em casa suando em bicas ou morrendo de frio. O clima sou eu quem faz e pra isso basta eu escolher a roupa e o ritmo com que quero voltar pra casa. As pedras nas quais eu piso, a folha da árvore que cai no meu rosto: nada é igual àquilo que foi na semana passada, nem no dia de ontem. Porque ontem não me caiu uma folha no rosto: ontem eu não tinha rosto, e nem havia ali uma árvore. Porque ontem eu fiz um percurso por cima dos coqueiros da Osvaldo Aranha, saltando de copa em copa. Parei instantes ali em cima dos coqueiros para admirar o parque, o Auditório Araújo Vianna, e lá adiante o sol que já se punha. O sol estava verde ontem, retangular. Eu estava nu para fazer fotossíntese. Quando cheguei em casa, fui bater uma massa de bolo e distribuí, depois de assado, aos/às moradores/as de rua que se avolumam aqui por perto do Supermercado Zaffari e do Hospital de Pronto Socorro. Fiz quatro formas de bolo. Faria mais se minha cozinha suportasse, mas como conto apenas com um fogão à lenha no meu apartamento de um quarto no bairro Bom Fim, precisei racionar minha vontade de ser caridoso.

Assim, de repente, uma lucidez

[...]asa e tinha aquelas ligações. E pra mim ficou tão claro o abismo, o penhasco do qual me joguei. Queda livre. Voltei pra casa sozinho naquela noite, fiquei no bar levantando o copo de plástico cheio de cerveja. Não dancei, não circulei, não compactuei com aquilo. Eu estava incluído naquele espaço para ser dele excluído: para servir de exemplo daquilo que não poderia ser possível ali dentro. Exemplo daquilo que seria rechaçado ali dentro. Eu era um limite: meu corpo era uma fronteira. Um monstro. De mim ninguém poderia passar. Não! Claro que não! Não dói nem cheira mal. É só um lugar estreito, não dá pra se mexer muito. Tem que controlar a respiração pra não colocar muito ar pra dentro dos pulmões, senão quebro os ossos da costela. Nem posso piscar muito, senão meus cílios roçam nas paredes e caem. Não dói nem cheira mal: só tenho que ficar quiet[...]

