cheguei perto da janela e senti o cheiro da tinta usada para pintar as aberturas. o mesmo cheiro que senti na primeira vez que entrei pela porta do apartamento. cheiro de vida nova. lascas de realidades vindouras que vão grudando ora no nariz, ora nos olhos, ouvidos e boca. da primeira vez que entrei neste apartamento, senti minha vida toda vibrando nas paredes. quis abraçar as peças inteiras. meu quarto, por exemplo, pode ser desmembrado em dois: antessala e cama. na cama está meu íntimo, o mais íntimo. é onde eu sonho, mas somente quando eu lembro que sonho. tenho sonhado com escorpiões e seus rabos venenosos. o escritório é do tamanho de uma cozinha de um outro apartamento onde morei anos atrás. coincidentemente, ou não, aquela cozinha foi onde eu mais gostei de cozinhar e aqui é onde eu mais gosto de trabalhar. meu trabalho tem um aspecto culinário: preparações, sabores, degustações. houve uma vez alguém, não lembro quem [e, se lembro, não quero dizer quem é] me disse  que eu fazia alquimia com a escrita. não sei se cozinho as palavras. acho que não. minha escrita tem mais a ver com vômito mesmo, uma coisa irrefreável que é expulsa pelo meu corpo. não sem ressaca, não sem vergonha, não sem um gosto amargo e ácido na boca logo depois que sai, violenta. minha sala tem quatro ambientes: vestíbulo [onde guardo os tênis e sapatos, pois logo que entro no meu apartamento eu os tiro], sala de jantar [com uma mesa de dois lugares, sempre vazios e sem cadeiras], sala de estar [com uma tv imensa, potente, lisa, plana magnética] e uma sala de estar íntimo [a sacada, que é fechada, com duas poltronas sempre vazias e uma espécie de sofá oriental com algumas almofadas]. uma longa tripa bem iluminada pelo sol, de paredes brancas, vazia na maior parte do tempo. a cozinha é o tamanho da minha vontade e desejo de cozinhar: nem sempre, nem tão sincera, nem tão bonita, nem tão gostosa. mas eu gostaria de morar, mesmo mesmo, é na área de serviço: imensa, longilínea, tem até um banheiro separado, é fresquinha e é onde os primeiros raios de sol entram no apartamento; tem quatro janelas grandes que molham bastante quando chove; eu poderia deslocar uma cama de solteiro para dormir na área de serviço e a transformaria na minha suíte. e não seria isso, afinal: a crença de que sou mais adequado para a área de serviço do que para o quarto de casal? que feitiço eu me lancei, me pergunto, para que eu ficasse tão hipnotizado com a solidão? que feitiço eu lancei, me pergunto, na porta de entrada do apartamento que impede pessoas de atravessá-la? que feitiço lançaram, eu pergunto, no meu fígado para eu beber tanto tanto tanto tanto tanto e ainda assim ter uma saúde de ferro & zinco? mês passado eu tive o diagnóstico de "nódulo no fígado". vibrei! [como as paredes do meu apartamento.] morreria, enfim, de um câncer fulminante, morreria elegantemente, coroado pela sabedoria transcendental de quem tem hora para morrer. receberia as inimigas e inimigos numa maca de um hospital duro e seco, leito de morte no qual eu perdoaria suas traições e malfeitorias contra minha pessoa. daria minha bênção para continuarem suas vidas sempre lembrando da minha misericórdia e altivez. e me poria a escrever um último livro, talvez o único, no qual eu registraria meus últimos dias com marca autoral, chocante e arrasadora, que inauguraria uma nova fase na literatura nacional. chegaria a ser cogitado para o Nobel de Literatura póstumo. no dia da minha morte, sabendo que meu corpo já se entregava para a lama obscura, eu escreveria as últimas duas ou três sentenças [frases, períodos] do meu livro, com certa dificuldade devido à fraqueza e à desorientação causada pela medicação pesada, administrada para despistar a dor. \quis uma vida simples e sempre trabalhei para complicá-la/ \o corpo que odiei hoje finda sua vingança contra mim/ \hoje eu vibro pelo fim/ "oh, como foi digno até o fim!", diria até quem nunca me conheceu. o povo todo se arrependeria de não ter me conhecido. e meu funeral seria quase como um ato político da esquerda, no qual estariam presentes os nomes mais cotados para fazer frente à onda conservadora que cresce no Brasil. o caixão [simples, de madeira compensada, sem rococós e sem trabalhos de marchetaria, uma "caixa grande" literalmente, pois tanto maior é a comoção quanto menor é a pompa] seria carregado por uma multidão de anônimos, levado até uma praça ou descampado à beira do mar ou do rio, onde seria pousado sobre toras/galhos/galhetos/tocos/troncos de madeira seca. ali meu corpo seria cremado, convertido de carne em pó pelas altas labaredas coloridas de fogo. haveria palmas e lágrimas. haveria abraços e reverências. a multidão faria por mim um minuto de muito barulho, pois de silêncio minha vida já teria sido repleta. e as cinzas do meu corpo seriam recolhidas por garis em seus uniformes, pois eles sim são honrados o suficiente para lidar com meus restos da mesma forma como eu sempre os respeitei em vida, porque eles lidaram com meu lixo sem me abandonar e sem reclamar. e as cinzas do meu corpo seriam levadas para uma horta comunitária na qual seriam cultivadas hortaliças, legumes e frutas orgânicas. as cinzas do meu corpo seriam misturadas à terra. e lá seriam colocadas sementes, raízes, adubos. finalmente, numa aurora discreta, as primeiras folhas e flores alimentadas pelas cinzas do meu corpo despontariam, desabrochariam, estenderiam-se na linha do horizonte abrindo-se ao sol, ao novo sol, ao belo sol que se derramaria sobre elas. folhas e flores simples, de cor pastel, pequenas.

