Gestos reticentes e olhares curvos

Ou sobre como relacionar-se com o desprezo alheio. Não foi algo que eu já não esperasse, que eu não contasse, que já não estivesse numa borda de possíveis e previsíveis. Desejei-o, é bem verdade, desejei-o para mim como desejo um beijo e uma sexta-feira. Gestos reticentes porque vazios, mas não totalmente vazios. Essa sua reticência é perversa exatamente porque carrega em si tanto o peso mais sincero quanto a nada, o absoluto nada. Gestos reticentes porque vazios, mas ainda com resquícios. Talvez fosse o caso de falar em gestos de resquícios. Tencionei me agarrar nos resquícios, nas reticências, os longos braços e pernas de pele alvíssima. Da sacada do meu apartamento eu podia ver as veias por debaixo da tez. Translúcido. Mas não insípido. Os olhos azuis. Ou seriam verdes? Vê? Já não lembro sequer da cor do teu desprezo.

E por falar neles, ah! Olhar com curvas. Nem pelo espelho eu te supus linear. Acho que errei, desculpe. Se errei, não há desprezo. Só há engano: enganei-me sobre teus gestos e teus olhares. Pois aí está! Olhar curvo, dissimulado. Não me guarde mal, sou apenas um espírito jovem e casmurro, mesmo não tendo avançada idade.
é só o mesmo fluxo de humanidade, gente, não se preocupem. Brincadeira de criança!
(ai, esse povo quer capa pra tudo!!!)


o teu O.B. é o mesmo que ponho no meu hipotálamo.

Deixe que as estações comecem

Meu primeiro nome é Luiz. Com ‘z’. Sou feito de coisas tolas, coisas poucas que foram se justapondo durante vinte e cinco anos, coisas tolas e poucas que foram acumulando como pó e aqui ficaram, a pesar para baixo, formando uma gota. Como, por exemplo, a letra ‘z’ do meu primeiro nome, que é uma tolice. A letra ‘z’ ou a letra ‘s’, a priori, não fariam nenhuma diferença para que eu me apresentasse, mas de qualquer modo todo um processo administrativo foi levado a efeito junto ao cartório em que fui registrado para que se trocasse a letra ‘s’ do primeiro registro do meu nome – o escrivão tinha uma personalidade forte e não deixara que eu fosse Lui’z’ – para transformar-se na letra ‘z’. Te convido para analisar a forma destas duas letras: ‘s’ é suave e curvilíneo, é uma dança no papel e nos dedos de quem escreve, é um caminho sinuoso. ‘S’inuoso. A letra ‘z’ radicaliza as dobras do ‘s’ e cria ângulos onde antes havia curvas. Radicali’z’a. Como disse Deleuze: “Z é uma letra formidável que nos faz voltar ao A”. Ele explica que ‘z’ é o movimento brusco, angular, que deveria preceder ou substituir o Big Bang. “Você gosta de ter um Z no seu nome?”, pergunta a entrevistadora. “Adoro!”, responde o velho com longas unhas.

Eu também adoro ser Lui’z’. Mas não me incomodaria em ser Lui’s’. Me pergunto, e acho que isso é importante para ti, que não me conhece, se eu seria fundamentalmente diferente se eu fosse curvilíneo. Se eu chegasse numa noite toda negra, em que corpos interagissem e se lambessem publicamente, ou se eu me insinuasse pelos bosques, pelas matas, pelos matos e pelos parques noturnamente, individualmente (eu e os outros corpos, individuais), se eu bebesse e se eu me deleitasse, se eu gastasse o tempo e o dinheiro que tenho e que não tenho, se eu me vestisse e ainda assim me envergonhasse do meu corpo, se eu tentasse e sofresse, se eu tentasse e não conseguisse, se eu fosse o que não sou... Eu seria o quê?

Não sei, mas definitivamente eu não seria Lui’z’. Viste quantos ‘s’ constam no parágrafo acima? Demasiados ‘s’. E eu não sou ‘s’, sou ‘z’, sou Luiz com ‘z’. Eu vou seguindo por um caminho que muda bruscamente, para outro lado. Não me curvo, não 's'uavizo. É o choque que o ‘z’ causa na escrita do meu nome que me permite chegar a dizer “eu sou”.

Mas, como eu dizia, sou feito de coisas tolas e poucas. De todo modo, coisas que foram criando tensão sobre a superfície do meu corpo e, então, chegaram ao ponto de dizer “tu és lui’z’”. Não sou eu quem diz, e sim as coisas que me fazem ser quem sou. Tu te interessas por isso? Não sei bem em que momento comecei a te admirar, a te erotizar ou a te desejar. Acho que o verbo é exatamente esse: desejar. De’s’ejar, porque o que sinto vem em curvas, em intensidades de onda, em movimentos curvilíneos por ti. Não sei se é teu nariz em ‘z’, ou teus olhos negros profundos – de cigano? Oblíquo? Dissimulado? – ou se sou eu que me engano. Aposto no meu engano e gosto de acreditar na beleza dos ângulos do teu nariz, de noventa graus, cento e oitenta, nariz de triângulo, de Báskara. Eu ouço uma música que me faz lembrar muito do teu nariz, mas também dos teus olhos e sobretudo das tuas mãos. Oh!, tuas mãos me apaixonaram por primeiro. Quando elevaste teus braços à altura dos ombros, eles em arco na frente de teu rosto, as mãos em frente aos teus olhos – negros, buraco-negro – e os dedos indicadores (direito e esquerdo) encontraram os polegares com uma suavidade que os impediam de se tocar, me apaixonei. Posição de balé clássico. E uns dedos longos, uns dedos alvos, umas unhas bem cortadas, opacas. Dois olhos de buraco-negro entre um nariz triangular e protuberante. E sorriste.

Teu corpo dançou em ziguezague. A letra ‘z’ em teu corpo e a letra ‘z’ no meu nome. E é impossível que não tenhamos nada a viver um com o outro. Talvez tu com o meu corpo, e eu com teu nome.

as verdes noites do fundo dos olhos em que tu dormes

Eu sei que não era bom que eu tentasse, que eu insistisse, mas eu pensei “por que eu deveria ficar angustiado por não ter chegado lá na borda, lá no limite?”. E eu vim. Mas agora me arrasto como pano de chão, rasgo como um caco de vidro. Estes foram os melhores e piores dias da minha vida, sem mágoas. Dos melhores e piores não sei se o que restou de mim é o que tenho de mais forte, de mais bonito, de mais duro ou de mais inútil. Isso que sobrou de mim depois dessa patrola, isso não sou eu... sou? Aqui no limite não mora muita gente, mas eu. Alguém mora na borda? Ou a borda foi feita para que seja experimentada sempre do seu lado avesso, sempre como estrangeiro, como forasteiro... E aqui mais uma borda e mais uma tentativa, mais uma insistência. E eu penso “por que eu deveria ficar angustiado por não ter virado estrangeiro e forasteiro?”. Vou lá revirar a borda, pôr do avesso o limite (as minhas, os meus [e de arrasto levo dos outros] que eram tão curtos e próximos e hoje se alargam). Mas esse estrangeiro que me tornei, esse exilado – é bem verdade – ele é a parte dura de alguém que já foi mais agradável, porém bem menos aventureiro. Gosto desse exílio, desse estrangeiro, mas o viajante no qual me tornei já não guarda mais nenhuma similitude – aparência, similaridade, eqüidade, correspondência – com o genuíno e autêntico EU. Só sobrou a parte dura, a casca-do-fora, o bagaço. O sumo se foi. Depois da patrola, o exílio, e só resta a casca-do-fora. "Nunca houve o genuíno", me diz o forasteiro; "não há autenticidade, nenhuma nacionalidade do eu, nenhum eu-pátria", me diz o estrangeiro. O nômade acredita ter raízes na terra apenas enquanto a madeira queima na fogueira, em torno das barracas recém levantadas, depois vai-se embora com as cinzas.


Eu olhei apenas de relance, não quis me deter. Mas são tão verdes as tuas noites quanto são azuis as minhas? São tão desgrenhados os teus travesseiros quanto são encaracolados cor-de-mel os meus? Não nos demos conta naquele momento, mas éramos forasteiros um do outro. E como nômades que somos, passamos por mim e por ti quase sem debruçarmo-nos mais extensivamente na terra a ponto de fazer fogueira. Não há cinzas de nós. Só verdes noites pra ti, travesseiros platinados pra mim.

Cartas a uma jovem bicha - conversações

Preciso de tua ajuda. Gostaria muito que tu reapresentasse teu trabalho. Por várias razões, primeiro porque nos falta estudos sobre gênero e sexualidade, segundo porque teu trabalho é politicamente engajado (portanto, peço que mostre imagens que realmente tire o sexo desse pedestal do que não se comenta).

Bem, aceito o convite, claro.
Será um prazer!

Ai, que bom, que bom mesmo que aceitaste o convite. Mas não é pra observar os cânones... Enfim, é algo explicito mesmo.

É pra ser algo explicíto? Afffff, vai ser babado!

Desculpa a demora em te agradecer, mas muito obrigado pela coragem, pela desenvoltura. tava muito feliz com tudo, com o frizzon que teu certo "anti-academicismo" causava; porém, quando cheguei em casa e lembrei que na avaliação deles terá (bom, essa parte logicamente é confidencial) um trecho do Triângulo das Àguas do Caio Fernando Abreu onde um dos personagens narra que relação entre homens é cu e cu é merda - puxando o a referência da Mary Douglas em Pureza e Perigo -, fiquei um pouco receoso porque acabamos desde a fala da G MAGAZINE ( com a referência a iconografica S&M) depois a tua apresentação com um certo olhar ainda exotizante sobre o homoerotismo...O que quero dizer... será, pensando na máxima antropológica, que realmente FAMILIARIZAMOS O ÉXOTICO?

O que é exótico? É exótico pra quem? em quais circunstâncias? Enfim, discordo da "máxima antropológica" de familiarizar o exótico, isso porque o familiar nunca será sempre familiar e nem o exótico será sempre o exótico, não importa o estudo e as abordagens que façamos. Estudar homens gays bebendo urina na internet vai ser familiar ou exótico para as pessoas, assim como fazer etnografia entre índios também será familiar ou exótico. 'Familiar' e 'exótico' como categorias analíticas não têm muita funcionalidade, do meu ponto de vista. Me incomoda um pouco esse imperativo, mas concordo que cada área do conhecimento tem seus cânones e suas prerrogativas. Mais: esses usos dos corpos que apresentei, essas representações disponíveis sobre homens gays, por exemplo (que estão na G Magazine, em 'homem é cu, cu é merda' do Caio F.), elas são objetos de estudo acadêmico exatamente para mostrar que essa categoria a que damos o nome de 'exótico' é totalmente arbitrária. Eu deveria, então, ter começado pelo final, isso porque eu iria falar que aquele jeito de ser homem gay - 'exótico', demasiado "macho mijador" - é uma performance de fachada, "pros outros verem", é uma representação possível e disponível de masculinidade gay que, nem de longe, é alcançada a mantida por todos a todo tempo. Também questiono essa exotização - o processo de tornar-exótico, tornar-diferente - ou ainda o tornar-abjeto, o tornar-repulsivo, o tornar-impensável (que um homem beba a urina de outro em uma latrina.... e que publique na internet!!). A partir de que parâmetros tornamos um corpo, uma sexualidade exótica? em relação a que ou em relação a quem? em quais condições? De todo modo, tu me perguntas, então: de fato conseguimos (ou vocês conseguiram, ou tu conseguiste) familiarizar o exótico? Em resposta, como bom deleuziano que sou, faço uma pergunta ao avesso: se nós conseguimos (vocês conseguiram, tu conseguiste) fazer com que, por exemplo, algum daqueles alunos EXOTIZASSEM seus próprios corpos, seus próprios gêneros e suas próprias sexualidades? Se sim, as próprias categorias de EXÓTICO e de FAMILIAR estarão profundamente desestabilizadas nesses alunos, e isso vai refletir no modo com que eles fazem pesquisa - e no modo com que eles lêem Weber, Giddens, Marx, Rabinow. Do meu ponto de vista, pra que a "máxima antropológica" de familiarização do exótico seja levada a efeito, ela sempre (SEMPRE) tem de vir com a recíproca de exotização do familiar. Se não, corremos o risco de colocar tudo no registro do familiar, daquilo que compreendo racionalmente, daquilo que não estranho, daquilo que me é comum e, no limite, acabamos por ser indiferentes em relação àquilo que familiarizamos. Pense: se algum daqueles guris da aula sentiu-se exotizado em sua masculinidade ao ver aquele vídeo, não estaria a própria categoria de exótico, associada à sexualidade homossexual, implicada numa familiarização? Mostrar as múltiplas maneiras de viver o prazer com o corpo, de representar esse prazer e esse desejo - algo que eu acho que vocês fizeram - múltiplas formas de ser homem e de ser mulher desestabiliza aquilo que tomamos por exótico: se há tanta coisa exótica, será que eu mesmo não sou, no limite? É quase como o conto "O Alienista". Considere ou desconsidere minhas palavras. Sou uma outra coisa - qualquer coisa, inominável -, não um antropólogo. Posso estar dizendo coisas fúteis e superficiais para quem pertence a essa área do conhecimento, eu lançando questões risíveis. E se eu estiver, te autorizo a rir de mim, hehehehe!