Interstícios

[...]ei no quarto e senti um cheiro forte de cigarro. Pode ser da noite anterior? Não sei. Eu não fumei, mas os outros fumaram bastante. Eu só bebi bastante, como se isso fosse “apenas” algo, “tão-somente” beber. Beber já é muito. Fiquei pensando: voltei sozinho. Era de manhã cedo já. Dobrei a esquina e nem tinha mais luzes acesas na rua. Só aquela luz natural radiante do início do dia. Lembro de trechos da noite passada, pequenos e curtos trechos, pessoas aleatórias. É isso que quero? Lembrar de recortes das pessoas? Talvez sim, porque lembrar de tudo sempre, viver sóbrio, isso é muito chato. Ainda sinto o cigarro. E sinto também aquele peso de saber que a próxima semana é dura, cheia de trabalho, cheia de leões pra matar, e mato. Matar um leão já é muito, mas mato vários. Tem que escrever, pensar, falar, comandar, açoitar, dizer “sim”. Não sei se concordo com a Clarice quando ela escreve que “tudo no mundo começou com um ‘sim’”. Um “sim” bem dito também fecha portas – as minhas estão a sete chaves, eu vivo a dizer “sim”. Dia desses eu disse um “não” bem sonoro, e a partir dele todo um mundo novo se abriu. Encontrei teus olhos ontem andando pela rua. Acho que eles não me reconheceram. Concordo com a Clarice quando ela escreve que “desistir é uma grande responsabilidade” – e bebo, bebo muito. Já bebi menos, mas eu fumava. Desisti de fumar e ainda não desisti de beber – porque ficar sóbrio o tempo todo é muita responsabilidade. Meu ponto ótimo pro álcool é quando começo a esquecer. E esqueço. Esqueço porque desisto. Quanta responsabilidade, né? Ele só balançava a cabeça concordando com tudo, quanta superficialidade, ali ninguém se afoga, ele é muito raso. E foram nesses pequenos vacúolos, lagunas vazias, que desisti e quis recomeçar. Quanta responsabilidade essa, a de recomeçar. Éramos tão bonitos juntos. Mas fui muito além, lá onde o ar é rarefeito, e ele não pôde me acompanhar. E haverá alguém pra ir até lá comigo? Eu vou andando e não levo as pessoas pela mão junto comigo. Acontece de elas se perderem. Não, eu não me perco das pessoas, eu nunca as encontrei de verdade, com sinceridade, com vontade de estar com elas. Nunca quis estar com as pessoas, portanto eu nunca desisti delas. Vivo nadando nessas lagunas vazias, nesses interstícios vazios. Talvez seja por isso que bebo tanto: porque são lagunas demasiadamente vazias. E foi-se embora tudo que de novo havia em mim: mais uma ressaca, mais uma dor de cabeça, mais um domingo vestindo pantufas e moleton velho, Bach com suas suítes para cello, silêncios entre as cordas: minhas lagunas vazias. Tudo o que há de melhor em mim está escondido, submerso nas lagunas. Nas lagunas vazias e nas ilhas desertas. Longe dos grandes continentes. Era só jogar um beijo, escrever uma carta, dar um sorriso: me escorar na parede, ou na porta recém fechada, e ir escorregando até o chão, me deitar em posição fetal, pedir pra nascer de novo. Não há iceberg que consiga existir nas lagunas vazias. O horário da minha morte será 20:43 – sempre olho no relógio e vejo esses números. Se eu puder programar minha morte, planejá-la, desejá-la, eu queria que ela me chegasse às 20:43. A morte não é o total assujeitamento ao poder, mas sua mais radical resistência: uma desistência radical, um partir, um abrir ou fechar de portas, pequenas mortes com a cabeça escorada no teu peito e tu me dizendo “vai ficar tudo bem”. Eu poderia morrer ali mesmo, encostando na tua camiseta branca de ontem à noite. A palma da minha mão na tua barba cerrada, e eu te dizendo “isso vai ser ruim pra minha autoestima”. Só precisa de autoestima quem não tem uma. Se eu for dormir às 22:00, acordo amanhã às 06:00; se eu for dormir contigo, te prometo um sono tranquilo e sonhos de conforto. Não precisaremos acordar nunca mais. Eu queria um beijo, um teu e outro dele, e dos dois, tão grandes e tão altos, tão bonitos, e eu ali entre os dois um pouco envergonhado por ser o mais baixo e o mais magro, por ser o mais represado. Tão altos e tão bonitos. E se a gente fosse caminhando até ali, ó, onde tem uma curva e um escurinho, ali num canto da casa, será que ali vocês não me dariam um beijo onde ninguém mais vai ver, além de nós? Vocês esqueceram que quiseram me beijar? É um direito que vocês têm. Eu vou procurar cultivar e preservar pra sempre a proximidade da minha cabeça ao teu peito, a proximidade do meu antebraço ao dele. E os pelos se roçando, as barbas se eletrizando. Toda a vez que clico em “entrar” aparece a frase “não há mensagens novas”: não há nada de novo, nenhum corpo, nenhum beijo, nenhum peito onde eu escorar minha testa. Às vezes o toque me satisfaz mais que uma jura de amor ou um presente caro. Vem dormir comigo? Se eu te chamar tu vem? Talvez só nascendo de novo, né, talvez só morrendo com hora marcada e renascendo. Porque eu nunca vou ser assim. Talvez só ocupando esses espaços todos, preenchendo os interstícios vazios, afirmando e encarnando o corpo; talvez só dizendo “sim” a tudo aquilo que sou e que nego, que escondo, do qual me esquivo; talvez só assim pra eu chegar a um ponto próximo da altura de vocês. Talvez só odiando o corpo, torturando o corpo, mutilando o corpo. Ninguém visita, ninguém comenta, ninguém curte. Talvez só fumando, ou bebendo mais[...]

As razões porque sou mais feliz sem ti

[...]é sobre os porquês de eu ser tão mais feliz sem ti. Hoje eu estava no ônibus e vinha pensando nisso: sobre como eu sou tão mais feliz sem ti. Tu foi só o pó que eu espanei de cima de mim.

