Olá.

oi.

Como está?

incomodado. com um monte de coisa, com um monte de gente.

Começa por alguma coisa, por alguma gente.

hoje saí de casa pra ir pro trabalho e vi que minha vizinha deixa os sapatos do lado de fora da porta, no corredor. é revoltante.

Na área comum do prédio, tu quer dizer?

é. vê se pode.

Não dá pra conversar sobre isso com ela ou com a pessoa que é síndica no teu condomínio?

e dizer o quê? "olha, essa mulher aí é louca, põe pra fora o que deveria por pra dentro." as normas do condomínio não dizem nada sobre sapatos no batente da porta.

Entendo. Então a questão é que há algo pra fora que deveria estar pra dentro.

claro. pra mim é a mesma coisa que cagar de porta aberta com visita em casa.

[Silêncio]

[olha pela janela] são pessoas feias, fascistas, eu to cansando. em um programa de tv, um alto empresário disse que um grande sonho da vida dele é chegar aos cem anos de idade, o imbecil. milionário, lindo, com um pau imenso, realmente essa vida e esse mundo devem ser uma experiência e um lugar do qual não se quer ir embora, que não se quer perder. eu quero morrer aos sessenta.

[Silêncio]

há um sentimento recorrente em mim.

Qual?

quando eu saio do trabalho, eu geralmente avisto a parada do ônibus desde muito longe. e vou caminhando até lá. desde muito longe eu vejo lá parado meu ônibus, o ônibus que passa na minha casa. eu fico ansioso, tento caminhar mais rápido, às vezes chego a correr pra poder chegar a tempo de pegá-lo. nunca dá. é esse o sentimento que volta, sempre: de enxergar, esforçar-me e perder.

Não há outro ônibus em um horário em seguida?

mas não interessa o horário do ônibus. interessa que eu o perco.

Não interessa perder o ônibus se este não é o único.
[olha para as unhas, em silêncio]

No que tu tá pensando?


[pousa uma mão sobre a outra] vi um trecho de um filme hoje, logo quando acordei. eu estava um pouco sonolento, talvez ainda sonhando. mas fiquei bastante impressionado com o que eu vi, ou com o que eu pensei ter visto na cena. fiquei perturbado.

Como era a cena?

uma mãe precisa abandonar o filho porque assassinos querem matá-lo. ela precisa escondê-lo dos assassinos. ela deixa o filho, que é pouco mais que um bebê, dentro de uma cesta, em uma carroça. na cena, dá pra ver a criança refletida na íris, na pupila da mãe. eu, espectador do filme, vi a criança por meio do reflexo dos olhos da mãe. a mãe olhava diretamente pra mim, na tv. mas não era eu refletido nos olhos dela: era a criança prestes a ser abandonada. em seguida, a mãe sai correndo e chama a atenção dos assassinos para si. é um modo de despitá-los.

Tu te sentes abandonado?

eu me sinto abandonando. é isso, um movimento contínuo, um fazer perpétuo do abandono. eu abandonando as pessoas, o mundo. é como se o meu reflexo nos olhos dos outros fosse sempre aquele, de quem está sendo deixado.

[Silêncio.] Qual era o filme?

kung fu panda.

[Risos.] Eu imaginava que fosse um filme de guerra, ou algo assim...

não. é um desenho animado, bastante frugal, bastante simplório. mas as coisas aderem na gente, grudam de alguma maneira. podem vir da coisa mais idiota, mas entram. é quase como a agulha do soro, intravenosa.

Uma agulha?

sim. há cenas, há palavras que são intravenosas. eu, que estava diante da mãe, não estava refletido no olhar dela. ou deveria estar?

Talv[...]

é a mesma coisa quando assisto a um filme pornô. [silêncio.] me excito assistindo a filmes pornôs em que há uma mulher e dois, ou mais homens. me excito quando eles se encostam, se tocam, na ânsia de penetrar a mulher. me excito quando o olhar dos homens desliza e, mesmo que por um segundo e mesmo que o alvo seja o rosto da mulher, encontra o pau ou a bunda do outro.

Onde tu está nesse jogo de olhares, então?

em nenhuma parte. [volta a olhar as unhas.] em lugar nenhum. há corpos que não são olhados, não têm o direito de ser olhados. ninguém olha pra mim. e quando olham, como a mãe do filme, não sou eu lá no olho dela.

Tu acha que ninguém te olha?

acho. eu lembro que tinha uma época em que eu ficava muito em casa. dias sem sair de casa, três ou quatro dias sem falar com ninguém. daí chegava o momento em que eu precisava de pão, água. eu ia ao supermercado e jogava o carrinho de compras contra as pessoas, contra os carrinhos delas. forçava uma colisão. pra eu ter certeza de existir, de que eu não tinha morrido ainda. pra mostrar pras pessoas que eu estava ali.

E alguém te olhava?

não lembro. não me recordo de alguém ter me olhado. só lembro do gesto, da atitude, da técnica. colidir com os outros.

Hoje tu continua colidindo com as pessoas pra ter certeza de existir?

não. hoje eu falo palavras intravenosas pras pessoas. palavras que grudam, que entram na jugular. falo coisas feias, coisas podres, que rasgam as artérias dos outros. ou assim eu desejo.

Talvez seja por isso que tu sente que está sempre sendo deixado.

por quê? porque eu sou insuportável?

