Condescendentes pedaços de ternura

Hoje à tarde o Cara dos Azulejos viria aqui em casa para começar as reformas de minhas paredes que caem. Minhas paredes estão estufadas de umidade, descascadas. Houve um dia em que eu estava lavando o Box do meu banheiro, me escorei na parede e um conjunto inteiro de azulejos caiu. Um deles cortou minha perna esquerda. Mas o Cara dos Azulejos não apareceu. Ele me ligou no domingo, às 21 horas e 30 minutos para, de maneira cortês, agendar sua vinda hoje, às 13 horas e 30 minutos de segunda-feira. Será que a culpa pelo fracasso em 16 horas é minha, pois esqueci de avisá-lo pela terceira vez que meu interfone não funciona, que ele deveria ligar para minha casa ou para meu celular dizendo que estava no portão? Será que ele não pôde vir e não pôde ligar avisando, será que ele teve outro compromisso, será que sua namorada, sua filha, mãe ou avó pegou dengue hemorrágica e está no hospital, será que ele veio e não quis entrar? O que houve com o Cara dos Azulejos, como vou saber o que está acontecendo se ele não fala comigo? Programei minha noite de domingo e minha manhã de segunda para receber o Cara dos Azulejos, de maneira que no domingo à noite eu daria atenção ao meu namorado para, na segunda pela manhã, eu dar atenção aos meus estudos. Já que à tarde ficaria difícil de me concentrar devido ao barulho e à tensão de ter pessoas estranhas dentro da minha casa. Mas tudo aconteceu ao contrário, ao avesso, do jeito que eu não planejei. Minha agenda esculhembou. Quem tem a responsabilidade pelo desencontro? Quem leva a culpa pelo surto de dengue hemorrágica? Quem faz o curativo na minha perna esquerda? Quem vai reformar as paredes descascadas do meu apartamento?

Fiz o esforço de esconder minhas revistas pornôs gays que estão na sala, à direita da porta de entrada, justamente para que ele não se sinta constrangido pela minha orientação sexual. E eu entendo que ele poderia sentir-se constrangido. Coitadinho: sozinho, dentro do apartamento de um homem gay, sem armas, sem munição, só de short e camiseta regata, com suaves 26 anos de idade pousando sobre sua barba por fazer e sobre os pêlos negros e grossos de suas pernas. Essa era pra ser uma relação de poder, como diria Foucault, na qual o pólo em vantagem seria eu. Mas não foi, e não foi porque ele não veio. Agora a pergunta: de que servem revistas pornôs gays à direita da porta de entrada do apartamento?

Eu esperava condescendentes migalhas de ternura do Cara dos Azulejos.

A morte lhe cai bem

Vi o salva-vidas e gritei: socorro, socorro!! minha vida sexual está se afogando!!


Voltei pra casa com duas bóias, uma em cada braço, e acabei encontrando neve nas minhas sungas.

Causa do óbito: não foi afogamento, foi hipotermia.

Cartas a uma Jovem Bicha - Chora, baby, chora!

(frase inspirada no texto do blógui da Brazu-k Britâni-k aqui à direita)


"Eu não choro. O que escorre dos meus olhos é suor de ter que ser estóico"

A minha geração

Tornamo-nos uma geração exemplarmente perdida. O barco que nos leva a atravessar o quase insuportável mar da vivência e da convivência está sem proa, sem leme, e só nos damos por conta disso agora. Os que vieram antes de nós nos deixaram assim, sem capitão, e jogaram nossas vidas para uma existência pirata. Não só eles têm a culpa de agora vagarmos sem rumo por essas águas violentas; também nós nos deixamos sós, sozinhos um do outro, cada um mais egocêntrico que o próximo e contemplando, maravilhados, a engenharia suntuosa com que as gerações antigas construíram nosso barco. Abandonamos as rotas de descobrimento, de reconhecimento e de colonização. Tornamo-nos uma geração essencialmente turística. Não nos responsabilizamos pelo destino de nenhum de nós porque estamos todos muito menos preocupados com a sociedade que com nossas próprias vidas. Pergunto-me onde foi que erramos, ou onde foi que erraram por nós; pergunto-me onde foi que nos perdemos, ou por causa de que nos deram o caminho equivocado a seguir. Somos, sem dúvidas, a geração mais apática de que se tem notícia. Contamos com uma tecnologia de ponta para guiar nosso barco, motores potentes para levá-lo a qualquer lugar. No entanto, sequer temos a iniciativa de levantar as velas para quê, pelo menos, o vento nos dê a direção. Não jogamos a âncora ao mar, fincando ali nosso espaço; contudo, também não remamos adiante. Estamos aqui parados por preguiça e deixamos que figuras velhas e gastas escrevam a estória de nosso tempo, de nossa época.
Coisa essa que é nossa responsabilidade.

