Z's e S's

Meu primeiro nome é Luiz. Com ‘z’. Sou feito de coisas tolas, coisas poucas que foram se justapondo durante vinte e sete anos, coisas tolas e poucas que foram acumulando como pó e aqui ficaram, a pesar para baixo, formando uma gota. Como, por exemplo, a letra ‘z’ do meu primeiro nome, que é uma tolice. A letra ‘z’ ou a letra ‘s’, a priori, não fariam nenhuma diferença para que eu me apresentasse, mas de qualquer modo todo um processo administrativo foi levado a efeito junto ao cartório em que fui registrado para que se trocasse a letra ‘s’ do primeiro registro do meu nome – o escrivão tinha uma personalidade forte e não deixara que eu fosse Lui’z’ – para transformar-se na letra ‘z’. Te convido para analisar a forma destas duas letras: ‘s’ é suave e curvilíneo, é uma dança no papel e nos dedos de quem escreve, é um caminho sinuoso. ‘S’inuoso. A letra ‘z’ radicaliza as dobras do ‘s’ e cria ângulos onde antes havia curvas. Radicali’z’a. Como disse Deleuze: “Z é uma letra formidável que nos faz voltar ao A”. Ele explica que ‘z’ é o movimento brusco, angular, que deveria preceder ou substituir o Big Bang. “Você gosta de ter um Z no seu nome?”, pergunta a entrevistadora. “Adoro!”, responde o velho com longas unhas.
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Eu também adoro ser Lui’z’. Mas não me incomodaria em ser Lui’s’. Me pergunto, e acho que isso é importante para ti, que não me conhece, se eu seria fundamentalmente diferente se eu fosse curvilíneo. Se eu chegasse numa noite toda negra, em que corpos interagissem e se lambessem publicamente, ou se eu me insinuasse pelos bosques, pelas matas, pelos matos e pelos parques noturnamente, individualmente (eu e os outros corpos, individuais), se eu bebesse e se eu me deleitasse, se eu gastasse o tempo e o dinheiro que tenho e que não tenho, se eu me vestisse e ainda assim me envergonhasse do meu corpo, se eu tentasse e sofresse, se eu tentasse e não conseguisse, se eu fosse o que não sou... Eu seria o quê?
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Não sei, mas definitivamente eu não seria Lui’z’. Viste quantos ‘s’ constam no parágrafo acima? Demasiados ‘s’. E eu não sou ‘s’, sou ‘z’, sou Luiz com ‘z’. Eu vou seguindo por um caminho que muda bruscamente, para outro lado. Não me curvo, não 's'uavizo. É o choque que o ‘z’ causa na escrita do meu nome que me permite chegar a dizer “eu sou”.
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Mas, como eu dizia, sou feito de coisas tolas e poucas. De todo modo, coisas que foram criando tensão sobre a superfície do meu corpo e, então, chegaram ao ponto de dizer “tu és lui’z’”. Não sou eu quem diz, e sim as coisas que me fazem ser quem sou. Tu te interessas por isso? Não sei bem em que momento comecei a te admirar, a te erotizar ou a te desejar. Acho que o verbo é exatamente esse: desejar. De’s’ejar, porque o que sinto vem em curvas, em intensidades de onda, em movimentos curvilíneos por ti. Não sei se é teu nariz em ‘z’, ou teus olhos negros profundos – de cigano? Oblíquo? Dissimulado? – ou se sou eu que me engano. Aposto no meu engano e gosto de acreditar na beleza dos ângulos do teu nariz, de noventa graus, cento e oitenta, nariz de triângulo, de Báskara. Eu ouço uma música que me faz lembrar muito do teu nariz, mas também dos teus olhos e sobretudo das tuas mãos. Oh!, tuas mãos me apaixonaram por primeiro. Quando elevaste teus braços à altura dos ombros, eles em arco na frente de teu rosto, as mãos em frente aos teus olhos – negros, buraco-negro – e os dedos indicadores (direito e esquerdo) encontraram os polegares com uma suavidade que os impediam de se tocar, me apaixonei. Posição de balé clássico. E uns dedos longos, uns dedos alvos, umas unhas bem cortadas, opacas. Dois olhos de buraco-negro entre um nariz triangular e protuberante. E sorriste.
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Teu corpo dançou em ziguezague. A letra ‘z’ em teu corpo e a letra ‘z’ no meu nome. E é impossível que não tenhamos nada a viver um com o outro. Talvez tu com o meu corpo, e eu com teu nome.