Não precisar discutir assuntos circulares que acabam retornando sempre para o mesmo ponto inicial, sem alterações de rota. Colocar sempre os mesmos questionamentos, e escutar de volta sempre os mesmos argumentos. Tudo vindo de ti é sempre a mesma coisa, tudo vem sempre da mesma forma. Tudo emana de um mesmo centro desequilibrado e instável, nervoso e ansioso, perturbado com as coisas do passado. Não ter que debater sobre as possíveis traições que tu vê em mim, mas que na verdade são as tuas próprias que tu cospe e cola em mim como sendo minhas por excelência. Não ter que me satisfazer com frases que encerram uma discussão com um ponto final que tem peso de bigorna, peso de verdade, e uma verdade que é tão tola quanto tu: “nós somos muito diferentes”.

Não ter que achar justificativas discrepantes para explicar o que não precisa ser explicado, mas que tu exige que seja unicamente porque tu é um poço de insegurança e infantilidade. Porque tudo e todos te ameaçam, inclusive eu e minha roupa, eu e meu perfume, eu e meus olhares, eu e meu rosto, eu e o tom da minha voz, eu e meu sorriso. É preciso justificar sempre a razão pela qual tu acha que eu estou bonito, e daí é preciso sempre esconder ou dissimular essa suposta beleza para que ela não chame a atenção dos outros. Pois, do contrário, sou eu que estou me oferecendo, e isso é insuportável pra ti. Minha simples existência já é uma ameaça para todo esse mundinho pobre no qual tu vives, e eu não vou me desculpar por ter chegado até aqui da maneira com que cheguei. E te lanço um desafio: vou muito mais além ao ponto de tu me perderes no horizonte magro da tua vida.

Não ter que achar engraçadas tuas piadas, simpáticos os teus amigos, amáveis os teus familiares. Porque eventualmente o são, mas também às vezes não. E porque toda a realidade na qual o teu corpo vem envelopado não é feia nem bela, nem pior nem melhor que a minha: é outra e de uma outridade tão radical que eu sequer entendo o que faz possível eu escrever isso tudo – como se eu pudesse entender a tua realidade, como se eu pudesse analisá-la para apontar aqui e ali e isto e aquilo como sendo as nossas discrepâncias. E não posso. Não tenho acesso à tua realidade, e pra mim a tua realidade não é nem material. A tua realidade não importa e não importa porque meus parâmetros para aferir algo como sendo “realidade” simplesmente não se encaixam nisso que tu chama de “teu mundo”. O “teu mundo”, isso que pra ti é a realidade concreta na qual tu vive, é pra mim o mesmo que um pé de alface, o mesmo que um avião cruzando o céu num dia aberto de sol, é uma nota musical ou o sentimento de desolação por passar cotidianamente pelo morador de rua que dorme ao relento. Isso que tu chamas de “teu mundo” não é mundo pra mim. É outra coisa.

Não ter de elogiar teu corpo repetidas vezes como fazemos com um bebê que recém aprende a falar, ou como fazemos com um cão que está sendo adestrado. Porque no teu caso não é uma pedagogia da recompensa, mas uma pedagogia da alienação voluntária. O teu corpo, assim como o meu, já está em processo de degradação – e vê-se pelas rugas, o tempo está sendo implacável contigo – e não há o que fazer contra isso. A tua obsessão em obstaculizar a passagem do tempo só te dá um aspecto mais anacrônico do que tu já tem. Cansei de dizer ao pé do teu ouvido, na cama, com a luz já apagada, que eu te achava lindo e que era feliz ao teu lado. Sim, eu menti. E menti porque queria que desse certo. A gente mente quando quer que algo dê certo, e eu não vou cometer mais esse mesmo erro. Só não menti quando eu disse que não era pra sempre, que eu não queria passar o resto da minha vida contigo. Porque o resto da minha vida é demais pra te dar. O resto da minha vida é só meu e é muito precioso, não quero dividi-lo com alguém que precisa de fraldas psicológicas diárias, de drágeas de elogios para poder se medicar contra o horror do tempo que toma conta da carne e que faz envelhecer.