A bicha linda

Foi cômica e circense a imagem que vi refletida ali: um olhar vesgo e desencontrado em perfeita harmonia com a assimetria dos traços, uma fronte transparente de sinceridade sustentada por um longo pescoço patético, cabelos escuros, desgrenhados, plissados e indomáveis que faziam as vezes de moldura para meu rosto oblongo como um gigantesco clitóris. Meu rosto me pareceu um quadro cubista pintado por Picasso num dia de muito, mas muito mau humor. Eu não precisara tomar nenhum psicotrópico para turvar minha visão e então ver aquela nova forma de feiúra em que se constituía minha feição. Meus músculos flácidos... Minhas gorduras tão concentradamente localizadas. Os dentes tortos, apinhados, amontoados uns sobre os outros na mandíbula inferior, mas que na superior se separavam por demais deixando que dois gatos passassem por entre eles, brigando. Os pêlos grossos e negros, espalhados desordenadamente sob a pele áspera de caminhoneiro sujo de graxa, pêlos encravados em torno dos quais criavam-se pústulas dérmicas em tons degradê de amarelo até chegar o verde. Olhei bem dentro dos meus olhos negros e amorfos pra dizer: "Tá linda, bicha. A-HA-ZAAA!"

Receita de pão

Eu peguei aquelas pessoas e comecei a misturá-las todas num recipiente pequeno para que nenhuma delas fugisse.

Primeiro comecei com uma colher de pau, girando das bordas pro centro, convergindo das suas diferenças para tudo aquilo que elas tinham em comum. Adiantou até os primeiros cinco minutos.

Depois tive que usar uma escumadeira: eu queria uma massa bem homogênea, mas sabia que as idiossincrasias de cada um não dissolveriam por mais que eu batesse, agitasse, passasse no liquidificador. Seria uma massa embolotada, haveria bolhas na massa, que lhe dariam o sabor característico. A escumadeira, portanto, eu usei para arear, para dar leveza, para dar um toque de veludo àquela receita; se eu perturbasse todos eles e não os desse a condição de sentirem-se livres para me deixar, eu estaria criando monstros que contra mim levantariam mais tarde.

Alcancei o ponto perfeito quando a cor me causou náuseas e quando o cheiro ficou fétido. É exatamente este o momento ideal para parar de sovar, bater e misturar e então, acrescentando perguntas para fermentar dúvidas, jogar um pano de prato por cima do recipiente e deixar a massa crescer. E já aviso que cresce bastante! Ela se multiplica mais do que podemos imaginar, a tal ponto que o recipiente não é suficiente para as proporções da massa: ela escapa pelas beiradas. As pessoas tornam-se outras, criam coragem, ousam inventar frases e formulam milhares de respostas para as perguntas postas na fase anterior com esta nova gramática que constroem para si. A parte mais bonita da receita é essa, é ver a massa tomando vida e desequilibrando-se, perdendo-se do seu caminho para asfaltar outras estradas.

Há quem goste de comê-la crua. Se for esta sua escolha, faça agora!

Se preferir, ponha no forno e asse até quando estiver bem dourada por fora. Fure com um palito de dente ou um fósforo e se sair molhado de sangue é porque está na hora de servir. O sangue é sinal de vida, é sinal de um corpo vivo, um corpo-outro, e as pessoas da receita estarão vivas para serem cortadas em fatias e servidas em pratos fundos. Passe manteiga por cima delas ainda quentes, ou jogue uma calda de morango.

Segredo desta receita: o fermento, o tempo, as dúvidas.