as verdes noites do fundo dos teus olhos

Eu sei que não era bom que eu tentasse, que eu insistisse, mas eu pensei “por que eu deveria ficar angustiado por não ter chegado lá na borda, lá no limite?”. E eu vim. Mas agora me arrasto como pano de chão, rasgo como um caco de vidro. Estes foram os melhores e piores dias da minha vida, sem mágoas. Dos melhores e piores não sei se o que restou de mim é o que tenho de mais forte, de mais bonito, de mais duro ou de mais inútil. Isso que sobrou de mim depois dessa patrola, isso não sou eu... sou? Aqui no limite não mora muita gente, mas eu. Alguém mora na borda? Ou a borda foi feita para que seja experimentada sempre do seu lado avesso, sempre como estrangeiro, como forasteiro...
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E aqui mais uma borda e mais uma tentativa, mais uma insistência. E eu penso “por que eu deveria ficar angustiado por não ter virado estrangeiro e forasteiro?”. Vou lá revirar a borda, pôr do avesso o limite (as minhas, os meus [e de arrasto levo dos outros] que eram tão curtos e próximos e hoje se alargam). Mas esse estrangeiro que me tornei, esse exilado – é bem verdade – ele é a parte dura de alguém que já foi mais agradável, porém bem menos aventureiro. Gosto desse exílio, desse estrangeiro, mas o viajante no qual me tornei já não guarda mais nenhuma similitude – aparência, similaridade, equidade, correspondência – com o genuíno e autêntico EU. Só sobrou a parte dura, a casca-do-fora, o bagaço. O sumo se foi. Depois da patrola, o exílio, e só resta a casca-do-fora. "Nunca houve o genuíno", me diz o forasteiro; "não há autenticidade, nenhuma nacionalidade do eu, nenhum eu-pátria", me diz o estrangeiro. O nômade acredita ter raízes na terra apenas enquanto a madeira queima na fogueira, em torno das barracas recém levantadas, depois vai-se embora com as cinzas.
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Eu olhei apenas de relance, não quis me deter. Mas são tão verdes as tuas noites quanto são azuis as minhas? São tão desgrenhados os teus travesseiros quanto são encaracolados cor-de-mel os meus? Não nos demos conta naquele momento, mas éramos forasteiros um do outro. E como nômades que somos, passamos por mim e por ti quase sem debruçarmo-nos mais extensivamente na terra a ponto de fazer fogueira. Não há cinzas de nós. Só verdes noites pra ti, travesseiros platinados pra mim.