Ai.... Como começar? Bom, primeiro é dizer eu que não me fiz claro como deveria, tampouco, fiz jus ao legado antropológico. A máxima do meu campo é sim, essa inevitável via de mão-dupla, "estranhar o familiar e familiarizar o estranho (ou exótico)". E tal reflexão se encontra desde os nossos, por assim, primeiros "manuais" de formação e é repetido insistentemente (a título de exemplo pode-se falar do Roberto DAMATTA em Relativizando: uma introdução à Antropologia Social ou mais claramente ao Gilberto VELHO em Observando o familiar). Portanto, não estamos meeeesmo em direções contrárias na produção do conhecimento. Só fiquei um pouco preocupado, é que pedagogicamente (não sei se o termo é bom) instauramos todo um bombardeamento de assuntos que tangem o homoerotismo que sempre culminavam em práticas ainda mais liminares. Então, numa dupla-negativa podemos ajudar a fortalecer a estereotipização de sexualidades não-heteronormativas como, por exemplo, necessariamente vinculadas no limite a sadomasoquismo ou correlatos.Tua apresentação isoladamente, portanto, nos leva a estranharmo-nos/ familiarizarmo-nos de maneira muito salutar; entretanto, quando penso na trajetória acumulada dessas representações na disciplina suspeito de possíveis efeitos colaterais. É claro que ao suspeitar acabo por pensar essa turma alheia ao que referi acima como práticas limares... E como disseste, liminar para quem? Em que situação? Será mesmo que todos ali são alheios ao mundo que narravas? Ou seja, meu esforço aqui é para dar conta do que nos é exigido ao construir representações para uma audiência especifica (ou falar dentro de uma comunidade de sentidos especifica, que nem é a comunidade antropológica, mas seu embrião). Na real, é um esforço para que o discurso sobre o político que há no fazer acadêmico vá além. Enfim, obrigadão, me ajudou muito.

oi!
tava lendo uma matéria no le monde sobre o aniversário do Lévi-Strauss e lembrei de te responder, hehehe
foste ontem no DaMatta? Eu queria ter ido, mas não rolou.
sobre o caráter exótico das práticas homoeróticas, que pode ser um "efeito colateral" das discussões feitas ao longo da disciplina... bom.... isso é tão difícil de agarrar, de controlar. Como avaliar isso? De fato, é algo que eu tb me pergunto quando vou aplicar prova pros meus alunos. É doido isso, mas eu acho que o importante é colocar a questão pra ser discutida, e não simplesmente não falar nela. Enfim, meu "anti-academicismo" passa muito por ae. É claro que a gente tem que se questionar sobre como, por exemplo, as discussões sobre sexualidade são feitas na academia. Mas eu acho importante que as discussões sejam feitas. Pouco tempo atrás isso era impensável. Sobre os efeitos. O binômio ensino-aprendizagem é tãããão insondável... Sabe-se lá o que a turma acumulou ao longo das discussões. Mas o que acho salutar - o que me orgulhou muito, me lisonjeou, me envaideceu - foi o fato de a minha pesquisa, bastante pouco etnográfica, pôde ser apresentada na antropologia. E eu acho que esse contato com diferentes maneiras de produzir conhecimento, tanto da minha parte quanto da parte dos alunos, é sempre bom. É claro que algumas críticas e desprezos são sempre lançados, de uma direção para outra mutuamente, mas pensemos que isso seria impensável há um tempo. Como tu mesmo sabes, há professores aí na antropologia que não concordam muito com essa interdisciplinaridade; há vários aí que são "essencialmente puristas". O intercâmbio, por si só, foi ótimo!!!

Peço pro tempo correr.

Essas mal tecladas linhas... só pra dizer que eu desejo muito honestamente que essa semana passe, e que chegue a outra, e o próximo mês, e o próximo ano, com suas respostas, portas fechadas, novas e velhas alternativas. Mas, por favor, com o direito à paz, direito a chegar à noite sem a tensão do dia seguinte, sem a obrigação de mais um página escrita e mais um texto lido, sem a obrigação de mais uma aula dada, de mais uma palestra, mais um seminário, mais uma oficina, mais uma reunião. Sem a obrigação de tomar decisões. Deitar no sofá e só apertar no botão do volume. Sentar em frente ao computador e só clicar em conectar. Sexo: aqui, acolá, com ele, com eles, com eles e elas, mas sem a obrigação de atuar como ator pornô. Sem a obrigação de ser super, de ser relevante, de dizer ou escrever coisas inteligentes. Porque não digo, nem escrevo: me esforço, me concentro para dizer e escrever é por isso que me consome tanto essa obrigação. E quase nunca consigo. Só o próximo final de semana, mais uma semana, mais um mês, mais um ano: sem obrigações.

Ingênuo

Eu só queria que desse certo.
Perdão, errei.
Mas tu também não foste o que eu esperava.
Vá, então, nem penso em querer novamente.
E se eu pensasse, seria tão bom quanto nós queríamos?
Pois vá, nem quero. Nem queremos. Nem quiséramos.
Era isso né?
A gente se fala.

Depois de tanto tempo

Só não escrevo aqui porque me falta tempo e iniciativa.
Escrever é sempre um exercício de resolver, elaborar e criar problemas; é o que menos quero agora. Tenho me sentido feliz em limpar meu apartamento com muito desinfetante e álcool (apesar de o álcool não limpar nada, o importante é a sensação de limpeza que ele me dá, obrigado!). Aliás, álcool não só pra limpar, mas também pra desprender, esquecer, fingir que não viu e que não escutou, fantasiar: em suma, acreditar que desinfeto-me por dentro. É incrível, mas na mesma medida em que me sinto intoxicado (pelo álcool, pela gordura, pelo pessimismo e pela derrota [sim, o gosto do pessimismo é tão insuportável quanto o da vodka de garrafa de plástico]), eu desinfeto. Dá pra comer no chão da minha cozinha, tomar um drink no meu vaso sanitário. Queres?
Escerver é sempre isso, essa dor de traduzir. É necessário escrever sobre tudo, o tempo inteiro?
É melhor parar aqui, pois se eu continuar haverá mais problemas resolvidos, elaborados e criados. É o que menos quero agora; estou feliz com os minhas correntes de sempre.

O último

O suspiro que solto no ar quando te vejo é tão degradante!

Cartas a uma jovem bicha – eu sou assim

E se eu choro é porque sou ator, e se eu desejo é porque sou ator também. Eu não posso assim, do jeito que tu quer eu não posso, eu não consigo. O sorriso descarrilhado e os olhos afiletados eu só descobri depois. Mas depois pra mim não é longe, não é inalcançável: eu sei o que fiz, eu sei que eu não quis, e eu não me arrependo. Eu me arrependo, talvez, dessa minha impetuosidade, dessa minha vontade de ser trator. Minhas mãos longínquas, com dedos superlativos, te escrevem isso porque estão desocupados. Porque se tivessem outros corpos pra digitar (que não fossem esses tão solícitos quanto são o laptop [nem tão ardentes quanto fossem meus dedos]) elas estariam calmas e dançantes talvez folheando um livro de Proust ou um livro de ti, mas de qualquer forma estariam aqui e não aí onde tu lês isso que escrevo. E o que fazes aí? Por que motivo não vais ler, ou estudar, ou dialogar consigo? Por que lês isso? Não há nada aqui: só há imitação e deboche, recalque, repressão, mas tudo com um pouco de doçura. Porque sempre lembro de ti e por onde tu andas e por onde tu estás e por onde tu respiras me diga que eu quero saber porque tu me faz falta e teu corpo se encaixa no meu... morreste? Eu pensava que sim. Eu levo comigo um pouco da tua morte? Eu ainda penso em ti, ainda te quero e ainda te procuro nesses outros corpos: cadê teu corpo? Procuro tuas letras iniciais, teus recuos de parágrafos, mas me diz: onde estás? Se soubesses o quanto minhas mãos aracnídeas batem e rebatem nesse teclado negro à tua procura. E isso acontece não porque sou bêbado (também porque sou bêbado, mas acima de tudo porque sou uma lâmina, um filete, uma fatia bem fina [uma coisa delgada através da qual passa tudo aquilo que mais desejo], um sopro e um riso, uma cédula ou moeda que cai do bolso, um esquecimento), elas acontecem porque não há nada. Nada. Nunca houve. Cadê você em mim? Não há! Saia já daqui: não há motivo nenhum para eu me enrolar nos lençóis verdes com perfume amadeirado. As veias que cobrem minhas mãos mantêm a aranha que desliza pela teia das minhas confusões. Te amo mesmo assim. E aí tu estás, não é?!?! Insinuando-se pelas minhas superfícies e se querendo pelas minhas aderências!!!! Te denuncio!!!! Onde vais querer ficar (fica comigo [fica na minha mão, na minha boca] fica no meu quarto), onde vais querer dormir? Sempre dormes comigo de algum modo, mas nunca de um jeito tão traduzido, tão ligeiro, tão simpático. Saia daqui: não há nada pior que um corpo simpático, por favor, saia agora para sempre.

E cabe mais outra pergunta

O que é "ser quem nós somos"?
Qual é nossa identidade? Como ousamos ser - e dizer que somos - alguma coisa?





Me poupem, né?

Álcool

Bebo pra sentir o torpor, pra perder de vista, pra perder o horizonte. Não bebo pelo gosto da cevada, nem pelo gosto do milho fermentado, ou da uva com gás. Bebo porque quero sair de mim, porque quero não ser eu. Há algum problema nisso? Por que haveria um problema - qualquer que fosse - em querer não ser quem é? Há vezes em que não quero ser quem eu sou, e coincidentemente é uma vez por semana, e daí eu bebo. E só bebo. Poderia fazer outras coisas, consumir outras substâncias que - ok! - também dão o mesmo barato. Mas eu, eu mesmo, eu prefiro beber. Pôr pra dentro líquidos. E não sólidos, nem pó, nem fumaça. E daí? Tem gente que deixa de ser quem é atravessando a rua. Outras deixam de ser quem são na internet, usando apelidos. Tem gente que deixa de ser quem é cantando, ou escrevendo... Por que motivo eu sou visto com maus olhos porque tento deixar de ser quem sou ao beber? Cabe a pergunta: "por que deixar de ser quem és?" E retribuo: "que saco ser eu o tempo inteiro!".

Beleza

INTERLOCUTOR diz:
bonita boca que tu tem
jsb diz:
é só uma boca, mais nada
INTERLOCUTOR diz:
é sim
INTERLOCUTOR diz:
mas é bonita
jsb diz:
tenho outras partes mais bonitas
INTERLOCUTOR diz:
por exemplo?
INTERLOCUTOR diz:
adoro partes
jsb diz:
mãos e antebraços.
INTERLOCUTOR diz:
maos...
jsb diz:
adoro minhas mãos.
INTERLOCUTOR diz:
sou louco por maos e pés
jsb diz:
meus pés acho feios, mas mãos acho bonitas.
INTERLOCUTOR diz:
ng é de todo bonito, afinal
jsb diz:
não!! pelo contrário!! somos todos bonitos integralmente. Só há alguns que não reconhecem nossa beleza

Andanças

Alguéééééémmmmmmmm???

Alguééééémmm aí foooooraaaa?

Tá me ouvindooo?

Socoooooorrroooooooo!

......... acho que vou ter que seguir até o próximo vilarejo ....................

(Que parte de mim realmente importa: a voz pra gritar, as pernas pra andar, a saudade pra voltar, o medo de seguir? Do que eu preciso, de que parte de mim eu preciso? Qual delas eu vou ter de arrancar fora? Se eu não tivesse chegado tão longe em tão pouco tempo, acho que me cansaria disso, acho que não seguiria para o próximo vilarejo. Cansei de gritar perdido na estrada e nunca obter respostas. E também cansei de encontrá-las quando eu me satisfazia com minhas dúvidas cretinas, quando eu estava feliz em ser burro. Se eu não tivesse chegado aqui, eu pararia. De que servem minhas unhas bem cortadas e bem limpas em noite de andança de um vilarejo pra outro?)

Drooooga! Quebrei o salto, porra.