Não ser obrigado a fazer fechar horários de agenda com as ligações ao meio-dia. Não ser obrigado a encontrar teu corpo toda a noite. Não ser obrigado a sorrir quando tu achar que eu devo sorrir. Não ser obrigado a conviver com pessoas que pra ti são importantes e que pra mim são apenas mais corpos no mundo que me roubam espaços, oxigênio, água e comida – veja, pra mim eles não são nem “alguém”, são apenas “corpos”. Não ser obrigado a beber de forma comedida, a falar como homem, nem a recusar viagens. Não ser obrigado a fazer escolhas em nome de um “nós” que se resume às tuas vontades e que jamais me contempla. Não ser obrigado a acreditar e a promover um “nós”. Não ser obrigado a abrir mão do “eu” - que por mais dócil e governado que seja, ainda sim é isso que sou e é a única "coisa" que vai ficar comigo até o fim morno da morte.

Pensar que não estou mais contigo e sentir um alívio feliz e reconfortante por não estar mais contigo: já vale a pena ter dito “chega”[...]

Frio e cruel

[...]edo, medo frio e cruel. Psss! Não posso falar alto, eles vão me escutar. Eu tô com medo, e é frio e cruel. Eu ouço estampidos surdos, assim, POC, de rolhas desprendendo de garrafas de champagne. Escuto a noite toda – será que eles brindam o meu medo? São frios e cruéis! Não, não chama ninguém! Não chama, e fala baixo: eles podem escutar. Mas não é isso que me dá mais medo: o que me assusta é o som do balanço, balanço de ferro de parque de diversões, indo e vindo indo e vindo indo e vindo. Sempre, como se tivesse alguém ali se balançando. É. E há gotas, em algum lugar aqui tem uma goteira, uma torneira que não tá bem fechada. Que pinga. PLIC, PLIC, PLIC. Não, todos se foram, todos já foram pegos, só sobrou eu aqui. Ninguém voltou. Fala baixo porque eles podem estar aí também. Eles são frios e cruéis, esses sonhos que tenho, esses meus mundos, meus personagens: frios e cruéis. Psss! Eles falam alto! Sorriem, e os olhos deles viram apenas riscos nos rostos quando sorriem. Eu tenho medo deles, acho que eles me trancaram aqui. Eles me dão medo, um medo frio e cruel. Como é que pode terem saído de mim? Escuta, escuta! É uma chave em alguma fechadura! São eles, eu sei que são, estão vindo pra me pegar! Não chama ninguém, não. Eu vou tentar me fingir de mor[...]

Um epílogo

[...]orpo um epílogo? dá? tentarei.... mas não será a morte... será? Não! Porque ele se deleita no que o dinheiro traz. E traz. Mas eu trago outras coisas, e ele traz também outras coisas, e ela, e eles, e elas, e aquilo lá, e aquilo não sou mais eu, e está aí no corpo dele. Uma coisa que não sou mais eu - que corpo lindo, a postura, os pés no chão, o modo com que marcha, os dedos dos pés que pisam o chão [não propriamente os pés, mas os dedos dos pés]. Lindo. Só descobrirei depois - mas já te denuncio. Belo! Um corpo que grit[...]

Um capítulo

[...]riar um! Crio agora mesmo... a feição do rosto, o modo com que agarra os travesseiros e chora, pedindo pra não ser isso que é. Vou mais além ainda: crio o movimento dos dedos dos pés, e os próprios pés, lindos, alvos, vejo suas veias, dedos longos, unhas bem cortadas. E ele pede pra que isso não seja verdade! E chora! Mas é verdade. Ele um dia vai me ter, justo eu, que não penso em tê-lo hoje. Sou o Deus do meu destino porque desenho o que eu mesmo não desejo: já o prevejo. Cabelos ruivos, barba ruiva, olhos orientais. Eu não sei que os quero: mas eles já me querem. Eu sei, mas esse eu ainda não o sabe. E eu serei tão feliz... E derrubas um vinho na minha camis[...]