Sim. Se tu diz coisas feias e podres pros outros com o intuito de rasgar suas artérias, é possível que ninguém queira ficar perto de ti.

de um modo ou de outro, eu consigo confirmar minha existência. existo tanto, tanto, mas tanto, que ninguém me suporta.
O céu do sul é menor que o céu do centro.


Do centro?


É. Do planalto central.


Em que sentido?


Lá é maior, mas largo. A embocadura, o gargalo... mais amplo. Sabes? Vemos grandes distâncias de qualquer ponto. Tudo muito plano, tudo muito alto. Vemos longe.


Aqui tu vês curto, vês pouco?


Vejo muito, mas tudo muito fragmentado, de uma forma entrecortada. As montanhas, as pessoas, tudo muito reunido e agrupado. A vista não comporta ver tanto. A montanha impede que se veja o horizonte.

Mas a montanha pode ser, ela própria, um horizonte.


Sim, é verdade. Mas ela fica próxima demais da vista. É isto: lá no centro é plano, aqui não. Então, lá dá pra ver mais longe, e o céu encontra a terra sempre bem longe da vista. Aqui não: o céu encontra a terra quase em todo lugar, bem no nosso nariz. No nariz de todas as pessoas, agrupadas, reunidas.


Tu desejas separar as pessoas?


Não. Cada uma tem o céu e o nariz que merece.


[silêncio] E qual o céu que tu mereces?


[silêncio] Eu aprendi a amar o céu do centro. O sol do centro. O sol do centro demorava mais tempo para sair da terra e para encontrá-la novamente. Caminho difícil, de muita paciência. É lindo, lindo.


É o céu do centro que tu mereces?


Nenhum céu. Não havia nada, nenhum céu, nenhum sol. Nada lá no início, antes, bem antes. Não havia essa luz, esse brilho. Sabe? Era opaco, um pouco morno. Não tinha essa força.


Início de quê?


Da dor.


[Silêncio.] Qual dor?


De manter-se em pé. De andar. Não tinha essa dor, não tinha esse céu, nem o sol.


A dor veio junto com a força e com o brilho?


Veio, claro. A dor trouxe a força. Banhou de brilho. Um sol radiante percorrendo um céu glorioso.


Tu não conseguia te manter de pé nem andar por causa da dor.


Sim. Era uma dor paralisante.


Não entendo como essa dor paralisante trouxe brilho, força... e céu... e sol...?


Nem eu. Mas eu fui descobrindo o quanto tudo brilhava justamente porque engatinhei, andei de quatro. Tudo brilha rente ao chão. A força que a dor trouxe veio para me distanciar do chão, pra me erguer, pra colocar um pé depois do outro e pra equilibrar. Todos os dedos dos pés, os músculos e os nervos precisam de orquestra, de regência, de maestro. É uma verdadeira sinfonia, uma ópera em vários atos. Se eu hoje consigo me pôr de pé e andar, como eu não conseguia antes, eu sou o sol. Eu, sendo sol, percorro o céu, eu abraço o céu.


Mas então a dor não era tão paralisante assim.


Era inabilitante. Roubava minhas habilidades.


[Silêncio.] Então tu mereces um céu glorioso, já que és um sol radiante.


Sim, mereço. Porque toda abóboda celeste um dia cai e se estilhaça.


E o sol?


O sol é justamente o furo, o espaço vazio. Um buraco esplendoroso.


O sol não é um elemento do céu?


Não. O sol é uma passagem, uma conexão.


Com o quê?


[silêncio.] Eu não sei. Porque quem vai para além do céu só passa por mim sem deixar nada. Não manda lembranças, nem recados. Só passa, atravessa o céu, desaparece. Eu sou essa lacuna, esse vacúolo. Eu sou o sol que brilha o vácuo, que irradia o oco.
falando em repetição, há uma música na minha cabeça faz meses. "o homem caminha só na estação / vindo de todo trem, de todo o lugar". ela repete toda entrecortada, versos aqui e ali. vem toda quebrada: em alguns momentos uns trechos sobrepõem-se aos outros, ou ganham mais rouquidão. repete-se também a campainha de um telefone. "chega em casa e senta ao lado de um cara que não diz nada". repete-se: um alguém ao lado, vazio, esvaziado. só eu sei que ninguém fala comigo, ninguém mais. não digo nada. sou eu o cara que não diz nada, sou eu quem não responde. "e pergunta pra ele / e pergunta sem parar: que lugar é esse?". pura feiúra. nenhum lugar é mais vazio que o meu. coisinhas feias deste mundo vieram me sugar ontem à noite. drenaram-me. tem um telefone tocando, mas eu não respondo. não há repetição quando não há fala, quando não há o que falar para repetir.
é verdade, repito sempre "coisas imensas", "vácuos imóveis e permanentes", "faltas cujas bordas avançam, fazendo faltar a falta", "ulceração nômade". sim, eu repito tudo isso e outras coisas mais. repito também que o corpo avoluma-se demasiado no olhar, na mão, e que há de ir embora em algum momento. ainda bem que esta porra toda há de acabar. não adianta, portanto, desviar-se. já ali mais adiante estará o "vácuo imóvel" a me fitar. então repito, repito mesmo, como um refrão: não custa lembrar-me do corpo que não é novo nem belo mas que é a medida do meu ser. custa. custa montantes "imensos" de energia lembrar-me. vasculhar tudo e trazer à tona o que há de mais reincidente. custa. demora para conseguir um êxito por dia. abrir os olhos não conta; custa.