Diálogo com cães ferozes II

... não, pessoa feia! Tu pra mim não passa de um amontoado de carne com um belo par de olhos. E o que esse par de olhos claros vê? Nada muito além da autocomiseração aliada a um egocentrismo doente – é claro, achar-se o máximo sempre vem de mãos dadas ao achar-se uma merda. Prefiro ficar com a segunda opção. Ao contrário da maioria, que se seduz pelo sorriso fácil, pelos cabelos que balançam, enfim, pelo belo par de olhos, eu procuro enxergar e ouvir mais coisas a teu respeito. E há tantas, né? Uma pessoa que carrega muitas certezas sobre si mesmo só pode ser pesada e absoluta como tu. Alguém que crê demais nas suas próprias qualidades passa por cima dos próprios defeitos, inclusive acreditando que seus defeitos possam ser apenas deslizes momentâneos, mas nunca erros recorrentes. Tu consegues empregos confortáveis, ajudas gordas, afagos macios por quê? Porque és autêntico? Não. Consegues tudo isso porque te vendes, porque vendes teu belo par de olhos - e outros servicinhos sujos que não vou nomear aqui. E se um dia acordares com uma venda sobre esses olhinhos? E se um dia o botijão de gás explodir no teu rosto? E se um dia alguém rasgar tua boca com uma tesoura enferrujada? Tu és muito mais que o belo par de olhos: e tudo além disso é feio, muito feio. Pessoa feia!

Diálogo com cães ferozes

... não, queridinho! Meu corpo não é fantoche daqueles quem desejo, nem daqueles que me desejam. Meu corpo é só meu corpo, uma extensão de mim, uma coisa de mim, um algo qualquer de mim, mas não é eu. Eu sou outra coisa e outras coisas, eu não mereço – nem tu, queridinho, mas tu és velho pra dar-se por conta – ser escravizado por um, por dois ou por três que me desejam. E tu és um deles. Eu não vou me subsumir àquilo que tu desejas de mim, não vou me transformar naquilo – aquilo, aquela coisa, aquela máquina – que tu tanto quer provar. Tu não desejas aquele que sou, tu desejas aquilo que tu pensas que eu possa vir a me tornar. Vai te tratar! Eu não quero ser aquilo que tu queres que eu seja, eu quero ser exatamente aquele sou e aquele que eu me torno no instante seguinte, no dia seguinte, no ano seguinte! Eu me adoro um ano depois, dez anos depois, bem ao contrário de ti que fica mais e mais triste a cada minuto que passa. Triste e sozinho. Eu não sou uma pessoa sozinha, eu não sou único: sou tudo aquilo que os outros pensam que eu sou – até mesmo esse insatisfeito que tu pensas – e sou muito mais: sou o que penso que eu sou, sou o que eu quero ser já de antemão, sou o que eu não gostaria de ter sido, mas fui um dia. Não, queridinho! Não me sugue pro teu buraco negro porque lá só tem lugar pra ti!

Foi bom

Adorei ter estado lá pela enésima vez mesmo quando lá estive pela primeira vez.
Tem um saudosismo, uma lembrança querida, mas também tem uma mesa branca que baixa os espíritos que tu nunca mais quer ver! Tem uma delícia de pisar no mesmo chão, mas também uma repulsa por tudo aquilo que te fez beber o resto da cerveja nos copos abandonados!
Nada te abandona a esta altura: tu só colecionas ou preferes fingir que não viu, que não escutou...

No blógui com a Madonna - parte III

Cena III – A bicha-mirim junta 6 meses de mesada para conseguir comprar um compact disc. Em 1993, ter um cd player era a coisa mais ultra-mega-pós-moderna de que se tinha notícia. E o primeiro que ela compra é Erotica, nada mais nada menos que Erotica. Detalhe: em sua casa, ela ainda não tinha cd player. A bicha-mirim, persuasiva, consegue fazer com que seu pai prometa que dentro de no máximo quatro semanas tenha uma máquina dessas em casa... Mas nossa heróica bicha não sabia que tinha pela frente uma nota 4,6 em uma prova de matemática da quarta série primária. A professora manda que os pais assinem a prova, pra depois ser entregue novamente na escola. A assinatura nunca retornou. Quando descobre, o pai suspende a aquisição do aparelho. A bicha-mirim entra em colapso nervoso.

Com que prazer, meu deus, aquele cd chegou às minhas mãos. E com que ansiedade eu fiquei à espera do cd player para poder ouvir as músicas que estavam ali. Passando um dia pelo quiosque da Praça da República, vi uma revista ‘Showbizz’ edição especial Madonna no Brasil. Ali estavam fotografias do show de estréia em Londres, ainda em setembro de 1993, e todo o set list da apresentação. Dei-me por conta de que boa parte das músicas estava em Erotica, e que algumas músicas estavam também em Like a prayer. De True Blue, apenas La isla bonita. O desespero foi tal que em menos de 2 meses eu dei um jeito de conseguir todos – T-O-D-O-S – os álbuns anteriores a Erotica para poder compor, pra mim mesmo, o set list do show. Isso, é claro, me obrigou a fazer negociatas pouco honrosas com meu pai, e também vendas de gibis duvidosos para meus colegas de aula. Tudo era pretexto para juntar dinheiro e comprar os álbuns, em cd, que naquela época custavam muito caro (talvez não tão mais caro que hoje, mas enfim, pelo menos hoje temos a internet e a pirataria, salve salve!). E ainda havia outra batalha a ser travada: conseguir permissão dos meus pais para ir até o Rio de Janeiro, no dia 6 de novembro de 1993, no estádio do Maracanã, para vê-la ao vivo. Resultado: até o início de novembro daquele ano, todos os cd’s estavam em meu poder, e eu permanecia trancafiado no escaldante interior gaúcho. Obviamente não obtive permissão para ver Madonna, sob a legação – mais que justa – de que o Rio era uma cidade muito perigosa para uma criança de 10 anos, tendo em vista que recém havia acontecido o primeiro arrastão na praia de Copacabana. Alguns soluços e lágrimas desperdiçados nessa tentativa infrutífera não me impediram de transformar quaisquer arames, bolas de golfe e até mesmo cabides, nos icônicos microfones de cabeça, que saíam da parte superior das orelhas e se insularizavam até alcançar a boca da cantora. Sim: já que eu não poderia vê-la, eu passei a imitá-la, a fazer meu próprio Girlie Show doméstico, exercitando coreografias imaginárias que eu pensava estarem de acordo com os acordes das músicas que eu ouvia, mas sem saber se eram, de fato, as que Madonna desempenhava no palco. Era um exercício de imaginação: ouvir Express Yourself e dali extrair um movimento corporal, uma contração muscular, um passo que coordenasse braços com pernas como se eu estivesse num palco. A mais difícil, a mais custosa, a mais árida música era Justify my Love. Totalmente subjetivado por aquilo que a revista Veja chamava de “o furacão Madonna”, se eu não poderia vê-la ao vivo eu criava sua imagem em movimento em mim mesmo, no meu próprio corpo, na minha sala. Nenhum hermafroditismo: apenas imaginação e heterotopia nas experimentações de mim.

No blógui com a Madonna - parte II

Cena 2 – Estou no ‘recreio’ da aula de quarta série primária de um colégio evangélico do interior do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Comento com uma amiga: “Tu viu que a Madonna vem pro Brasil no fim do ano?”. Ela responde, “Sim!! Minha mãe tem um disco dela!”. Eu comento venenosamente: “Sério? Eu não tenho dinheiro pra comprar um...” e faço uma cara de ‘estou desolado com minha condição’. Minha amiga me responde: “Ah, eu te empresto! Ninguém escuta lá em casa”. Sai a bicha-mirim saltitante pelo pátio do colégio.

Depois de ter passado pela Xuxa e por alguns long play de histórias infantis, o álbum Like a prayer foi o primeiro que tive em minhas mãos de uma artista internacional. Antes dele, apenas compilações de trilha sonora internacionais de novelas brasileiras, cujo pretexto para fazer meus pais comprá-las era porque eu precisava ‘treinar a prática da língua inglesa’, não nesses termos, of course, mas caía como uma luva para meus propósitos. Antes de Like a prayer eu só havia tido contato com ‘O canto da cidade’, de Daniela Mercury. Muito axé pra bicha-mirim. Decidi enveredar para as produções da terra do tio Sam, sempre lembrando com pueril satisfação do videoclipe que eu tinha assistido em 1986, de True Blue.
Like a Prayer foi um Fiat Lux na minha vida. Coitado de mim, com 9 anos de idade, preso a um corpo que não era nem de homem, sequer de mulher, eu escutava aquelas palavras – e não as entendia, é claro – envoltas em melodias tão sedutoras, dançantes, mas dançantes de um jeito diferente do axé de Daniela, dançantes de um modo provocativo, desafiador, e por isso mesmo: múltiplo. Na mesma medida que os jornais – ah, desculpe, no Brasil ainda não havia internet naquela época – publicavam cada vez mais notícias sobre a vinda da Madonna ao Brasil, mais o disco tocava no três-em-um lá de casa. Era luxo total.
O próprio nome “Madonna” começou a fazer sentido, começou a ser algo forte o suficiente para que eu o identificasse num texto jornalístico sem que eu precisasse lê-lo. O ‘m’ maiúsculo e os ‘n’ duplicados saltavam aos meus olhos que, já treinados, aprendiam a caçar por qualquer referência àquela mulher que vinha trazer a diferença, o modo diverso de agir e de pensar, modo diverso e controverso de fazer música, vinha trazer cruzes pegando fogo, um cristo negro em quem ela dava um beijo. Essa era a Madonna que eu caçava nos textos e que eu caçava nos sons do long play, alguém que era capaz de me fazer ruborizar.
Era inverno de 1993, e eu tremia ao ver na TV: “Antártica, uma paixão nacional, traz Madonna, uma paixão mundial”. Lembram?

No blógui com a Madonna - parte I

Cena 1 – Manhã de quase-verão no escaldante interior gaúcho, Brasil. É 1986. A então apresentadora da extinta Rede Manchete de televisão, Angélica, tem em sua mão uma fita VHS e diz: “Galerinha, estou aqui com uma música super legal, que vocês vão amar, toda colorida! É a nova música da Madonna! Sentem no sofá e fiquem pra assistir! Roda VT! (ela pega o VHS e “insere” num videocassete imaginário, dando a impressão para os telespectadores de que a fita vai rodar)”. Começo a assistir ao primeiro videoclipe da minha vida, da canção True Blue. Ao término da música, me tranco no closet dos meus pais, visto um belo scarpin branco, ato um lenço de mamãe em volta do pescoço e passo a imitar freneticamente a cantora estadunidense. Sem ainda ter completado quatro anos de idade, me entrego ao bate-cabelo ao melhor estilo anos 80.

Como, então, alguém que ouve e assiste a Madonna há 22 anos pode não ir a nenhum dos cinco shows que ela fará no Brasil depois de 15 anos de promessas falsas? É o que vou tentar explicar aqui.

They tried to make go to see Madonna, and I Said: NO, NO, NO!!

Mais e mais a cada dia

Ainda sigo tentando cooptar os homens que por mim passam na rua:
Quando percebo que eles vêm, fixo meus olhos por toda sua superfície. Sou alguém bastante visual, me espalho pelos seus olhos-nariz-boca, puxo seus cabelos, mordo suas mãos e roço de leve minha barba pelas suas pernas. Absorvo toda sua raiva ou seu deleite, todo seu desprezo ou sua ingenuidade de saberem ser observados, e os converto em delícias a serem relembradas logo em seguida.
Quando nossas camisetas se cruzam, aproveito todos os milésimos de segundo do seu toque e da insinuação de uma sobre a outra. Guardo as faíscas da fricção para serem usadas comigo mesmo logo em seguida.
E quando finalmente eles passam, fecho os olhos - deixo de ser alguém bastante visual - e procuro sentir seu cheiro, procuro me enroscar nele, saber de que parte do corpo ele vem, mastigo o cheiro e o engulo inteiro. Há vezes em que não são tão bons, há outras em que não duram tanto, mas o sabor de cada um que por mim passa eu jamais deixo de provar... Em nenhuma circunstância.
Hoje pela manhã, enquanto eu escovava os dentes, fiquei feliz quando percebi que ainda me dou ao direito de me iludir. Ainda encaro algumas situações com esperança, e a partir delas fico na expectativa de outras que poderiam se desdobrar.
É bonito isso; iludir-se e esperar, com ansiedade de criança, qualquer coisa que jamais viria.

O chão debaixo dos meus pés


Senti prazer em pisar na calçada cheia de sulcos, nas pedras desorganizadas, nas lajotas em desnível. Até mesmo quando minha cara bateu forte contra o chão, até mesmo aí eu gostei. Tropecei, caí. Mas era o chão, dali eu não passei. Machuquei um pouco o rosto, esfolei de leve minha testa. Levantei e procurei com desespero alguém familiar, alguém pra me dizer que ‘tudo vai dar certo’. E achei, me senti seguro por saber que eu tinha com quem contar. Continuei andando pelo chão cheio de buracos, e uns olhos que de mim se desviaram, umas palavras que saíram pela minha tangente, uns corpos que se insinuaram para longe, tudo me fez sentir triste. E como somos tristes! Fingimentos bem posados podem ser elegantes, mas não são inofensivos. O chão debaixo dos meus pés não era o limite. Há horas em que nem o chão segura, em que não é dele que decolamos, e nessas horas tudo é um colete salva-vidas em potencial para a gente não se afogar no fluxo do medo: uma senhora que me pede dinheiro para poder voltar pra casa, uma outra que lê “Os amores de Sabrina” do meu lado. Um rapaz que se exibe no banheiro público. Um taxista gaúcho morando em Florianópolis. O ônibus que viaja numa velocidade muito alta, o chão da estrada, um noite de pesadelo que não terminou nunca. A minha casa, ahh, eu queria estar de volta na minha casa. Queria trancar a porta e fingir que nada daquilo aconteceu: um fingimento bem posado e bem cruel.