de volta para todo o espaço que habito, de volta da fantasia de morte e do egocentrismo, de volta da viagem egóica sobre a impossibilidade do esquecimento dos outros por quem eu sou: de volta para a concretude das paredes deste apartamento que vibram a vida que aqui levarei. o nódulo é só uma névoa no fígado, muito provavelmente algo que eu tenho desde que a primeira célula se desprendeu e fez outra de mim. nada estranho ou assustador: só uma parte de mim que desponta nos exames. o nódulo é eu coagulado. então é aquilo que eu já sabia: vida simples, de cor pastel, pequena.
voltei pra casa passeando de Uber. olhava pra ângulos e paisagens que eu nunca via quando eu dirigia meu próprio carro. a cidade abria-se inusitada, ampla. quis escrever sobre tudo o que eu via. teve histórias longas sobre moradores de rua e sobre árvores bem iluminadas: a narrativa das sementes que os puseram ali. me intriga o corpo e o tronco. e se eu parasse agora de fazer todas as coisas, e qualquer coisa, se eu parasse de agir e permanecesse imóvel na cama. e se. se houvesse um você Outro a me dar uma medida, um limite. e se. perceba que não há ponto de interrogação: pois é uma afirmação. a possibilidade de haver outras luzes, outros troncos e outros corpos não é uma pergunta que eu jogo pro além. é uma afirmação eu eu faço pra mim.
se ninguém me interromper eu vou vazando e deslizando pelo meio-fio da rua até ficar todo exposto a ti e ao teu olhar desprezante, ignóbil, pelo qual eu lambo os paralelepípedos e tomo a água da poça na esquina, em nome do teu olhar, eu como o lixo, eu durmo suspenso em desfiladeiros.
fui mesmo no instante que doía, em mim e nele. arrasei quartéis. mas me enlouquecia o chão brilhoso e as teias de aranha no teto: havia alguma esquizofrenia que impedia de entender o teto como sujo. o teto é sujo. há sujeira no teto. o chão pode ser limpo, mas o teto... buenas, continuei. ele reclamou porque botei a long neck de cerveja no sofá, escorada no braço. do sofá. maníaco por limpeza. eu quis um mundo, uma pintura em preto e branco, pode ser carvão, ou pode ser óleo, eu quero um mundo: já não faz muito que eu não reconheço a pele das minhas mãos e hoje ambas estão muito àsperas [me pergunto se estão indo embora de mim?], coisa corriqueira e sem valor no meu diaadia trouxa, que me faz ser eu mesmo trouxa e sem valor, desfazendo qualquer abismo vaidoso daqueles que querem e pensam que tÊm, mas eu que nada nem tenho meu próprio corpo que produz nódulos e manchas e pintas irregulares a seu bel prazer, meu corpo querendo ir embora, que acho estranho porque sempre foi forte e sempre pareceu querer ficar neste mundo de bosta e agora arranja um nódulo ou uma pinta, e cadê minha cerveja ah! achei, no sofá, e quisera eu morrer sabendo da morte com amigos e parentes (parentes não) e bonitinhos e adjacentes, portanto: no banheiro, certo? quando tu tira a roupa, certo? e entra, certo? a água vai caindo e te envolvendo e chicoteando, lambendo e coisando [não achei verbo adequado] a ponto de a gente escutar a água rolando na pele num som que hipnotiza e faz dormir ou faz sonhar; eu quis pisar em assoalhos neutros e descobri com dureza que não há ..... assoalhos. nada em que pisar. doem meu pés e minhas mãos. não tenho coragem em admitir que tenho artrose, embora essa doença me impedirá de escrever em algum momento. não deixe, você que está lendo, que eu pare de escrever por dor. eu permito a tortura somente neste caso: se for pra eu escrever. e escreverei toques lindos, sons e olhares, como eu sei de enquadramentos e de cheiros, e o corpo [não poderia faltar!] discreto e sem cheiro que me pousa a coroa do rei do cotidiano, nemfeionemlindo, uma palavra comprimida e sem hidratante que performa toda a secura e solidão [secura e solidão já foram juntadas antes; portanto: rever]. é a coisa mais feia do mundo esperar. pergunto-me por quê. será o sol que queima? o ar que enche? a luz que rasga? meu pai cheirava como eu cheiro hoje: pelos da perna escamando, nariz avolumando, cabelo grisalho. o cheiro da palma da minha mão é tão meu pai. e a embalagem do sabonete. e a casa: ele me acordava pra tomar água na tampa do pote do talco: um pompom vermelho dentro de uma esfera de plástico. aonde cheguei, clarice? me tira daqui. há uma [?] beleza...
Prezados [Prezadas?], boa noite [bom dia, boa tarde? mas que dia é hoje na escuridão?].