Eu não sou um solitário

Numa tarde tão tranquila como esta, eu não sou um solitário. Meus vizinhos não estão em casa – e a criança barulhenta a quem eles deram a luz se foi com eles –, dá pra escutar os pássaros cantando lá longe, assim como se distingue claramente o som do Renato Russo cantando “Eduardo e Mônica” em algum lar próximo do som dos carros passando na rua. Até o som – eu escrevi ‘som’, e não barulho – da geladeira funcionando, até esse som toma corpo. Como companhia, alguns insetos com asas que voam pela casa procurando luz – eu não os mato, nem os esmago, eu os deixo ali como isso que são: companhias. É um dia cinza. É um dia fresco. E nadando nesses espaços e nesses tempos, eu vou me perdendo nas leituras e nos pensamentos, nos sons e movimentos da minha digestão. Não me sinto deixado, preterido, não me sinto indo embora: me sinto chegando, com malas cheias, em uma nova casa como se essa fosse uma manhã de festa – o novo morador recém chegou!
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Há tempos eu vinha observando nas calçadas algumas manchas escuras, como se fossem imensos pingos negros no concreto.
Com o tempo, percebi que alguns desses grandes pingos esparramados nas calçadas traziam rastros de comida não digerida. Tratavam-se, portanto, de vômitos de pessoas, vômitos vomitados ali e que se incrustaram no concreto das calçadas, ao sol e à chuva, expostos à poeira do cotidiano, que traziam os sucos gástricos alheios e esses iam oxidando (?) em contato com o ar: deveras, eram pedaços de corpos que se decompunham e escureciam, marcando o chão.
Eu os observava porque, ao caminhar pela rua, raramente olhava para os lados, para frente e, muito menos, para cima. Eu costumava olhar sempre pra baixo, pro chão onde eu pisava.
E eu ficava recontando as histórias desses vômitos, não porque eu goste de vômitos, mas porque me dava prazer o exercício de contar histórias de pedaços de corpos que eu nunca conheci. Adoro criar histórias, inventar histórias para os corpos e para seus pedaços. Eu gosto de inventar vida.
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Pois bem: sonhei na noite passada que eu chegava no pátio da casa onde eu cresci. O espaço estava bastante sujo, cheio de vômitos e de lixo orgânico que vinha apodrecendo. Eu me pus a limpar o espaço com muita vontade, com muito empenho, e eu não entendia o motivo pelo qual eu empunhava com tanto ardor a vassoura e a mangueira para limpar aquele ambiente. Foi com certo horror, misturado a um sentimento de incompetência, que percebi vermes se multiplicando no lixo e na sujeira que eu me propunha a limpar com tanto esmero. Desisti. Mas antes de ir embora, agarrei um cão ainda filhote que estava ali, sobre-vivendo naquele espaço imundo. Ainda sonhando, dei-me por conta da razão que me fazia querer limpar o pátio da minha casa: era preciso resgatar e preservar o que de vida a ser vivida ainda restava em mim.
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Parei de olhar o chão enquanto caminho. Tropeço, é verdade. Mas não perco, como antes perdia, o tanto de beleza que há ao redor da minha caminhada.
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É a minha história que precisa ser criada.

Indo embora

De repente te rasgam a pele, te machucam, fazem doer. Cospem, dizem fogo. Rosnam, latem e mordem. Depois vem um silêncio, um silêncio tenso, aguardamos outras mordidas. Elas não vêm. Só aquele nada, aquela espera que vai se estendendo.

E passando isso é que a gente sente que tiraram um peso muito grande de cima de nós. Foi dissipado, foi embora, foi levado para outro lugar. O peso tomou corpo e saiu andando. Só, para poder ir embora, não precisava ter rasgado minha pele.

Odiando o que de mim há nela

Tende a continuar. E tende a ir perfurando esse espaço estreito aqui do meu esterno, bem fundo, até me atravessar. A náusea é desconcertante: quando olho o rosto dela, há uma contração involuntária no meu corpo que pede pra colocar tudo de ruim que sinto pra fora.
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Não sei se é pela repulsa que sinto a todas as roupas que ela escolhe colocar – patetiquinhas, ridiculazinhas, infantilóides, abobadas. Ou se pelo tom de voz, pelos trejeitos das mãos e pelos vícios de linguagem. Mas acho que o pior mesmo é ter de ouvir o conteúdo das suas opiniões (nem toda opinião tem conteúdo, as dela têm e são desprezíveis).
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Fico me perguntando, é claro, o que de mim há nessa pessoa tão deprimente: será que, em algum lugar de mim, eu também me ache rastejante? Ou será que em alguma medida eu invejo sua pequenez: essa preguiça indolente, esse atraso no raciocínio, essa satisfação crua com migalhas. Pomba. Ela é uma pomba. No máximo uma foca em cativeiro: se satisfaz com peixe enlatado.
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Será que é a inveja que me corrói? Uma vontade absurda de ser pouquinho, de ser raso, uma vontade louca de ter medo de tudo, de não enfrentar nada, uma vontade eletrizante de paralisar diante de situações que deveriam catapultar. Será inveja, será? Será que eu gostaria mesmo de pouco menos de dois salários por mês, algumas drogas ilícitas para alcançar estados alterados de consciência, bebidinhas, comidinhas e muita reclamação de que tudo é pouco, tudo é insatisfatório, “céus, o que fiz para merecer isso?”. Será mesmo que é o vestido longo da vítima que me cai melhor?
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Seja isso: sinto náuseas ao ouvi-la, ao olhá-la, ao senti-la e então tudo o que sinto por ela é também o que sinto por mim. Não é de todo inverossímil. Mas também não é assim o tempo inteiro. O desejo de ser moderninha é algo tão... velho. O desejo de ser pop é algo tão... baixo. Cool, Cult: ai, que cansaço. Na sua segunda frase já dá pra perceber que se trata de uma adolescente frustrada querendo estender ao máximo sua juventude não vivida para as bordas pós-balzaqueanas. Será que é assim que me vejo: um velho descontextualizado, rasteiro e rastejante como um pano de chão, posando de guri para enganar a si próprio e aos outros ao gritar com todo o corpo “me amem! Sejam meus amigos! Sou simpático! Sou agradável!”.
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O suicídio é um dever. Um dever pra mim, se aquilo que odeio nela é tudo que em mim também está.