Rostos


B assumiu-se como um corpo dócil, mas não se preocupou em deliciar-se com a dor toda de ser o segundo – depois do A. B assumiu-se naquele momento como corpo dócil, como corpo disciplinarizado e como corpo controlado. Ele não sente dor, ou dúvida, ou debilidade; ele sente apenas confortabilidade, que é de terceira ordem. Imediatamente assumiu-se como um ‘escolhido’, isso porque sua vida quase lhe foi roubada num desentendimento de cores entre o verde e o vermelho. Bacia quebrada, hemorragia arterial, coma, experiência de quase-morte, retorno, re-habilitação, re-inserção, re-humanização. Ouro? Nem tanto. Algumas vezes prata, em outras nem isso. Todo o esforço que fizera em ser aceito e ser admirado era acometido por momentos em que se emperrava na insegurança de um colega ou no excessivo egocentrismo de outro. De toda forma, ali estava com um quarto de século de corpo esguio, com quase dois metros de altura, vários pêlos pelas pernas, alguns na altura do umbigo e peito. Barba cerrada. Um quarto de século de dois por cento de gordura. Um quarto de século de corpo de sucesso? Nem tanto. Articulações comprometidas, comprimento que não cabia em nenhuma cama, calças que não cobriam suas pernas, tênis que lhe apertavam os dedos... a dor e a delícia de pertencer a este mundo depois de ter perdido qualquer referência daqueles que o puseram nele. Morreram numa explosão triste, fogo consumindo o metal, metal se confundindo com a carne, carne irreconhecível entre mais de cem corpos carbonizados num churrasco macabro. Mais uma vez o corpo! O corpo que lhe fugira quando rolou pelo asfalto; que lhe faltou quando vagou pelos corredores da UTI; que era seu instrumento de trabalho para saltar, chutar, parar, gritar; que lhe guardava prazeres inomináveis, porém belíssimos, com um outro colega B que insistia em afundar um círculo de ouro vazado no corpo – não o outro círculo de ouro recheado que ambos perseguiam. E mais uma vez o corpo. O corpo que tinha, que quase morreu, que quase se matou, que quase foi belo, que quase foi ouro, esse corpo que perdeu de onde veio, que não tinha mais pra onde voltar, esse corpo se cansou. A prata foi metal nobre que dialogou com ele – eu trago o mais (des)graçado dos brilhos, com menos graça, porque sou feita do brilho dos teus olhos quando ele te deixa sozinho para adular o círculo de ouro vazado que leva incrustado em seu corpo – e ali se deu por conta que precisava sair do coma mais uma vez. O coma no qual deitara era um imenso rosto, um imenso buraco negro que o capturara. Precisava reinserir-se em outro rosto, sulco de aprisionamento mais raso, em que minimamente pudesse chorar a perda dos seus, chorar a perda do ouro e desejar de forma frenética aquele corpo que carregava um ouro circular. Que rosto, meu deus, poderia conferir-lhe tanta liberdade? Sabia que não havia, sabia que não tinha chance, sabia que o máximo de proveito ele já tinha tirado. A pele lisa, com pêlos nas pernas e logo abaixo do umbigo, a barba, a boca que lhe sugava, as mãos que lhe pressionavam, os olhos que lhe capturavam com rosto! Denunciou para si mesmo a dor de ser e de estar ali naquele momento, trabalhando com seu corpo com afinco e dedicação sem receber o que merecia: nem o metal dourado de forma circular recheado, nem o metal dourado de forma circular vazado. Nem um, nem outro, se pendurou sobre seu corpo. E ele tentou por oito longos anos. Não seria o caso de tentar o coma novamente? Ou de tentar o luto? Nem tanto. Porque nesses dois está guardado o metal negro em forma de cruz. Escolheu ficar vivo, mas com o rosto da derrota: deixou-se capturar pelo buraco negro da prata, encheu a cara de vodka com coca-cola zero, e deu-se por muito feliz. Com um quarto de século de vida, tendo escapado do coma, tendo escapado do luto, tendo escapado do amor, nestas condições o metal dourado de forma circular recheada pesando sobre seu corpo seria um rosto. E o que ele menos queria naquela hora era um rosto para mostrar e um rosto para assumir.

E a melhor ever:

"É ou não é ou não é? É!"

A seguir, as 5 melhores dos últimos anos

"Nasci em 83, mas em 86 eu já usava scarpin branco e ombreiras pra imitar a Madonna"

"Seu eu fosse mais jovem, eu pegaria meu pai"

"Não sou sarado porque eu não quero virar estatística"

"Eu era hetero, mas a Cher me salvou"

"Por que eu aceitaria meio pau se não tenho meio cu?"

"- Se o beijo for bom, tu me dá um desconto?
- (...) Se o beijo for bom tu me dá uma gorjeta?
- (..........................................................................)"

Escolho me deitar

Tens razão, às vezes fica bem difícil.
Hoje eu me dei conta disto enquanto assistia à aula. O rapaz sentado ao meu lado não era o mais bonito, mas eu quis extrair beleza dele. E fiquei quase três horas insinuando meu olhar pelas suas pernas, pelos seus cabelos, tentando fazer brotar dali um sinal – um índice, um aceno – de que não havia nada ali que eu não pudesse encontrar em um outro lugar, até em mim mesmo. Nessa minha pose contemplativa fiquei uma boa parte do tempo, e quando nossos olhares cruzaram, por quatro vezes se cruzaram, eu contei riscando palitinhos na folha em branco até formar um quadrado, eu invariavelmente pulava de sua cabeça à outra, de suas pernas ao chão, de suas mãos à cadeira, de seus cabelos ao ventilador, mas percebia que ele me encarava. Até que num momento ele pôs a mão por dentro do moleton azul-marinho para coçar o peito, e o moleton subiu, e eu me estiquei o máximo que pude para colher o máximo de que eu tinha direito de um mínimo possível de sua barriga. Me deitei naquela barriga, rocei minha barba nos seus pêlos que descem do umbigo, lambi seu umbigo, e imediatamente voltei a mim como se nada – ou tudo – tivesse acontecido. E esse foi o momento glorioso da manhã, quiçá do dia. Eu diria da semana: escolhi me deitar na barriga de um aluno!
E ontem foi um dia desses, bem como tu estás me narrando. Difícil, magoado. Ruidoso e pegajoso, em parte por causa do tempo, em parte por causa do meu tempo. Perceber que escolhas antigas talvez não tenham sido as mais corretas... Ou, pior ainda, perceber que as escolhas antigas foram as mais corretas porque, exatamente, o outro é que tinha razão: eu ainda não estou preparado para aquilo. Voltei pra casa com uma vontade de tirar a roupa, o blusão, a camisa, a calça, os tênis, as meias, as cuecas e seguir tirando tudo: a pele, o fígado, o estômago, os músculos das pernas, como naquele videoclipe do Robbie Williams. Mas, na minha pressa em despir meu corpo e em despir-me do meu corpo, imaginei que quando só me restassem ossos, ou apenas um osso para arrancar fora de mim, ainda assim haveria uma coisa qualquer que deveria estar desde já arrancada e que ainda não está. Tem um mofo, um bolor que não consigo limpar. É um lugar que não pega sol – e não é esse que tu estás pensando, porque esse vê a luz mais que outros. É um lugar sobre o qual eu não consigo lançar luz, que eu não consigo iluminar, que eu não consigo ver. Mas que está ali de todo modo, faz sua moradia nômade nas sombras que se formam no jogo de luz e escuridão.
Eu cheguei do trabalho e tinha que ir pra academia. Mas decidi que não iria, que ficaria e tomaria uma xícara de café bem gelado e bem doce. Decidi transformar o mofo em meu aliado, me juntei a ele: escolhi me deitar pra ficar mofando neste dia úmido. Talvez depois eu me levante e vá cortar o cabelo, que está péssimo. Por agora eu quero me deitar e mofar um pouco, só um pouco, para eu sentir a delícia de estar na sombra, invisível.

Te mando um beijo

O sino da igreja mais próxima badalou: dezessete horas e trinta minutos de domingo. Eu poderia te mandar um beijo de onde eu estou, poderia ir ao teu encontro, mas eu não quero. Eu sinto muito ódio muito freqüentemente, raiva mesmo, vontade de me demitir dos meus projetos. Vontade de mandar um beijo para quem eu desprezo. Sinto raiva, uma raiva ruim e pegajosa, vontade de abandonar esse caminho e essa trilha na mata fechada que abri a facão.

Tem vezes que leio deitado na cama, só com a luz da cabeceira acesa, me dá uma tranqüilidade ao ver o apartamento todo escuro e só uma luz fraca iluminando meu quarto... E quando eu termino de ler eu me cubro e olho pras paredes do meu quarto, pras minhas roupas na estante e para o computador desligado, fico ali observando esse espaço que habito, que faço meu e que se faz eu mesmo: eu também sou minha própria casa. Aí eu espero o sono vir, e quando eu penso que ele quase chega desligo a luz. Mas tenho estado assustado com um barulho estranho que entra pela janela, sempre logo depois de eu desligar a luz de cabeceira, um som de balanço de praça que vai-e-vem como se houvesse alguém se balançando nele, o som é um ruído de correntes que vão-e-vêm. Será que tem uma criança, alguém sei lá quem, que se balança aqui perto de casa? Só eu escuto o ruído? Essa pessoa se balança até a hora de eu dormir, sempre à noite.

Há também outros sons, e uns cheiros, que escuto e que sinto. Sinto cheiros pelo corredor, um cheiro que não é nem ruim e nem bom, mas é um cheiro que sinto até eu entrar na porta de casa. Hoje quando eu entrei aqui no prédio senti um cheiro forte e horroroso, não se de onde vinha e não sei se ainda está lá, e lembrei de mim mesmo! O cheiro me fez lembrar de mim mesmo, não porque eu cheiro daquele jeito, mas porque... de alguma forma associei a impressão desagradável de senti-lo com uma imagem minha caminhando na rua com o cenho franzido.

Há cheiros que nos lembram e que nos constroem imagens. Senti raiva ontem, muita raiva, por causa dos cheiros e das imagens que senti e que vi. Odeio tanto isso tudo, me sentei numa mesa e bebi tão-somente uma garrafa de Original para não dizer que estava totalmente desacompanhado. Estou com os comprovantes de pagamento à vista no débito aqui na minha frente: chegada à 00:24, saída à 1:32. O cheiro de cigarro envelhecido e fumado às pressas, misturado às solas de adidas, nike e all star molhadas se cruzam e produzem náuseas em quem não adere com força ao pó, aos líquidos e aos comprimidos. Sentei à mesa e observei um rapaz acender o cigarro que ele fumou em menos de três minutos, o guri foi bonito quando a chama do isqueiro iluminou seu rosto enquanto ele inspirava o primeiro vento de nicotina e alcatrão ao fazer da mão esquerda uma concha sobre a ponta do cigarro. Bela luz do fogo do isqueiro que o fazia tão carente e tão disponível.

Mas odiei mesmo assim aquela fumaça e aquela imagem. A paisagem na qual estavam todos emoldurados cheirava mal. O que mais me incomoda é o fato de eu não saber onde pôr as mãos ou o que fazer com elas, e minhas mãos são grandes com dedos longos: se eu as deixo à mostra elas chamam muito a atenção e se eu as escondo elas também chamam a atenção porque me faltam, porque pareço amputado delas, porque meu corpo não é o integral. Mas nunca um corpo é um corpo integral, não é mesmo? Sempre escondemos alguma parte nossa que não nos permitem mostrar ou que não queremos entregar. Camisetas, cuecas, meias deixaram, entretanto, de ser peças que escondem os corpos para ser peças que promovem os corpos: camisetas osklen, cuecas CK, meias importadas (há grife para meias?). Mandei um beijo para quem odeio, sempre mando. Ele, desaforado, se deitou no meu colo, só de sunga e botas, e eu deslizei firmemente minha mão pelo seu corpo que quase esmagava minhas pernas de tão pesado de carnes e pêlos. O cheiro dele que se impregnou em mim, esse eu não odeio, mas mesmo assim beijei e mordi seu mamilo direito. Acho que o odeio de alguma forma. Na porta de saída ele já estava vestido decentemente e nos tratamos como desconhecidos, afinal de contas eu apalpei o personagem que ele encena no palco e não o homem remelento e com mau hálito que provavelmente ele acorda todo o dia. Deixei que ele fosse embora e guardei comigo só a sensação de pegar em suas pernas peludas, só o peso sobre meu colo, só o cheiro de suor. Nem seu sorriso, nem uma palavra de afeto me faria mudar de idéia.