Quero manifestar meu desconforto em saber que a vida é diferente do que eu imaginava. Porque todo mundo disse, desde criança, que o mundo é imaginativo.

Eu imagino e nada acontece.

Quando acontece eu me endivido muito, porque o mundo que eu achava OK custa caro.

E também saio com dor no cu, porque o mundo real é bem dotado.

Não quero ser bonito, nem rico. Quero ser tranquilo [veja, nem feliz eu quero ser]. Por gentileza, apenas saibam que eu quero uma vida simples e leve.

Não quero tortura, nem ressentimento, nem mentira pra satisfazer o outro. Não tentem extrair dos outros uma verdade que é somente sua.

Oi, tá me lendo ainda? Desculpe, escrevo como quem caga. Haverá um momento em que escreverei palavras de amor.

Caguei,
Beijos,
Me tira daqui.
aos dezessete dias do mês de abril, numa noite de quase outono ainda verão, sequei o rosto em frente ao espelho ao sair do banho. é claro, eu já estava na segunda metade da vida. sequei o cabelo e olhei novamente para o espelho. é claro, décadas haviam se passado. aquilo que um dia fora o amanhã estava incrustado em mim, enrugando minha testa e empapuçando meus olhos. o amanhã estava chegando, pousando não como uma máscara, mas como minha própria face. aquilo que um dia fora o amanhã já me estava todo em manchas e barba branca aos dezessete dias de abril. e eis que o amanhã um dia vira ontem. o ontem estourava, derramava, acumulando-se como um obeso. é claro, a morte estava próxima. e que vida se havia passado por mim? o ontem gorducho se avolumava até os cantos da sala e da cozinha. mas não era saliente, esse ontem: sabia que haveria um dia de ser esquecido, de modo discreto, tal como chegara silenciosamente em mim meu amanhã aos dezessete dias do mês de abril. no amanhã de hoje as pessoas vão esquecer de contar histórias sobre mim, vão esquecer de lembrar de mim e do meu nome, do meu rosto. e aí meu próprio ontem, que engorda hoje minha vida, terá se evaporado como gota de água em panela quente de ferro. me diziam "um dia tu vai perceber que a vida passou..." "um dia as pequenas coisas serão mais relevantes que as grandiosas..." "um dia a gente cansa de tentar mudar os outros..." "um dia um ano passará rápido demais"; pois foi aos dezessete dias do mês de abril. me havia chegado num só dia todos os dias que outrora me avisaram que chegariam. e chegaram todos no meu rosto; cansado; torpe; caolho; flácido nas bochechas; inchado nas olheiras e no papo. de que rosto fez-se meu amanhã dos tempos de criança... ah, se eu criança soubesse... é claro, ainda era eu. no espelho ainda reconhecia no meu rosto alguns traços familiares, comuns, de cristalizada memória cotidiana, que me permitiam encontrar rastros do ontem do ontem do ontem ... do meu ontem. meu ontem tinha vários rostos. se eu seguisse cada filete do cristal da memória cotidiana eu veria meu rosto rejuvenescendo até a primeira divisão celular que me fez. hoje eu era o amanhã da minha primeira célula; torta; desproporcional; tumultuada; agitando-se no útero de minha mãe; inquieta com a recusa de minha mãe. aos dezessete dias do mês de abril finalmente lacrou-se em mim aquilo que um dia fora meu amanhã.