Minhas histórias

[...]édio. De levantar e ter que levar adiante sempre as mesmas discussões. E ver que as pessoas – inclusive eu mesmo – emperram sempre nas mesmas reentrâncias. E que se perdem por lá, meu deus, como pode? Tédio, tédio, tenho sido a pessoa mais tediosa que conheço. Mas meus momentos de prazer, ai que medo deles! Não são de luxúria ou de orgia, quer dizer, até o são, mas também são de um platonismo e de uma distância astronômica entre o meu corpo e os dos outros. Pode haver orgias em distâncias tão galácticas? É que vou me entediando das pessoas e de seus corpos, sempre perdidas nas suas reentrâncias, e corpos sempre rodopiando em suas próprias curvas... E eu vejo filmes, e eu ouço músicas, e construo aí meus mundos, minhas histórias que se conectam muito vacilantemente com este mundo material do qual sinto tédio, um fio fraco liga aquilo que sou nas minhas histórias àquilo que sou na minha matéria.
*
Desde muito pequeno eu aprendi a falar sozinho, mas não porque eu tivesse muito o que dizer e poucos pra quem falar; mas porque eu não podia falar, em nenhuma instância. Pra não morrer de tédio, naquele silêncio tedioso e preocupante que circunda crianças muito ingênuas, eu inventei meus companheiros e minhas situações, minhas escolhas, inventei até corpos e tempos diferentes, e falava falava falava. Eu falo muito mais sozinho. Mas daí que veio essa tradição, essa prática de inventar histórias pra mim. São fugas, sim, são escapismos, digressões. Só recorro às minhas histórias quando aqui na matéria está difícil de levar as coisas como elas se apresentam.
*
Eu invento tudo, desde as justificativas até as genealogias, os desencontros, os trejeitos, os tons de voz, os olhares retos e os dissimulados, as roupas, as razões, os porquês dos medos. Tudo é de minha autoria. É um mini-mundo, um outro-mundo, um recorte do mundo onde me alojo para dormir. Normalmente reservo a meia hora antes de eu dormir para consubstanciar as minhas histórias. Não conto carneirinhos; conto histórias para mim, sobre como eu poderia ser diferente, sobre como eu poderia ter nascido em outras épocas, em outras dimensões, em outros corpos, sobre como eu poderia ter outras habilidades e outras dores, outras penitências, outros obstáculos, mas também outras delícias e outros prazeres, outros sorrisos. Há noites em que demoro horas arquitetando meus mundos, porque leva muito tempo e exige muito esforço. Há outras noites em que vinte minutos me bastam pra eu cair no sono – e fico torcendo para que nos meus sonhos eu continue nessas minhas viagens lindas por outros-eu. O problema é que raramente eu lembro dos meus sonhos, será isso um sinal?
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Nas minhas histórias não há nenhum tipo de tédio. São emocionantes como os filmes e as músicas que as inspiram. Os romances dos meus mundos são belos e forçosos, construídos a marteladas mediante crises e conquistados depois de muito embate. No fim, os corpos sempre vencem. Não há término para o número de histórias que contei sobre os diferentes eus que criei, e nem quero que haja. Quero majorá-las, incrementá-las ainda mais. Somente agora, com quase trinta anos, eu vejo que minhas histórias acabaram por se converter num modo que tenho de levar a vida. Não há como prescindir delas à esta altura – e como a idade vai pesando: já começo a me conformar com aquilo que sou, que tédio!
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Hoje mesmo experimentei uma delícia, que foi acordar antes do despertador tocar e permanecer na cama dando continuidade à história que eu criara na noite anterior. A cama quente e macia, os travesseiros bem colocados debaixo da minha cabeça e eu deitado de bruços: é o retrato do máximo conforto que já experimentei! Ali nessa posição eu fechei os olhos e criei criei criei minhas histórias, fantásticas e cheias de luz, cheias de mágica, cheias de sedução, e eu já não precisava mais me preocupar com o horário que eu deveria acordar, pois eu já estava acordado. E eu sou tão bonito nas minhas histórias, sou tão íntegro e justo, sábio, tranquilo, cheio de qualidades e virtudes: sou tão não-eu. Me agarro nos travesseiros e crio crio crio. Aí o despertador tocou. E me deu um tédio de ter que levantar da cama e ir encontrar as mesmas pessoas com seus mesmos ranços, suas mesmas dificuldades, perdidas nas mesmas reentrâncias – inclusive eu.
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Não é que as pessoas sejam más, nem eu sou mau (não de todo mau, pelo menos), mas somos repetitivos demais! É por isso que gastei e vou continuar gastando o dinheiro que ainda não tenho pra comprar roupas novas: porque quero outra casca, ao menos uma nova casca. Novos perfumes (comprei três vidros), novos tênis (pra pisar em diferentes chãos). Para cada nova história, um novo corpo. Não, as pessoas não são más, e várias até me surpreendem, me tomam por onde e quando eu não esperava, e isso me dá uma alegria louca. Eu gosto das pessoas, não vá achando que sou um ermitão autista psicótico que cria fantasias para fugir de uma realidade que lhe parece áspera. Talvez um pouco de cada (de ermitão, de autista e de psicótico), mas são esses meus temperos, meus sabores. Eu gosto das pessoas, e talvez seja por isso que elas habitam tão densamente essas minhas histórias: eu nunca estou sozinho nelas. Mas é verdade que nesses dias difíceis eu conto as horas para tomar um banho quente à noite e me deitar na cama, apagar a luz, agarrar meus travesseiros e criar mais um capítulo, com novos personagens, para um outro-eu: tediosamente sempre a mesma coisa, à noite e agora também pela manhã, pequenas doses de escapismo onde eu posso me recarregar de encantamento e voltar para a matéria. Um tédio alegre, um tédio voluntário, um tédio desejado, embora ainda sim um t[...]