Emails para uma jovem bicha - a bicha geneticamente modificada

Eu só me dei conta do que eu estava fazendo quando o avião sobrevoava o Paraná. E eu ia fazer o quê lá de cima, me diz? Dizer pra ficar na próxima parada pra eu voltar? Dizer pro piloto abrir a porta porque eu queria descer? Separar um pára-quedas pra eu voltar voando pra Porto Alegre? “Agora chupa que é de uva”, eu pensei.

São Paulo nunca foi uma cidade tranqüila pra mim. Sempre há um drama, ou eu querendo me jogar do quarto do hotel, como aconteceu da penúltima vez, ou eu querendo me prostituir, como foi dessa. Aquela energia competitiva, os desafios que as pessoas se impõem, a peleia pra conseguir um lugar no ônibus, um lugar no metrô e um lugar ao sol me incomodam. Mondo cane é brinquedo de criança perto da opulência com a qual todos tentam te patrolar. Desci no aeroporto e tive de pegar um ônibus, três metrôs e encarar, a pé e com mala, mais uns quinhentos metros de calçada até chegar no “hotel” – muitas aspas nesse “hotel”. No trajeto entre o aeroporto e a estação de metrô, feita num transporte urbano intermunicipal, eu repetia pra dentro de mim mesmo, tal qual mantra, “Jesus me ama, Jesus me ama”, fazendo criar um católico cheio de fé que não existe em nenhuma parte de mim pra me proteger dos perigos. Passei por um, dois presídios. Mais a marginal do Tietê. E entravam pessoas geneticamente modificadas a cada parada, amontoando-se entre as cadeiras e o corredor. As portas mal fechavam, e quando finalmente abriram, fomos todos cuspidos pra fora do ônibus e caímos dentro da selvageria de concreto da terra da garoa.

Aí me joguei na corrente humana daquele mar de gente que se digladia nos metrôs das cidades com mais de quinze milhões de habitantes. Mas eu queria poder parar pra ler as sinalizações, parar pra entender, pra assimilar aquelas informações escritas nas placas acima da minha cabeça que suspendiam setas e palavras indígenas como “Tabaquara”, “Tatuapé”, e eu não conseguia parar porque aquelas pessoas geneticamente modificadas vinham contra mim e a meu favor se chocando contra minha mala e rasgando minha camiseta! Rapidamente me coloquei ao lado de um segurança – eu não sou palhaço – e perguntei como eu fazia pra chegar na avenida Paulista. O olhar de escárnio e de desprezo, de estranhamento e de pilhéria que aquele homem me lançou jamais vai se descolar das minhas lembranças destes tristes e intensos seis dias de suburbano exilado na maior metrópole da América do Sul. Comprado o bilhete, ainda protagonizei uma última cena de comédia para as centenas de indivíduos que por mim passavam: eu tentava fazer com que o bilhete fosse lido pelo sensor magnético da catraca, como se fosse um cartão, ao invés de inseri-lo civilizadamente na reentrância pela qual ele seria ‘comido’ pela máquina. Ali fiquei nessa atividade inútil por uns breves quinze segundos até entender onde de fato eu tinha de colocar o bilhete, tempo suficiente para arrancar risos dos transeuntes – e de mim mesmo, é claro.

Chegando no “hotel”, marchei com quinhentos reais de cara. Pensei, então, que eu poderia economizar na alimentação, uma vez que todos hotéis que conheço – esses sem aspas – têm frigobar nos quartos. Mas esse não tinha. Eu estava na oitava cidade mais cara do mundo, no bairro mais exclusivo do Brasil, sem a menor opção de baratear os custos de uma viagem absurdamente planejada. Pois então: eu peguei um vôo na companhia aérea mais barata do país, pra descer vinte e cinco quilômetros do local da minha hospedagem, peguei ônibus e metrô, andei centenas de metros com minha mala e minha mochila pra chegar num “hotel” que se diz “hotel”, sem dinheiro, sem rímel e sem batom: compreendi que eu era pobre. Eu era uma retirante.

Nos dias seguintes, fui peruar pelos entornos da avenida Paulista. As bichas de lá só existem pelo corpo e para o corpo; tudo o que adorna o corpo, tudo que estiliza o corpo, tudo que se joga sobre o corpo é índice de diferenciação e de hierarquização entre elas. Ciborgues de nosso tempo, iPhones, iPods e notebooks Apple turbinam o corpo porque são suas extensões chiques e caras. Marcas de roupa nacionais são lojões de quinta categoria: D&G é pano de prato pra elas. Não que de fato elas tenham dinheiro, porque sei bem como funciona esse circuito. Elas comem um pé de alface ao longo da semana, elas roubam água dos bebedouros dos shoppings, quando estão a ponto de desmaiar dão uma lambida no sabonete líquido dos banheiros públicos – se houver sabonete – mas compram calças de luxo, tênis da moda e aparelhos eletrônicos importados. Tudo isso num esforço de ser, ser aquilo que se deseja, ser aquilo que se admira, ser aquilo que racional e matematicamente não era possível ser. Não acho que é uma fachada, não acho que elas aparentam ser o que não são. Penso que elas são. Não há mentira nessas estratégias, não há ocultação ou falsidade. Elas são sinceras, são honestas, porque elas são aquilo que elas podem ser. Eu, e somente eu, era a bicha geneticamente modificada ali.
CONTINUA........

Emails para uma jovem bicha - um email offline

Oi, querid@!
Estou offline por uns tempos, ok?
Meu computador está no Pronto Socorro. Não há muitas chances de ele voltar a ver a Luz: corre sério risco de morte. Infectou-se com um vírus.
É incrível, mas quando eu digo para as pessoas que meu computador estragou por causa de um vírus, e que eu perdi todos meus arquivos com essa tragédia, o culpado sou sempre eu. É como se eu tivesse contraído aids. "Mas como?! Justamente tu, uma pessoa com informação, tão inteligente, tu sabe melhor que muita gente que tens que investir em prevenção?! Tens que fazer back up de todos os arquivos, tens que ter cópia de tudo, e agora? O que vais fazer? Viste, bem feito por ter sido irresponsável!". É ou não é o mesmo discurso moralista?
Minhas férias foram uma viagem ao centro do inferno de mim mesmo, sem escalas. Versão sem cortes, estendida, do diretor. Te conto depois que meu Windows Vista voltar a viver.
BeijoOffline!

Emails para uma jovem bicha- Férias

Tou saindo de férias, tá? Tou offline por uns dias.
Acho que vai ser bom, está sendo bom desde já.
Pra mim é necessário deletar rostos e corpos, cheiros e beijos de tempos em tempos. Não dá pra agüentar alguns deles por um período contínuo. E eu mesmo me faço insuportável, acho que mais do que eu tirar férias dos outros, são os outros que precisam de férias de mim.
Ônibus? Nem pensar. Minha mãe me esinou desde cedo que apenas viagens locais, intermunicipais, são feitas de carro ou ônibus. O resto, meu bem, todo o resto é feito pelos ares. Adoro peruar nos aeroportos, fazer pegação no Salgado Filho, Afonso Penna, Galeão ou Pampulha. No meu caso, vai ser Guarulhos mesmo, o mais movimentado da América do Sul. Coragiii, né?!
Furacão gaúcho na terra da garoa. Vou com a Godiva de Niterói como minha guia.
A Consolação - e o Parque Trianon - nunca serão os mesmos!
BeijoMeEsquecePorUns10dias!

Emails para uma jovem bicha - Esquinas da minha vida

(De "cartas a uma jovem bicha" troco para "emails para uma jovem bicha". Adoro cartas, acho cult. Mas acontece que deixei de escrever cartas, não porque eu ache demorado ou porque doa minha mão. Mas simplesmente porque aqueles pra quem eu escrevia já não me fazem mais sentido).
Sempre mande as fotos que tirares aí, adoro ver como as pessoas estão 'enxergando' as cidades e as pessoas que conhecem. Gosto de bisbilhotar os olhares, os cantos e os ângulos, aquilo que não era pra entrar no enquandramento, mas que por sorte ou azar apareceu ali registrado, adoro intuir onde estava o sol e admirar o céu de um outro lugar que não seja esse meu que ocupo há tanto tempo.
Aqui tudo tranqüilo. Há 15 dias eu tou sem beber e havia anos, repito, ANOS que eu não passava tanto tempo sem ao menos uma latinha de Boemia, uma dosezinha de tequila, uma garrafinha de vinho, hmmmm, as bolhas de champagne (parece discurso de AA, mas te garanto que tou limpo!). Minha pele melhorou, minha barba reluz no sol, comecei a perder minhas gordurinhas localizadas, meu cabelo está macio, sedoso e leve, tenho comido frutas, verduras e queijo minas (arrghhh!), granola com iogurte ao acordar, mas sempre - SEMPRE! - sem uva passa porque uva passa é um ultraje à civilização judaico-cristã ocidental... E elas têm vindo cada vez em maior número, num tamanho quase imperceptível, sempre se entranhando nos alimentos de modo que fique quase impossível retirá-las. Mas eu as retiro, claro, e perco bons minutos nessa tarefa quando na verdade eu poderia estar dormindo ou lendo Foucault. De que adianta colesterol zero se também é zero o número de beijos na minha boca? Cozinho em casa todo dia, tenho aprimorado minhas técnicas, meu temperos e o tempo de cozimento do frango assado. Descobri que massa ao alho e óleo é mais barato do que eu imaginava, mas nunca supus - NUNCA! - que dava tanta flatulência. Sou uma bomba de gases atualmente. Ganhei 1,5 cm de braço e 2 cm de perna graças ao meu treino na academia. Obviamente, nada disso me assegura assovios na rua, nem parabenizações, porque simplesmente a beleza não desabrochou de dentro de mim como coisa que sempre existiu ali. A beleza, assim como tudo e todos nessa vida, é algo que se constrói. Essa minha caretice com o álcool não sei aé quando dura, mas certamente não tou sentindo tanta falta quanto pensei que fosse sentir. Meu fígado agradece, os michês detestam. Dentre as muitas viradas da minha vida, a esquina mais feliz está pra ser dobrada em breve, quando eu for viajar nesta sexta. Até lá, estou feliz como Amélia dentro de casa, lavando louça, lavando o chão e o vaso sanitário, escrevendo o primeiro capítulo da minha dissertação de forma compulsiva, tomando uma xícara de chá de boldo sempre antes de ir dormir. Só que não sou anjo, como tu bem sabes: faço uso de duas drogas pesadas diariamente, sem falhar: internet e televisão. Cada dia acredito menos e menos em 'liberdade', acredito menos e menos em 'verdade'. Acredito nas amizades que construí até hoje e que quase nunca me faltam, também acredito na solidariedade que eu devoto aos meus amigos e que me faz trabalhar com isso que trabalho, do jeito que trabalho; que me faz estudar isso que estudo e do jeito que estudo.
Mande sempre notícias! Adoro escrever emails. Mas se eu tivesse tempo e pessoas dignas, escreveria e mandaria cartas.