Serpentes e toupeiras

Ficamos assim, esperando que um ou o outro se toque, se olhe no olho. Contabilizamos os beijos em tempos de recessão: é necessário poupá-los. Do que serve uma poupança de beijos nunca dados? Se antes, num momento não tão longe deste que estamos agora, nos acomodávamos um na barriga do outro e nos sentíamos em casa, dispostos a contar segredos como se fôssemos amigos, hoje é burocrático, processual, protocolar. Reuniões de pouca pauta e muito falatório, questões de ordem. Muitas diretrizes para regular algo que não existe. Dou o tempo que não tenho, a energia que deveria ser usada para coisas mais úteis, queimo o pouco potássio dos meus neurônios para... menos de um salário mínimo contabilizado em beijos, exatamente. Se tento debochar da minha situação, ridicularizar a exploração a que voluntariamente me sirvo, a censura não tarda: não se pode rir disso, é preciso levar a sério a mesquinharia da máquina, da engrenagem, do sistema. É claro que há alguém mais bonito, mais competente, mais dócil. Uma das crenças que me faz dormir à noite é que, ainda bem, cada um sabe o pedaço de inferno que traz consigo. Ou a sombra que se projeta para fora, produto de um vácuo. Buracos, vacúolos do nada: como serpentes ou como toupeiras, entramos e saímos desses túneis que cavoucamos (eu em ti e tu em mim).

Suor de umedecer a cama

Entrei em pânico, desesperei. Acordei, e os lençóis estavam úmidos, o travesseiro também. Suei dormindo, por calor ou enfermidade, e molhei a cama.

Era medo, angústia, reação química do relaxante muscular em alta dose? Fiquei desnorteado: o que aquilo significava? Talvez eu quisesse dizer algo a alguém, talvez eu quisesse falar algo, ou talvez meu corpo quisesse gritar comigo. Acordei e estava tudo molhado, úmido; tive medo.

Eu tirei todas as minhas coisas da tua casa. Primeiro minhas cuecas de dormir, depois minhas roupas de ir trabalhar. Meus chinelos, minhas meias. Tirei minha foto, diminui a frequência do meu corpo na tua cama. Recolhi meus restos todos e só deixei a escova de dentes. Tu vais dizer que eu estou fugindo, que eu estou indo embora, que eu estou me exilando. Não é verdade. É que penso que o teu espaço tem que ter a tua cara – teus lençóis secos, bem estendidos, fotos tuas e daqueles que entraram e ficaram na tua vida, o teu cheiro, que as tuas roupas reinem uma monarquia morna para elas próprias (minhas roupas não querem ser tuas súditas). Não estou me retirando pra ir embora; estou saindo pra que tu possa ter o lugar que é teu de direito. Vai, guri, vai ganhar o que é teu! Eu não sou teu, eu sou meu. Também se te devolvi as coisas tuas que estavam aqui não foi porque queria que tu fosse embora. Devolvi porque são tuas, tu cuida delas e não eu. Eu cuido das minhas e tu cuida das tuas.

