tu morreu numa segunda-feira pela manhã; a manhã e a tarde intercalaram momentos de céu límpido e azul brilhante com momentos de nuvens acumuladas nas beiradas da abóboda celeste; naquela segunda-feira à noite uns pingos de chuva caíram. frequentar o hospital para te ver foi difícil nesses teus últimos quarenta dias. mesmo quando estavas no quarto esperando pela cirurgia sabíamos que tua vida já chegava à conclusão: tua voz saía fraca. tu nunca mais voltou da cirurgia. das três (seriam duas?) vezes que te visitei na UTI o corpo que eu via não era o teu. ou era, mas sem tu dentro. um corpo cruelmente ciborgue, ligado aos mais variados fios e tubos, e telas, e sacos com líquidos coloridos que afluíam pelas veias. quiseram te manter vivo a qualquer custo: compreensível, mas torturante. para ti e para nós. uma morte vale por todas: todos os fins vêm nos lembrar que acabam. aquela segunda-feira acabou também, junto com tua vida. e veio a terça-feira, já sem ti. foi inevitável me perguntar em que dia eu irei morrer, e em quais condições. fantasias próprias de quem não tem muito apreço pela vida que leva. gostaria de morrer numa terça ou quarta, no início da noite. velório discreto, sem muitas pessoas. cerimônia de cremação rápida, vaso de cinzas singelo. é uma fantasia tão inútil essa, pois definitivamente os fatos que acontecerão após nossa morte nos fogem ao controle. sei que teu velório e as cerimônias da tua despedida serão cuidadas pela tua esposa e pela tua filha. não pude abraçá-las depois que tu morreu e por isso eu peço desculpas. quando eu morrer não terei esposa e filha. acho que vou morrer sozinho, no mesmo momento em que meus vizinhos estiverem cozinhando sua janta, como se mais uma terça ou quarta-feiras comuns estiverem acabando. morrerei num dia comum. e o dia depois da minha morte, assim como o dia depois da tua, virá sem empecilhos. pode não haver sol, mas haverá dia, pois nossa falta não será sentida pelo curso do tempo nem pelo curso da vida da esmagadora maioria das pessoas do mundo, como os vizinhos. sinto um vazio impotente, um tempo flácido e apático o qual atravesso em forma de pântano. a pluma da melancolia.