Hora de Saturno

Paciência, meu eremita. Prudência. Se insistires em tensionar as bordas que te seguram, o grande legislador vai te impor as regras do kharma. Passeio pelas delícias das grandes possibilidades, das grandes tentativas, das grandes viagens. Novos territórios a conquistar, eu, O Conquistador. Mas nessas terras recém descobertas e recém experimentadas, ainda virgens de mais profundas explorações, é necessário fazer leis e obedecê-las. O tempo te traz essa sabedoria, portanto, espere! Eu voltei caminhando, cheirando a cigarro barato, sozinho. Para quem legisla o sinal vermelho em noite de rua deserta? Atravessei, e só meus passos ecoavam de largo a largo na avenida. Era para mim que a sinaleira brilhava. Tentei desesperadamente, numa fúria bastante justificável, rasgar a pele macia para comprovar os músculos rijos... A dureza da carne daquele(s) corpo(s) é tão ultrajante. Penso ser impossível construir para si uma materialidade tão dura, tão espessa, daquelas em que as mordidas não fazem marcas de dentes. Senti na palma das mãos e na ponta dos dedos os tocos dos pêlos recém depilados, o cheiro do perfume amadeirado, o umbigo raso, os peitos salientes, o saco suado. Bebi um pouco, de pouco a muito, de muito a exageradamente. E segui bebendo e tentando, bebendo e tentando, no ritmo da música, do piscar do estrobo, do giro do globo, e nunca chegava, aquilo nunca chegava. Fui me cansando, mas continuava bebendo e tentando, bebendo e tentando. Até que as lembranças mais escurecidas, não pela baixeza moral ou pela vileza estética mas pela simples falta de luz da qual esses lugares freqüentemente se usam, essas lembranças me vieram e me ocuparam, me perturbaram. E no desespero – outro desespero, já o segundo em poucas horas – eu mexi com os braços e com as mãos, balancei o quadril, movi as pernas, um pé tocava o chão enquanto outro se suspendia, encolhi a barriga e sorri. Fechei os olhos. Na minha mente ainda persistiam os tecidos enegrecidos, as luzes opacas e os rostos esfumaçados. Labirintos, salas exíguas iluminadas apenas pela televisão ligada e fora do ar. Cadeiras vazias. Botas, sungas, ereções. Salto-agulha, bico-fino, silicone. Toda doença tem sua delícia, todo crime tem seu deleite. E no retorno, as ruas desertas! Dei-me por conta de que a desolação me acompanhou desde o momento em que me acordei, ou antes, desde o momento em que me deitei ainda na noite anterior. Anexei a desolação a mim como mais um dedo no pé – seis dedos, corpo monstruoso? Anexei o álcool a mim como mais duas medidas na circunferência – setenta centímetros, corpo abjeto? Tive meus momentos de Amy Winehouse, mas é claro que foram sem o glamour do lápis de olho. O chá de boldo que esquenta minha xícara, o microondas que esquenta minha água, o Plasil que impede o meu vômito, a corrida que impede minha gordura, a cama que me traz o sono, a manipulação auto-induzida que me sacia a vontade, o gozo que me proíbe a lágrima: legislações que tutelam os limites de até onde ir e dizem das fronteiras a serem ultrapassadas. Na hora de Saturno, tudo é aprendizado para ser comedido mesmo nas abundâncias.

Hora de Júpiter

Mediante pagamento, fui feliz. Foi o passaporte para uma liberdade controlada, cujos limites acompanham o volume das cédulas do meu bolso. Foi o visto de entrada numa zona, quarta-escura, luz-vermelha. Mediante pagamento não há toda sorte de censuras, a não ser aquelas que o custo impõe. Expandem-se os zíper e os botões, os corpos cavernosos e esponjosos: ‘expansão’ é a palavra. As eternas negociações cínicas dos corpos zero-por-cento-de-gordura-trans simplesmente ficam suspensas e perdem grande parte do seu sentido. Ou se não perdem, pelo menos são ressignificadas! Não há abdome que valha por si só, nem bíceps que dê conta sozinho de uma declaração de amor. Não há feiúra que se preserve com uma nota de cem reais. Nem beleza o suficiente que prescinda o débito de trinta pilas. O Segundo Sol brilha na noite, nas quartas-escuras, quartos-crescentes, Segundo Sol em noite de Júpiter, em casa de 8. A facilidade do toque, e aí não se enganem, quer dizer menos a quebra total das fronteiras bem limpas entre afetos e muito mais a justaposição dos perceptos. Tocar é mais importante que sentir. E aí não se entenda que não há sentimentos: sempre há sentimentos, mas há formas de sentir, variadas maneiras de extrair afeto. Mediante pagamento há um outro território, não exatamente aquele livre das quaisquer proibições, não exatamente aquele da libertinagem sem fim, não exatamente aquele da eterna perversidade. Esse outro, esse alter, esse hetero é um lugar em que são repensadas as referências para as relações. Nessa revisão, não se perde ética: reconstrói-se uma. Estou com eles porque quero, e não porque preciso. Estou com eles porque gosto, e não porque não consigo. Estou com eles porque pago, e vocês – todos vocês – também estão uns com os outros porque, em primeiro ou em último lugar e em algum momento, também pagaram.

Hora do cometa

Eu, Macabeu, fantasio com você-vocês. Não me orgulho disso, não me satisfaço. Procuro satisfação em outras zonas, territórios menos combativos e mais urgentes. Profiláticos. Mas, sim, existe uma delícia ao me deitar na cama e manuseá-los nos dedos, tê-los comigo nas produções minhas. Existe um sabor denso em manipulá-los, em fazê-los dizer o que quero, em movê-los para cá e para mais cá. Não é ridículo, é só um jeito entre tantos este de colocá-los numa roda giratória dos profanos. Saberão você-vocês que andarão pelos meus pensamentos? A mim retorno sempre que posso, e sempre é necessário voltar. Para cultivar e manter aqui e ali essa vontade, essa energia que me faz buscá-los na rua e trazê-los para casa. Para dobrar novamente minhas roupas usadas e deixar apenas as cuecas penduradas, estendidas sobre a escrivaninha, deitar sobre elas e cheirá-las – porque é doce seu cheiro. Para me esfregar nas paredes e descer até o chão em forma de concha. Para lambê-los e odiá-los gozando, para insistir nele-neles, para ouvi-los gemer. Se não tiro o pó dos meus móveis é porque quero que o pó seja minha testemunha: sou feliz na hora do cometa. Trago todos ele-eles comigo porque quero, porque me são preciosos, e não porque me são precisos. O cheiro de cerveja, da dose dupla de vodka. O bafo quente do cigarro recém apagado. Os cabelos desgrenhados do sexo selvagem de logo antes. Nenhum dele-deles bebe, nem fuma, nem tem cabelos. Nenhum deles faz sexo. Sou eu quem faz com ele-eles. Não é triste nem sofrido, é só mais um dos jeitos que achamos para continuar desejando, e ao desejar sempre mais e mais e mais trancar a porta para que não se vá o desejo, para segurá-lo, girar a chave, segurar as janelas, fechar as torneiras. Então tomar banho ainda vestido e secar-se! Olhar-se no espelho e continuar desejando, ai, será difícil? Tocar-se. Deitar na cama e apagar a luz, e afundar a cabeça nos travesseiros. Sentir a dor nas costas. Voltar a fantasiar com ele-eles.

Cartas a uma jovem bicha – dos chutes, dos socos, dos espancamentos

Essa melodia não acaba
Quando eu resolver parar
De cantar


Pois se gritam contigo, se te chamam de bichinha, de boiola, de viado, vire todo o corpo para o agressor e, num movimento como de onda, empine a bunda, encolha a barriga, estufe o peito, levante a cabeça e jorre na sua cara: “bichinha, não. BICHONA!”.

E se te derem um tapa, tire uma das 12 navalhas que aprendeste a guardar embaixo da tua língua e dispare-as, sempre com essa tua maestria em fazê-las voar sem a ninguém machucar, mas a todos assustar.

E se te derem um soco, arranque teu cinto feito de correntes com um cadeado na ponta, gire-o no ar produzindo aquele som de terror do ferro cortando o ar, gire-o até a tontura e enrosque-o em torno do pescoço do seu agressor. Aperte-o até fazer quase desaparecer sua voz, até quase tirar-lhe a arma que dispara violências, mas não até o fim. Deixe ainda um fiapo de voz para que ele diga: “desculpe-me, sinceramente”.

E se te espancarem, se te chutarem o saco e o estômago, se pularem sobre teu crânio, se te quebrarem os braços e arrancarem os dentes, se te costurarem o cu, se te jogarem óleo fervendo, recupere-se. Cuide-se, trate-se, mas recupere-se. Não morra antes de voltar e provar que o corpo pode ser torturado, que o corpo pode ser produzido na dor, que o corpo pode transformar-se na dor. Recupere-se, volte. Recupere-se do espancamento com carinho pelo seu corpo, pela sua matéria, e volte vestido de lantejoulas, miçangas e canutilhos bordados numa segunda pele.

E se te matarem, não pense que foi aí que tudo se acabou. Porque nós todos vamos continuar a andar por aí, com calças justas e enfiadas na bunda, vamos continuar e ir e vir, beijar e dançar, músicas com brilhos e luzes. E se nos endereçarem palavras de censura ou reprovação, cuspiremos, escarraremos na cara desses. Para provar que não é com a morte que vão te fazer ficar em silêncio. Não é só teu corpo que fala; é tua história, é tua trajetória, são as memórias que tu construíste entre nós que vão se espalhar como vírus (como aquele nosso vírus amigo) e que vão dar consistência para a revanche. O teu rastro ficará conosco, nos servirá de norte.

?

Haverá algo - será? - sobre o qual eu deva me perguntar, me questionar, procurar produzir uma resposta e que eu não esteja conseguindo fazer?

Das 1001 tentativas

Não há idéia do amargo gosto no dia seguinte, do resquício azedo impregnante.
Não há idéia de como é ruim, não há.

Cadê a bóia? II

Cadê a bóia? Salva-vidas, socorro, estou a me afogar.

Tudo muito comportado, tudo muito educado, tudo muito polido. Tudo muito asséptico.

Todos os macacos estão em seus galhos: o macaco pesa, o galho quebra, o macaco cai, o macaco cai de cabeça, o macaco morre.

Tá todo mundo muito parado em seus devidos lugares. Tudo muito mesmo, tudo muito mono (cromático, tono, lítico), tudo muto respeitoso.

Me afogo em bom-mocismo.

Gisele Bündchen quer viver feliz “no meio do mato” em 10 anos

Vamos começar dissecando os termos: quem é Gisele? Paradigma de beleza, curvas do peito e concavidade do abdome tornam-se horizonte para muitas (e para muitos). Moça simples de Horizontina, era desmilingüida quando era adolecente (eu a conheci em 1996/7 quando fui disputar um campeonato de vôlei de escolas evangélicas, ela era deplorável – e eu também). Gisele significa hoje não apenas um modelo estético; isto também. Mas, sobretudo, significa esse complexo de borboleta, lagarta que adquire lindas cores e voa com graça – e com muito dinheiro – pelo mundo. Ela significa a transformação do corpo abjeto em corpo de sucesso.

Viver feliz: se aparecem duas palavras aqui, uma é “viver” e outra é “feliz”, e “feliz” surge como uma qualificação de “viver”, isso significa que existem muitas formas de viver. E que apenas uma delas é “feliz”. Se vida e felicidade estivessem associadas, não seria necessária essa distinção. Já que se faz presente, cabe a pergunta: por que será?

“No meio do mato”: isso é mentira. Nem Horizontina fica no meio do mato. Eu sei muito bem que vendem Ellus e Rosa Chá por lá.

Em 10 anos: segundo o calendário Maia, o mundo acaba em 2012.

So deeply sorry, Gisele. Tu nunca serás feliz.

Os homens que passam por mim

Já escrevi por aí que quando ando pela rua eu gosto de olhar o rosto das pessoas para inventar uma estória para elas em minha mente. Isso me ocupa muito tempo, me deixa absorto, compromissado com o que penso, de modo que me perco nas sinaleiras e dobro nas ruas erradas. Pareço um bêbado ou um turista desorientado, mas o prazer de atribuir estórias – só minhas – às pessoas que por mim passam é sem igual.

Hoje eu estava sentado na praça de alimentação de um shopping da cidade. Final de semana, muitas pessoas pra eu inventar estórias e nelas colar, tal qual etiqueta, minhas próprias narrativas. Mas dei-me por conta que separo bastante bem a qualidade e o percurso dessas narrativas de acordo com o gênero dos transeuntes. Para mulheres, quase sempre reservo cenas de tafetá, capitonês e organzas. Para homens... Para os homens eu não invento estórias. Para os homens eu reservo a minha própria vida, na qual eu os insiro sem modéstia.

Os homens que passam por mim – eles não percebem, mas é isso que acontece – são subtraídos de alguma fagulha que deles eu roubo. Vou andando com olhar baixo pela rua, levanto lentamente meus olhos até conectar com os rostos ou com os olhos destes outros homens. E quando eles passam, tão perto que nossas mangas roçam, eu roubo o cheiro do pós-barba, do desodorante recém colocado na axila ainda no vestiário da academia, roubo o cheiro do cigarro ou do cimento ou da tinta que mancha suas roupas. Como um bricoleur, pego retalhos de um homem aqui, de outro mais adiante, de outros tantos que já passaram por mim, e vou montando um grande espantalho – ou um Frankenstein – de um uomo que me habita, que me faz companhia. De alguns homens que passam por mim eu não furto cheiros, mas prospecto características físicas para dar cara ao meu uomo pessoal: numa tecnologia recorta-cola, tiro uma cicatriz na bochecha esquerda de um, uma barba ruiva de outro, uma mancha avermelhada no pescoço de um qualquer e vou montando um rosto caleidoscópico para meu uomo. Nesses homens observo os movimentos do maxilar ao mastigar a comida e vou tocando seu ombro, braço, antebraço e mão até me deter na mancha branca da unha do seu dedo indicador, dedo robusto de homem, vizinho de uma aliança escrota. Copio e colo o cabelo negro que balança no vento, os pêlos fartos, grisalhos e grossos que saem pela gola da camiseta, o olhar diagonal – oblíquo, de cigano dissimulado – e cheio de luz verde, o pênis avantajado que desliza pelo lado esquerdo da calça, a cueca branca, a bunda dura; copio tudo e colo tudo no meu uomo próprio. Quando chega a noite eu brinco com ele, movimentando-o no meu passado e no meu futuro, contando para ele a estória da minha vida, como ela foi e como ela será quando nós nos conhecermos, narro o primeiro momento em que nos vimos, a roupa que ele vestia e o perfume que ele usava... E todas essas qualificações generosas, cheias de detalhes bastante realistas, eu colho destes homens que passam por mim.