Mas nesse jogo de regiões bem delimitadas, existe a possibilidade de criarmos uma coisa outra, uma convivência nossa, um espaço nosso. Podemos viver, e de um jeito bom, algo a se compartilhar. E esse algo a se compartilhar não vai se colar a espaços ou territórios, não o acharemos em gavetas ou em portas de roupeiros, não vai se aderir a restos de um na casa do outro. Um terceiro corpo (o meu junto do teu), uma terceira vida (a minha junto da tua) não é a mesma coisa que eu deixar de viver a minha pra viver a tua, nem vice-versa. É um processo de criação mesmo, um processo de criação de uma outra vida – a nossa. Se é verdade que tirei aos poucos as minhas coisas da tua casa (tu dirias “até tiraste o teu corpo do meu”), em contrapartida eu te dei a chave da minha casa. Há quem diga que, simbolicamente, te dei tudo que existe aqui dentro; eu não seria tão radical. Mas é fato que te dei confiança de entrar e sair de onde eu moro a hora que tu quiser. É esse passo adiante, de confiar, que eu acho que precisa estar presente no nosso convívio. É isso que me importa, e não coisas móveis, compráveis, transferíveis e deterioráveis.

Não posso deixar de lembrá-lo que houve um dia em que deixamos cair no chão a confiança. Quebrou-se. Eu não tenho problemas com isso: acho que os sentimentos estão aí pra serem quebrados mesmo, pra serem renovados, reciclados, experimentados de outros modos. Não tenho problemas em lidar com a confiança craquelada, rachada, recomposta, à qual sempre falta uma parte. Porque uma vez quebrado, o sentimento é diferente do que era no início. Por mim, beleza. Não acredito em e nem desejo sentimentos puros. Nossa confiança não é pura, ela já foi feita e refeita muitas vezes. Repito: por mim, tudo bem, sentimentos precisam ser recicláveis. O que te estranha é o fato de que fui mudando junto com ela, fui craquelando junto com ela, fui quebrando também. E hoje eu sou um pequeno caleidoscópio em relação a ti: muitos pequenos fragmentos quebrados. Isso não é ruim, não me faz infeliz. Mas exigiu que eu tomasse uma outra postura em relação a ti: continuo te adorando, continuo gostando de ti, agora em milhões de pequenas partes nunca recompostas. Acho que tu não quer isso, acho que tu deseja alguém que seja uma totalidade pura. Eu não sou isso.

É provável que à noite, durante meu sono, eu estivesse tentando organizar meus sentimentos pra poder te fazer entender. Suei pra conseguir! Mas de fato sinto medo que meu corpo esteja arruinado, quebrado, craquelado. Ao contrário dos meus sentimentos, eu não quero um corpo maculado. Não é justo comigo. Eu não escolhi esses pequenos monstros nas minhas veias: foram eles que me escolheram. Foram eles que me procuraram, que me caçaram. Eu estava vulnerável, me fizeram vulnerável e me pegaram. Eu passei o dia inteiro de hoje sentindo medo de ficar sozinho, de ser deixado. Esse é o máximo da totalidade pura que tu pode ter de mim: meu medo.

Medo, mãe

Hoje eu senti medo. Fazia tempo que eu não sentia isso, essa coisa grande e fria, medo. Senti medo, mas não um medo com pavor: foi um medo com decepção. Medo de me decepcionar, medo de ter feito a coisa errada - ou de ter feito a coisa certa, mas de ser agredido por ter feito a coisa certa por aqueles que fizeram a coisa errada. Senti medo de falar, de comentar, de opinar. É muito assustador: ser fulminado, incinerado, patrolado: o que estava em discussão não era o lado certo ou o lado errado (esse era o disfarce do fascismo), mas o que estava e ainda está em jogo são as estratégias de definição daquilo que será considerado certo (a suposta substância do certo) e a definição daquilo que será considerado errado (a suposta substância do errado). É que quem se considera certo também se supõe dono da substância, detentor da essência, possessor da identidade. Senti medo desse jogo de produção de verdade: ele sempre produz pequenos monstros e novos ditadores. Os ditadores dizem "somos democráticos", mas não reconhecem a legitimidade daqueles que estão fora de suas fronteiras. É um fascismo bem requintado: promove suas boas intenções negando aquilo que o define, a saber, a impossibilidade de fazer crescer vida fora dos domínios que governa.