Cartas a uma Jovem Bicha - A 'V'erdade

Sem dúvida eu penso que não existe A Verdade. Não me agrada A Verdade por detrás das situações, A Verdade por detrás dos textos, O Real significado daquilo que me dizes, Aquilo que Eu De Fato quero dizer com o que escrevo. Acho inútil buscar pel’A Verdade por vários motivos, mas sobretudo porque nunca temos A Certeza de que Ela é A Verdade: in dubio pro veritas. Estranho, não é?, o fato de que A Verdade, essa tão buscada e acreditada Verdade, nunca se mostra explicitamente, mas sempre se insinua, sempre se disfarça, sempre se esconde: A Verdade sempre está ‘por detrás’ de alguma palavra, de algum texto, de alguma frase. Temos que tirar essa sujeira feia que aprendemos a jogar sobre Ela – chamamos isso de ‘hipocrisia’, ‘polidez’, ‘elegância’, ‘educação’, e esquizofrenicamente também chamamos de ‘mentira’, ‘falsidade’, ‘omissão’ e ‘dissimulação’ – para que se mostre. A Verdade, a altiva com ‘V’ maiúsculo na qual muitos acreditam, precisa ser parida, descoberta, trazida à luz. Porque naturalmente Ela recusa aparecer.

Via de mão dupla

Por segundos cheguei a acreditar nisso tudo. Parecia bonito, parecia ser a saída, parecia ser alcançável.

Depois que sentei no chão, pensei que fora tolo ter acreditado nisso. Era só uma digressão da minha mente, um erro no meu software de fábrica. Eu sorri e me senti uma criança ingênua.... Pior que isso: um adulto ingênuo.

Mas me levantei do chão e assoei o nariz. Joguei o lenço de papel pela janela, ignorando que um pouco mais adiante havia latas de lixo recicláveis.

A partir de então, comecei a fuder com o mundo cada vez que o mundo fudesse comigo.

Mas eis que ao pegar o elevador, ele estava sozinho ali dentro. E me perguntou se eu estava bem, se eu precisava de alguma coisa, e me ofereceu um lenço de papel. Sorriu ao estender a mão em minha direção.

O mundo, mesmo fudido, ainda é bom.

Frase do dia

"Toda mulher é um pouco Britney Spears"


Espelho, espelho meu

Oi! Bom dia!

Desculpe deixar isso escrito com batom no teu espelho, mas não achei papel nem caneta. Eita espelunca!

Tou levando dois cartões de crédito teus.

Um vou usar pra pagar a academia, outro pra pagar um sutiã novo (que esse tu rasgou, safado).

Peguei $50 da tua carteira pra eu voltar pra casa. O que sobrar do táxi compro em maquiagem. Esse batom aqui é um lixo.

Não achei minha cueca, ela deve estar em algum lugar do teu quarto. Cuidado pra tua namorada não achar por aí! Da última vez que vi, tu tava com ela na cabeça (de cima).

Gostei de ti, bebezão. Já vi maiores, mas foi gostoso.

Me liga: 914......

[acabou o batom e não tem lápis de olho]

Inventário

Ele queria que houvesse mais que pudesse dizer, mais que pudesse escrever. Mas quando teve a oportunidade, ou as oportunidades, ele só disse de um jeito apagado, bem baixo, num tom de voz lento e quase inaudível, que tudo o que sentia era uma pequena alegria de poder contar com aqueles sentimentos todos guardados embaixo do imenso guarda-chuva que é seu espírito.

Um pequeno montante de alegria para um pequeno orçamento de futuro, uma pequena quantidade de alegria para pouco corpo. Não era uma dose cavalar, nem uma dose única e concentrada. Era um pequeno projeto, um singelo projeto para quase nada de convívio.

Ele queria que fosse mais e maior, mais profundo e mais denso, mais incontrolável e mais descontrolado. Não era, todavia. Era simples e sem rebuscados, era fácil e leve. Quis devolver tudo o que havia juntado em todos aqueles instantes, passar um pano úmido sobre as prateleiras, juntar o pó acumulado e devolvê-lo num envelope fechado com sua saliva. O pó e uma pouca gota de saliva era tudo o que havia pra devolver. Nem o tempo, nem a energia, nem os planos, nem a confiança, nem a dor que sentia poderiam ser reembolsados. Eles eram seus e somente seus.