Será assustador o dia em que meu espantalho, meu Frankenstein, meu uomo me surgir! Porque por mais que eu já tenha narrado de trás pra frente milhares de vezes esse instante, me parece fantasmagórico que ele de fato exista.

Cadê a bóia?

Aí ontem aconteceu de eu ir a uma casa noturna para homens homoeroticamente inclinados. Viados mesmo.

Os motivos da minha exasperação não dizem respeito exatamente às roupas, apesar de serem paupérrimas. Até gosto da assimetria de estilos, gosto da junção bebelesca de modos de jogar a mesma camiseta branca sobre a mesma calça jeans cintura baixa, com as mesmas e indefectíveis calças capri. Também não me incomodo com a variedade assustadora de corpos; esse inclusive é um dos pontos fortes do local. As bunitas colocadas no pó, bíceps e deltóide bem trabalhados e “limpos” de gordura; as monas fashion com seus cachecóis imensos e cabelos desgranhados, lápis de olho e base na cara; os militares enrustidos ainda pensando que o DOPS vai tortura-los assim que sua fúria anal for acalmada depois de um rápido blow job no banheiro (disso não estamos tão distantes, vide o caso dos milicos que assumiram sua condição homoerótica em cadeia nacional de TV e em seguida foram presos); as rachas metidas a moderninhas que se assustam com uma dose de whisky bem servida, com uma cueca bem à mostra, com um beijo bem dado e com uma pegada mais forte. Nem a diáspora das barbas, dos pentelhos encaracolados e das vozes de barítono (às vezes de soprano, de castrati) chega a me dar no saco. Nada disso me irrita, nada disso me incomoda.

O que me causa arrepios é o fetichismo com que o corpo é produzido e celebrado. Minha implicância é com o fetiche, e não com os corpos. Minha implicância é com a cara faz-de-conta, o famoso carão; minha indignação é com a assepsia dos gestos e o comportamento da fala, com os atos da fala, com aquilo que é dito e da maneira com que é dito; meu incômodo diz respeito à produção exacerbada de performances cult, de performances top, à americanização do flerte; meu choque é por causa da transformação do sexo em fitness, e da conversão do aeróbico em orgasmo.

E fiquei por ali um tempo, próximo da escada, com um copo de plástico cheio de cerveja e com a mão tapando a boca para que meus pensamentos não fugissem por ela. Fiquei por ali encostado no pilar, assistindo com tristeza a esquete teatral que montaram ontem à noite, esperando que alguém do barco salva-vidas me jogasse uma bóia. Alguém, por favor!, me joga uma bóia?

Dois esportes e duas medidas

Por que motivo a derrota da seleção masculina de futebol é mais importante que as vitórias da seleção feminina de basquete e da seleção masculinda de vôlei?
Por causa da estupidez e idiotice brasileira em torno de futebol, ok.
É sempre bom lembrar como a gente é palhaço nesse país.
Agora vamos lembrar mais vezes disso durante a semana, já que os trouxas vão pagar a CSS.
"Funduras, ó Brasil, porão da América."

Cartas a uma jovem bicha - Uma possível resposta a uma inesperada pergunta

Tu me perguntas: o quanto da vida humana se perde na espera? Eu te respondo: na espera nada se perde, na espera tudo se transforma.

Veja meu exemplo. Esperei anos para poder tocar e ser tocado, e quando finalmente pude fazer e deixar que fizessem o toque não era nada daquilo que eu acreditava ser. Houve momentos em que foi melhor, houve outros em que foi pior, mas te digo que na minha espera eu construí e reconstruí tantos significados, tantos, para isso a que esperava, montei cenas e esquetes teatrais para poder dar sentido ao toque, para poder dar contexto ao toque... E nada saiu como eu imaginava. O tempo que gastei esperando não foi gasto exatamente na espera; foi gasto na constante invenção daquilo que eu esperava.

Também esperei pelo medo. E esse chegou bem como eu o previra, gelado e certeiro. Na minha espera pelo medo, ele veio em meu encalço e me alcançou sem contratempos. O terror e o desespero também chegaram. Na minha espera eu me preparei e me tranqüilizei, de modo que quando ela acabasse eu tivesse como lidar com tudo aquilo que estava por vir – e que veio, de fato.

É bem verdade que a espera pode não ter um fim. O esperado pode nunca chegar, de modo que sua chegada se converta em adiamento e cancelamento. O segredo da espera, nesse caso e em outros, acredito ser a diligência com que lidamos com ela. Se com paciência questionamo-nos sobre os motivos pelos quais esperamos um sentimento, uma pessoa, um ônibus ou um evento, somos capazes de abandoná-los. Ou de persistir esperando-os. A espera, se assim a compreendemos, tem menos a ver com aquilo ou com aqueles que esperamos, e mais a ver com o que desejamos fazer quando aquela “coisa”, situação ou pessoa nos chegar. O que tu esperas, meu amigo, daquele que tu estás à espera? O que de ti está colocado nisso que aguardas?

De antemão, eu já destruí qualquer condição que me faça esperar, por exemplo, pela simpatia dos outros. Não espero mais por isso. Também deixei de esperar, muito recentemente aliás, qualquer rapaz de cuecas limpas, olhos penetrantes e barba no rosto. Na minha agenda não há mais horários para eu esperar por reconhecimento, ou admiração. Simplesmente não faz sentido eu esperar por eles. Algumas esperas são maneiras bastante efetivas de aprisionamento e culpabilização. O que nas tuas esperas te imobiliza a conquistar outras coisas? O que nas tuas esperas te impede abandoná-las?

Esperas e aguardos não têm necessariamente a ver com tempo, imagino que tu bem saibas. Eles não têm a ver com a quantidade de horas e minutos que se passam até aquilo ou aquele nos chegar. Por outro lado, penso que esperas e aguardos têm a ver com trajetórias, com afetos, com sensibilidades. Não esperamos aquilo ou aqueles que não podemos esperar. E nossos aguardos só se apresentam e só se desfazem quando nossas trajetórias nos permitem fazê-los. Quantas e quantas esperas tu ainda não podes fazer? Quantas e quantas esperas tua trajetória ainda vai te colocar? Será que essas que vives agora serão as únicas ou as mais importantes?

De um modo geral, não tenho uma resposta definitiva àquilo que me perguntas. Ainda bem que não tenho. Penso ser importante que tu aches tuas próprias respostas. Mas também acho importante que tu mesmo formule tuas próprias perguntas dentro daquilo que podes te perguntar. Sobretudo, te provoco em três sentidos: a espera é uma ferramenta para a transformação; a espera tem mais a ver com nós mesmos do que propriamente com aquilo ou aquele que esperamos; a espera não deve nos aprisionar.

Como te sentes agora?

Cartas a uma jovem bicha - por uma vida imensa

Venha, sente aqui do meu lado e contemple daqui todos meus inimigos.
"Quem ama mata mais com bala que com flecha", e no furo se fez um rastro infinito que me percorre, que me atravessa. Há momentos em que me arrependo, mas imediatamente me ocupo em ler notícias, ou escutar músicas, ou conversar com amigos. Nunca fui dado à simpatias tranqüilas e sempre preferi a atrocidade dos sentimentos mais ferozes. Sentado em espaços de silêncio absoluto, nunca fechei meus olhos: mantive-os atentos à espera do meu predador. Bebi a última gota do vinho, do hi-fi, do gozo; gastei o último centavo da minha conta, da conta do meu pai, do limite de todos os cartões de crédito que tive; vomitei o último grão de arroz e o último pedaço de alho; lavei com escova e desinfetante o box do meu banheiro até o último mofo. Em raros momentos reservei com cautela os limites do meu corpo. Até o medo, até o nojo, até o desprezo e até o terror eu senti com força e consumi com energia. Não fui santo, nem bom amigo. Não fui o melhor aluno, nem escrevi as melhores redações. Não falei com graça, não falei coisas interessantes, não beijei bem e meu pau foi apenas médio. Nasci gordo, emagraci, depois engordei, e nasci careca, depois me enchi de cabelo para em seguida perdê-lo todo. Com meus dentes a história foi a mesma. Nunca fui objeto de desejo, de admiração ou de paixões ardentes. Nunca fui o personagem de algum sonho, nunca fui ator em fantasias sexuais de terceiros, nunca fui o responsável por sessões contínuas de masturbação grupal. Fui nativo, fui estrangeiro e fui nômade. Fiquei dormindo em casa, sobretudo nas manhãs de inverno, quando eu deveria ter ido trabalhar ou assistir à aula. Quando solicitado sobre minhas ausências, dizia de doenças, de compromissos, de viagens. Menti, omiti e inventei. Nas situações de traição, eu ri da lágrima alheia. Guardei os melhores perfumes comigo, as melhores músicas, os melhores carinhos, de modo que ao sentir-me só - e foram tantas vezes! - sempre recorri a eles. Nunca me adiantaram muito, mas nunca se negaram a me consolar. Encostei minha cabeça na parede e chorei muito por saudade.

Morrer agora?

Eu sou uma pessoa que incha, que incha muito. E acordo de manhã com bolsas embaixo do meus olhos, e elas estão ali pela quantidade de sal no meu corpo, pelo meu descuido, pelo meu exagero. Acordo com um peso na minha cabeça, uma certa tontura que me pende a cabeça para um lado, e depois para outro, e em segudida para frente, é quando eu me dou conta que me pesa é meu tumor na hipófise, e daí ele pende pra trás. Eu acordo pela manhã e estalo meus dedos no ar, causando um câncer bastante avantajdo nas minhas articulações (dizem que o investimento na artrite é descontado no INSS no Brasil)... E, sem dúvida, o céu da minha boca está retraído até quase sua metade, deixando à mostra a raiz dos meus dentes da arcada superior porque tomo chimarrão escaldante desde os 16 anos de idade e como comida muito apimentada desde os 5 (a pimenta salva ou aniquila, alguém me explica?). E eu vou à academia, e levanto 5 kg no bíceps e 30 na flexão de joelhos, mas eu não sei se posso viver mais do que a bunita sarada e bronzeada aqui do lado, eu posso? Se eu não puder, posso pedir pra morrer agora? Já, imediatamente, posso? Porque senão eu vou ficar enchendo o saco, dando no cu, chupando pau... Ahhh, tá. É só eu comer cheddar o bastante pra eu entupir o intestino. Vou pro McDonald's! BeijoMeEsquece!

Labirinto

Não, o nariz não é de palhaço.

Não, a câmera não é do Big Brother.

Não, o corpo não é previsível.

Não imaginas que artimanhas ela lança mão pra dizer-se feliz!

O excesso e o vômito lhe são estranhos, mas a graça e a comunicabilidade lhe são simpáticas.

Não, ela não bebes tanto quanto imaginas.

Mas ela se apruma tanto quanto ela gosta.

Um rompante

O que fazemos do beijo? E se o beijo surge, rompendo os lábios, se impondo às duas (ou três ou quatro, ele não lembrava) bocas sem que elas planejassem ser tocadas?

Pra ele, aquilo foi um momento, um acontecimento: dependeu de acomodações para ser levado a efeito, mas demorou muito mais tempo para ser compreendido do que levou para ser executado. Um beijo, dois beijos, três beijos... E numa tentativa de compartimentalizar o toque dos lábios e o roçar das línguas, já não pôde dizer onde começava seu corpo e onde as fronteiras do outro se chocava com as do próximo. Sofreu com seu fracasso classificatório: culpou-se por ser promíscuo, por ser fácil, por ser bêbado: beijar a boca de outros homens só não era pior porque da culpa de ser homem ele não sofria – nem nenhum outro.

Mas depois de passada a dor de cabeça pela desidratação, depois de vomitar o almoço e janta que não tivera, depois de jurar que o destilado mexicano não faria mais parte de seu cardápio, ele voltou a assumir pra si a responsabilidade primeira – eu diria última – pelos beijos dados e pelos beijos não dados. Isso porque um beijo dado nunca corresponde, em volume e em intensidade, ao beijo não dado. O beijo não dado sempre é mais longo, sempre é mais molhado e sempre tem a língua mais macia e furiosa.

O beijo que não se deram prometeu as palavras que se calaram nos beijos dados.

Condições

Para não precisar fazer a arqueologia dos problemas que nos levariam ao ódio e à ojeriza, preferimos fechar delicadamente a porta pela qual entramos naquela sala. Para não ter a obrigação de escavar razões e situações no tempo passado, para não precisar mostrar motivos já mortos, fossilizados, que justificassem nosso desprezo mútuo, preferimos sabiamente dizer ‘até logo’ num momento em que abundávamos de admiração e carinho recíprocos. E tivemos sucesso.