Por que me perguntas?

[...]ifica não ter medo de dizer, de falar, nem mesmo de pensar. Só estar lá parado, pensando aquilo, despindo o corpo dele, já é um ato de profunda revolta, de transgressão. Só eu sei o quanto isso me custou, o quanto de suor eu precisei exalar pra me permitir imaginar aquela imagem. E vem essa gente dizer que isso não é nada? Vem essa gente dizer que a vida dela, de tantas outras, não era lugar pra isso? Vem essa gente dizer que ela não poderia ter escrito isso que ela escreveu porque ela “não viveu na pele”? “Como perguntar não ofende, qual era mesmo a orientação sexual dela”? É muito pobre, é muito triste, é muito mesquinho. E pra você que escuta e concorda: é também pra você que eu reservo o meu “vá se foder”[...]

Morreu de tanto viver... [in memoriam Márcia Arán]

Detesto reticências – odeio. Mas as coloquei no título porque trazem aquele silêncio que antecipa uma lágrima esquerda, depois uma outra, à direita, sobre os cílios inferiores. Porque os três pontos podem ser também três lágrimas, ou muitas mais, e então é meu título que chora. Meu título chora.

Hoje morreu de tanto viver, de tanto viver, uma pessoa que eu jamais imaginei sofrer de uma doença terminal. Hoje morreu uma pessoa que eu jamais quereria saber morta. Hoje morreu uma pessoa que me ensinou, que me fez aprender, e aprender a pensar, que me devolveu o encantamento pelo estudo, que me foi gentil no momento em que eu precisava de aspereza e de disciplina [não, não acredito que seu pulso ficaria cerrado para um murro e que sua voz se elevaria para uma discussão], que não odiou o meu corpo nem minha voz nem meus cabelos, que aliás não odiou nenhum corpo, e que escreveu lindamente sobre o corpo de outras pessoas que vivem sem ter um corpo previsível. Ela fez poesia sobre os corpos imprevisíveis e imprevistos. Hoje morreu um corpo, mas toda a beleza daquela pessoa nos tocou de alguma forma, e ela ainda vive em nós, apesar da morte do seu corpo. Sua morte dói, e até causa um redemoinho momentâneo de revolta por ir-se justamente aquela que não precisava (que não deveria!) ir-se de nós; revolta por saber que ela se vai e que ficam aqui entre nós muitos outros corpos mesquinhos, vis, muitos outros corpos cujos egos não lhes cabem de tão grandiosos [pobres corpos que carregam, como camelos, os egos de quem se leva muito a sério]; redemoinho de saudade por não termos podido levantar a mão em sala de aula para fazer uma última pergunta sobre aquele último texto, sobre aquele último conceito, uma última pergunta sobre aquele corpo. Porque se soubéssemos que hoje morreria esta pessoa, não teríamos chegado atrasados na sala, nem teríamos deixado de ler sobre os corpos. Ou teríamos lido mais, muito mais, e teríamos pedido pra que esse corpo que morreu hoje ficasse um pouco mais, tirasse mais uma dúvida, esclarecesse sobre mais outros corpos dos quais gostava tanto de escrever. Ou, talvez, tenhamos aproveitado tudo na medida certa, a medida certa que essa pessoa viveu até hoje.