Discretamente disse adeus àquele mundo particular que ambos construíram. Pequeno e singelo mundo particular, mas que por mais humilde que fosse teria que ser divido na partilha dos bens. Pois era um bem comum aos dois. Para evitar ranger de dentes e decepções, abriu mão de sua parte, que não era muita: duas trepadas inesquecíveis, três porres homéricos, um amigo valioso e duas receitas deliciosas. Assinou o papel onde constavam as cláusulas da divisão.

Em pequenos movimentos foi se distanciando, quase tão imperceptível quanto quando disse que acabara tudo, isso porque achava mais elegante sair como chegara. E chegara em silêncio, se postou ali e ali fez seu universo. Numa pequena área do coração alheio semeou planos, e à medida que deram frutos colheu-os e saboreou-os. Não edificou casa para morar, nem rede para se deitar. Só ficou ali para ver os brotos crescerem e darem novos brotos, certificando-se da sua capacidade de plantar e da capacidade do outro de fertilizar.

Com passos curtos se foi indo embora, sem olhar pra trás, mas sorrindo e acariciando em si as coisas belas, as coisas doces que ficaram sob sua tutela. Adotara a nobreza e a honestidade de ser pai cauteloso, pai zeloso, pai atento. Levava consigo seus filhos, não todos, mas apenas aqueles que quiseram acompanhá-lo. Foram com ele a esperança de surpreender-se com ele próprio e a dúvida nas previsões – ou seriam profecias? – mais pessimistas que o garantiam castigos terríveis por não ser capaz de amar. Foi com ele também a culpa de ter plantado sementes, de tê-las cultivado e de ter colhido seus frutos, culpa de deixar as árvores bem crescidas, de folhas verdes e galhos robustos, com seiva fértil, culpa de retirar-se como jardineiro mesquinho.

Cartas a uma Jovem Bicha - A bicha em crise

"... Isso é ridículo. Queres inspirar desejos ardentes. Quando todos te odiarem, chamem a atenção deles, porque algo haverá de errado. E quando todos te amarem, por favor, te interne, porque será patético. Te levantas para abrir mais a janela; têm feito uns dias infernais ultimamente, chuva que é bom, nem pensar... Mas tem umas nuvens para aquele lado, é isso que tu vês? Teus outros amigos? É, tu sabes porque eu te pergunto. É só a mim que tu recorres quando estás desse jeito, não é mesmo? Teus outros amigos não sabes se perdeste pelo caminho, se nunca os conheceste, ou se ainda estão por vir. Eu também não sei onde eles estão.
Quando te olhas no espelho, vês um grande ponto de interrogação com cabelos desgranhados, barba por fazer, nariz cravejado de espinhas e uns olhos tristes, fundos, que não olham para fora, nem para dentro, que olham para algum lugar que definitivamente não sabes onde fica... E teus olhos ficam olhando para esse lugar indescritível, indiscernível, inexistente por horas. Não sabes o que és, sinceramente. Poeira cósmica, talvez. Teve um cientista que disse uma vez que todo o ser humano um dia foi uma estrela, que todos nós somos poeira de Supernovas. Sabe lá, não é?
E de repente tu percebes que é bonito... que tá começando a chover.... e chove forte, sim? Tu fechas a janela, espera ali por um instante. Achas linda a chuva. Essa água fecunda, divina, que cai do céu como um presente dos deuses para nós. Essa água deve ser milagrosa, tu pensas. Acreditas que a água da chuva seja capaz de fazer botar no espírito de cada pessoa um sentimento de tolerância, de admiração, achas que ela é capaz de levar embora o peso inconsciente que carregamos. A chuva é solitária... Por muitas vezes te deprimiste andando sozinho na chuva, de madrugada, as ruas vazias, e tu estavas debaixo de muita água, todo molhado, perguntando para os deuses por que estavas lá, chorando junto com o céu, indo de volta para casa. Doía, não é mesmo? Mas também achas que a chuva é romântica... Achas que deve ser legal namorar escutando a água bater na janela, escorrer pela calha, ver o céu cinzento, sentir o vento e o cheiro que essas tempestades trazem. Os relâmpagos, os trovões, o medo daquele barulho bravo; um abraço de aconchego, um beijo de segurança. Transar bem gostoso sabendo que o mundo lá fora está todo molhado, e dormir abraçado, “de conchinha”, embaixo dos cobertores, sonhando com um dia de sol na praia..."