O fim de alguma relação não é identificável por si mesmo. O fim de alguma coisa não remete a si como uma evidência ou fato comprovável. O fim não existe porque, de certo modo, seu começo também é fruto de uma ilusão, ou de uma certa necessidade que temos em pôr uma marcação, erguer um obelisco em algum lugar, assinalar no calendário algum dia que nos faça lembrar de onde e de quando tudo começou. O fim depende do início, mas tal como o começo, o fim também é fruto de uma ilusão. O começo nunca é o começo per se porque há condições que nos fizeram estar ali naquele instante, daquela forma, naquele lugar específico. Há condições que nos apresentam escolhas, e só fazemos as escolhas que podemos fazer. Eu, com 24 anos, bêbado, numa festa freqüentada por muitos rapazes da mesma idade e com o mesmo interesse homoerótico são condições que me apresentam algumas escolhas, enquanto que descarta outras. Faço deste dia e deste lugar o começo. Mas o começo não é localizável, nem fixo, porque ele é uma circunstância, ele é um percurso, um caminho seguido. O começo que nós vulgarmente chamamos de ‘aniversário’ é apenas um nó em que as condições de escolha se colidem. Isso não o faz menos importante, todavia. Mas sem dúvida, pensar o começo como um certo momento de adensamento de condições faz com que o próprio fim seja repensado: repensado não como um ponto final, mas como uma reticência ou, no máximo, uma vírgula. O fim e o começo repensados colocam um ponto de interrogação (a dúvida) justaposto ao ponto de exclamação (a certeza). Não tendo certeza do começo, portanto, também não temos certeza do fim.

A incerteza do fim tampouco significa arrependimento ou possibilidade do vai-e-volta. A incerteza do fim não significa necessariamente um ‘eterno retorno’, ou a chance de sempre reatar. O caráter difuso do fim serve mais como agente de transformação que como alternativa de re-estabelecimento do vínculo. O fim insere novas problemáticas nessa relação que termina e oferece novas condições de escolha. Essas, por sua vez, nos levam a novas relações; o fim desta é também o começo da próxima.

Eis que, então, depois de feitas minhas escolhas e entendendo as condições que as fizeram possíveis, estou sentado no chafariz da Redenção no sábado pela manhã, às 9h. Nem um minuto depois de ali sentado no conhecido e renomado Sofazão da Hebe, ele vem cambaleante e pede por um mate. Nunca o vira antes, não sabia quem ele era, ele apenas surgiu. Sentou-se do meu lado e começou uma conversa, na simpatia e comunicabilidade típicas dos excessos da cevada fermentada. Alguns bradariam “aí está o começo!”. Eu diria que aí está o cruzamento, a colisão, o atravessamento, o adensamento de possibilidades de escolha, a nuvem de condições, o nó de chances que resultam de umas séries de situações prévias, umas enroscadas e dependentes de outras tantas, que nos fizeram estar ali, naquele momento, daquele jeito que estávamos. O nome dele leva o mês precedente ao do meu aniversário. Sua profissão em certo grau é parecida com a minha. Sua idade e suas mãos também guardam semelhanças com as minhas, da mesma forma com que compartilhamos o gosto exacerbado pelas coisas etílicas. Mas a estética do sapato e calça da cor preta em contraste com as meias soquetes brancas é estratosfericamente ímpar, incomparável.

Depois de uma conversa confusa, mas divertida, dei a ele $2,10 para que pudesse pegar um ônibus e voltar pra casa: valor exato do troco vindo do pacote de erva-mate que eu comprara horas antes para fazer meu chimarrão e, com o chimarrão, decidir me sentar no chafariz. Vêem que não há começo, mas uma conspiração de possibilidades para que as coisas aconteçam?

Cartas a uma jovem bicha - Sobre as escolhas

Eu me sinto só ao escrever essa carta. Eu me sinto abandonando, desemparando, desesperando, desacreditando, desconfiando, sempre no gerúndio porque é algo que se faz neste momento e se prolonga no futuro. Eu me sinto escolhendo um caminho que só oferece lugar pra um: acabo por impigir a mim mesmo a condição única de distanciamento egóico. É bem provável que nos fim dos tempos só sobre eu e meus livros, com mais ninguém pra me trocar as fraldas geriátricas. Isso porque nós fazemos escolhas que nos empurram daqui pr'ali, sempre um pouco mais pra um lado, sempre um pouco mais pra baixo, e eu desde já sou bastante só. Mas se é isso que tem que ser, se é assim que vou (que vamos, nós) aprender e ensinar, se é assim que fazemos acontecer outras pessoas nas nossas vidas sem que nos deletemos mutuamente, se é assim que será eu aqui admito e aqui assumo. Não vou me lastimar por qualquer decisão que eu ou que qualquer um de nós tomar: deixo a lástima para aqueles que simplesmente não decidem nunca.

Nada é inédito

No meio do caminho havia uma encruzilhada. Havia uma encruzilhada no meio do caminho. Tomei a esquerda. "Vai, Tadzzio!", me disse o anjo de uma asa só, "Vai ser gauche na vida!". Mesmo sem poder voar com graça, o anjo de uma asa só foi capengando para longe em busca de outro abraço.

O rosto contamina o corpo

Um amigo querido me passou um material interessantíssimo sobre o rosto, sobre a rostidade. Paola Zordan, junto com Deleuze e Guattari, traz:
"Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significâncias conformes."
Procuro pensar no rosto não como nossa cara, não como o sistema fechado [olhos-nariz-boca], exatamente. Procuro pensar o rosto como como metáfora, como topografia de ressonância daquilo que somos ou daquilo que pretendemos ser. Um rosto não é a face; é através de onde e por aquilo que nos transformamos. Uma re-entrância onde procuramos nos acomodar, a partir de onde enxergamos - mais que isso, lugar de onde nos vêem. O rosto fixa, o rosto contamina.
Por isso mesmo, o rosto aprisiona. Penso nos meus sujeitos de pesquisa: "20cmmachoativo", "pauzudo23cm", "TravestiGulosa". Seus rostos nômades, re-construídos a partir de re-significações dos seus próprios corpos: recorte seu pau duro e sua bunda aberta, cole ali sua rostidade e seja feliz com seu novo relevo subjetivo. Se o rosto contamina o corpo, contamine o rosto com o corpo, arranque o rosto do corpo e desloque o próprio corpo, inverta-o, re-coloque-o, recorte-o. Destrua-o e torne-se um@ forasteir@, escape do rosto, desfaça-o.
Onde quer que o rosto estiver, ele irá em seu encalço. Ele não pára nem quando dilaçerado. Fuja, torne-se um nômade. O rosto não suporta o adiamento.

Umas tais lembranças

Pois, ora se não, que um olhar oblíquo e quase paralelo, um aperto de mão mole, um rechaço e um sorriso de escárnio, um silêncio de vergonha - ou seria de incômodo? - e perguntas de escrutínio público, de controle pessoal, seriam capazes de me fazer tremer as mãos e as pernas e me fazer lembrar do quão duro foi chegar onde estou hoje?

Escorpiões

Por que o veneno que mata a nós dois seria a saliva inoculada na boca de outrem?

Rascunho de mim

07 de maio - o dia que não acabou. A quarta-feira foi um dia extenuante. Ela já terminou oficialmente há 50 minutos, mas os minutos são apenas convenções que não dizem sobre quando um sentimento acaba ou outro começa. Portanto, de certa forma, ainda estou na quarta-feira. De outras formas, permanecerei nesta quarta-feira, imóvel, tentando entender. Tentando me entender.
Há vezes em que sinto um peso, uma dor, uma fadiga. Meu corpo cansa e minha mente fica embaçada como que atrapalhando o pensamento. E os olhos não vêem direito, e os braços não alcançam, as pernas não caminham. Há vezes em que acho que posso (que devo?) fazer o peso cair e espatifar-se no chão. Os músculos dos meus ombros sofrem de contraturas terríveis: sustentam uma cabeça densa, apinhada de pensamentos que forçam sua massa. Tenho aqui uma cabeça que dói muito às vezes. Tenho um peito que não soluça, uma voz que não embarga, cílios que não umedecem. O fio do novelo enosado que trago comigo é muito extenso pra ser medido e muito intenso pra ser carregado.
Chego ao fim desta quarta assim. Como um rascunho de mim. Caminhei tanto que meus joelhos doem, mas é bem verdade que finjo não ver meu corpo há meses e meus músculos, todos eles, ou estão tensos ou estão fracos. Comi uma fatia de pão às 8 da manhã, depois um prato de carne com farofa ao meio-dia e meia. Café a conta gotas à tarde. Uma xícara de leite há uns 20 mintuos. Como eu disse, finjo não ver meu corpo. Suei, gaguejei, dormi em pé no ônibus e desejei nunca ter levantado da cama aos cinco anos de idade. Cheguei em casa e fui direto lavar minhas mãos no banheiro quando, meu deus!, me olhei no espelho. Havia anos, anos, anos que não acontecia de eu não me reconhecer. Eu estava pálido, de uma branquidade anêmica, com escuras olheiras, bochechas magras, barba por fazer, boca entreaberta como que sem fôlego e um profundo olhar triste. Me choquei mesmo foi com este último porque o vazio do meu olhar eu só vira outra vez num cadáver na Faculdade de Medicina da PUC/RS quando por ocasião de uma visita guiada aos prédios da universidade promovida pelo colégio onde eu estudava. Era o cadáver de uma mulher de seus sessenta anos que, segundo a estagiária que atendeu a mim e meus colegas, fora doado para pesquisa porque provavelmente era uma mendiga e ninguém havia reclamado o corpo depois de sua morte. Seus olhos mortos pareciam ainda dizer do desespero, ou apenas do ressentimento, em terem morrido sós.
Que parte de mim, será?, que morreu sozinha hoje a ponto de meus olhos trazerem sua morte?

Uma extensão do texto sangüíneo

Me sentei no balcão do bar com um amigo de longa data. Entre os copos de cerveja que subiam e desciam, entre a música e os vídeos, entre as pessoas estranhas e cheias de força que foram chegando aos poucos e se sentando por perto, entre um olhar de desejo para um garçon e outro de reprovação para a feiúra de um cliente, eu me dei conta de que eu não tinha nada pra contar. Ou tinha, mas meu amigo não entenderia. Ou entenderia, mas para ele não teria importância nenhuma. Ele não se afetaria com nada que eu pudesse lhe contar. Mas também, por outro lado, talvez ele tenha se afetado com essa minha falta generalizada de novidades, com essa apatia uniforme que eu trazia. Houve um silêncio entre nós, inquebrável até mesmo pela mais atroz insensibilidade das vozes dos que nos rodeavam, imperturbável inclusive pelos fartos e brilhosos cabelos negros do garçon.

Voltei pra casa a pé pisando nas pedras úmidas da chuva que recém caíra. Para cada passo firme no chão havia um certo balanço, uma certa chacoalhada, um movimento gelationoso do acúmulo adiposo em meu abdome. Me assustei com minha condição: como eu cheguei a ser do jeito que sou? Por que motivos eu permiti, ou por que motivos eu quis ficar assim? Para cada passo um grau a mais no incômodo com minha calça; eu pus a culpa na calça velha, de numeração errada, com um corte cafona, de cintura alta, pus nela a culpa pela manta de gordura. Eis que vi um grupo de homens bêbados, tão bêbados quanto eu ficara na noite anterior, orgulhosos de suas camisetas rubras de campeão gaúcho, anunciando suas masculinidades numa gramática cuidadosa e explícita que se articulava com seus corpos robustos. Masculinidades de pêlos no rosto e nas costas. Como será que eles chegaram a ser do jeito que são, eu me perguntei. Por que motivos eles se permitiram, por que motivos eles quiseram? Me lembrei de Gilles Deleuze com sua “dobra”: para ele, cada um de nós é uma “dobra” do exterior para o interior, e essa “dobra” pode ser des-dobrada, re-dobrada toda vez que nos afetamos por algo. E lancei um novo olhar sobre os grupos de transeuntes e vi uma noite plissada, cheia de entradas côncavas. Eu mesmo era uma dobra, uma prega, um desnível do exterior em direção àquilo que chamo de “eu”.
Daí passou por mim uma anã manca. Renga, coxa, a anã reclamava da sua jornada de trabalho dado o avançado horário da noite. Como ela chegou a ser o que é? E por um momento eu me irritei com essas perguntas inúteis que faço enquanto caminho na rua porque é infrutífero tentar remontar na minha mente o estado semântico da vida de cada um que por mim passa. Simplesmente porque não há como tirar de todo mundo um denominador comum, uma opinião recorrente, um mesmo conjunto de impressões sobre a vitória deste ou daquele time de futebol, sobre a gordura que se acumula sobre meu abdome, sobre a beleza do garçon. A anã manca me ensinou sobre a polissemia das reentrâncias, das dobras, das pregas.