Se é verdade que o mundo ficou mais pobre, e que talvez eu, assim como muitas outras pessoas, tenha morrido um pouco junto com este corpo que morreu hoje, também é verdade que o toque de vida que ela nos deu quando viva impulsionou e potencializou muito do que fizemos e muito do que somos hoje. Se morremos um pouco junto com ela, também afirmamos nossas vidas junto com a dela, e através dela: ela me ensinou a não ter ódio do corpo, do meu corpo, de nenhum corpo, e me ensinou a estudar o corpo para celebrá-lo. Ela uma vez me disse que eu era um ótimo aluno: a ela sou grato por ter visto em mim um corpo e uma pessoa que eu jamais supus existirem.

Esta homenagem póstuma deita com carinho as memórias que tenho dos dias que compartilhei da presença viva, fulgurante, desta pessoa que, sem modéstia, mudou minha vida. Este corpo que amanhã será velado é só uma reticência do que ela foi em vida, nas nossas vidas – é nas nossas vidas onde ela ainda vive, já sem seu corpo.

O coelho vai dar um pulo

Sempre começo comendo coelhinhos de chocolate pelas orelhas: eles não gritam de dor. Quanto a mim, reajo a qualquer dor do corpo como uma potencial doença – talvez porque me ache desde sempre doente, doente de uma síndrome que me atravessa os olhos, a espinha, a barriga. Tenho medo desse ódio que sinto do corpo, do meu corpo, e temo que ele se transforme mais adiante em coisas bem materiais e palpáveis, como um câncer, ou que ele se eleve a um grau insuportável de autonomia e me conduza ao suicídio. Quero passar a gostar do meu corpo, o que fatalmente me possibilitaria cuidar dele melhor. Se o detesto, é claro que o saboto. Sinto que é preciso reiniciar, interrompendo um ciclo que vem de tempos, promovendo uma mudança que busque aquela claridade ofuscante de fechar os olhos. Sinto que mudo de uma ilha deserta para outra: é preciso um novo emprego, uma nova atitude em relação a mim, um novo homem no mundo. Um renascer que não é sinônimo de “começar do zero”, mas um recomeço que leve em conta de modo muito sério tudo o que me trouxe até aqui – inclusive com este corpo, neste estado, com estas dificuldades e com estas belezas. Seria preciso comer meu corpo pelas orelhas. Sinto que algo de profundamente novo está porvir em mim. Sinto que vou renunciar, romper e interromper; sinto que vou largar tudo e me virar. Sinto que vou parar e que vou olhar pra trás, com o vento batendo nos cabelos e com o cenho franzido, e que vou dar de costas para manifestar meu apreço e meu desprezo por tudo, por todos que me passaram, e sinto que vou caminhar adiante. Sinto que vou virar as costas. Cansei de me censurar por dormir demais, de ter pesadelos sobre acordar às onze e meia da manhã. Se o faço, é por pura insatisfação, é um jeito de fugir de ti e deles todos. Mas se eu fugir de vocês, jamais vou me permitir ser surpreendido, ser encantado; jamais vou me deixar ficar apaixonado por ti, justamente por ti, que vem com essa juventude de olhos penetrantes que... me apaixona. Eu decidi que vou fazer as pessoas se apaixonarem por mim e comprei dois perfumes: um para o peito e outro para as orelhas: porque quero que comecem a me comer pelas orelhas.