eu n [...]ão estou aqui por ti; estou por todos nós. estou para um tempo que precisa de mim, para um tempo que precisa de vocês mas que vocês perdem ou desinvestem. estou aqui todos os dias são dias de julgamento. dias de júri, de inspeção da narrativa que conto sobre meu passado e de investigação das suas relações com a verdade. estou aqui por todos nós, tu vê, por toda necessidade de responsabilização pelo passado. por toda a necessidade de retomá-lo, de re-invocá-lo, de lançá-lo novamente como projeção de um tempo que não é este mas que em breve será. e deverá ser. estou aqui para colocar em movimento por tudo o que corta e separa, tudo o que modifica e altera, tudo o que bifurca e cruza. todos os dias são dias de julgamento para mim, para ti, para todos nós. para quem cuida da espécie viva que 'circula a calma do nosso íntimo'. [é necessário colocar entre aspas nas apropriações das vozes de outros. não é possível simplesmente incorporar letras de música, trechos de livros como se fossem teus. não são, por mais que apareçam em uma enunciação que muda radicalmente o sentido daquilo que é citado. ainda assim, são vozes alheias ao texto e precisam ser creditadas, marcadas como exterioridades da narrativa.] estou aqui por todos nós, para garantir que nosso julgamento será justo. estou aqui para evitar ilusões e falsidades. estou aqui porque sou lúcido e porque vocês precisam de mim. estou aqui pelo hoje, pelo agora, pelo tempo presente, pela dádiva que será o amanhã. eu sou o arauto, o anunciador, a trombeta que grita [vale a pena antropomorfizar uma trombeta - que grita? não seria esteticamente mais forte humanizar o julgamento, descrever o cenário do julgamento, falar do juiz ou explicar o porquê de tu ser tão importante hoje, para mim e para todos nós?] a força de estar aq[...]
foi dado a ele um chinelo que massageia os pés. massagem bonita, coisa fina que faziam com as mãos. mas não era com as mãos: era um chinelo. quando tu pisava, massageava. permitiria mais autonomia, mais beleza. permitiria mais corpo na vida. mas o chinelo intrigou e incomodou. guerra eterna para uma punheta ou chupada. devo me culpar? devo. deve. devemos. ficaria hoje contemplando a lua num circle jerk. ela rasga o céu rápido. cospe. de uma lambida já fiz minha negação.
encontrou uma doçura no caminho de volta pra casa. tal qual coisa de açúcar, no seu corpo desagregou-se toda, irradiando-se. ainda encontrava algumas pedras pontiagudas e mal-cheiros em alguns de seus trajetos. eram impossíveis de desaparecer por completo. mas já era capaz de distinguir o gosto do doce. escapava aos poucos do destino de ser macabeia. mas não estava a salvo por completo. havia ainda a chance de morrer achando-se especial, num sopro único e último de esperança: na hora de brilhar. urdia aos poucos fios finos, sutis, de um véu quase transparente que talvez deixaria cair sobre o rosto. uma expressão de presença cautelosa, de presença que está ciente mas que se mantém em leve distância do momento intenso. para não ser macabeia, passava rente às incandescências do presenteísmo da vida, mesmo sabendo delas. pois sabia. já as via. agora, porém, passou a tropeçar nelas. mais recentemente, conseguiu sentir seus cheiros. hoje lambeu.
cruzando os domínios da rotina, o firme capuz da rotina, bagunçando um pouco o relógio biológico (como se o tempo estivesse inscrito na carne), transformando a madrugada num viveiro, num canteiro, numa horta escura e silenciosa onde cresce a dúvida: quem quer? da qual desdobram outras dúvidas: quem teria a coragem de querer? quem é esse que quer? posso supor que exista esse que quer? nada mais são além de variações da simples e direta dúvida "quem quer?". nem em um leilão público a pergunta é mais simples. no leilão, "quem dá mais?" é uma pergunta muito densa. supõe que alguém queira e que alguém tenha o que dar em troca com o objetivo de ter. a dúvida tipicamente noturna é outra. quer saber de algo mais elementar, mais conciso, quer saber da pequenina parte fundamental, da mínima partícula comum dos seres urbanos: querer.