Um mês antes do Natal

[...]ada. Não tinha taça, nem vinho, nem roupa de cama, nem água. O beijo, por mais suculento, não tinha nada. E um mês antes do natal ele enfeitou a árvore: que linda árvore com bolas e folhas, e luzes, e galhos. Nada de mais sedutor que as palavras escritas com obscuro do verão do hemisfério sul. O braço, eu me pergunto sobre o braço: ele sente sono? Porque, não: eu não te amo. Mas nada me impede de cair por ti, de afeições e afagos, e nada te impede de aproveitares isso, um sorriso ou uma conversa, ou um abraço, ou uma coisa linda qualquer. Não me seduza com tua inteligência ou com teu frio, com tua frieza, tua terra é fria. Mas me conceda o passaporte, e o visto a tempo, me deixe entrar, me deixe carimbar essa lente louca que me olha e que me julga querendo ou não entrar na tua terra. Se teus olhos já passaram por aqui – de servidor público ou de desempregado, de solteiro ou de casado – tu é quem decide se deve ou não fechar a página ou continuar escutando nossas vozes agudas, de adolescentes, falando sobre essas coisas íntimas e bonitas do qual falamos. Não me responsabilize por tremer ao te ver, ou por comprar um café pra tomar contigo. Não me responsabilize por essa fome, ou solidão, ou vontade de beber toda a garrafa de champagne: eu vou bebê-la, o que não significa que eu não penso em ti, ó gordinho lindo, coisa mais bela da minha semana! Sem que se peneire quadro a quadro, nada haverá de sustentar qualquer toque ou gozo sobre minha pele. Retome isso. Decore. Nada haverá sobre minha pele. Um olhar me vale mais do que essa coisa branca que despejas em mim: um beijo? Uma mentira? Não me surpreende que tu estás nesse casamento. Porque casamento é isso mesmo: aquilo que te faz tirar a primeira gota de sangue do tórax. NADA. Uma praia branca vazia. Habite-se. [...]

Zelo

[...]mpre o mesmo banco, mas nunca os mesmos homens. Porque eu passo correndo por ali, literalmente correndo, e vejo aqueles homens sozinhos, insulares, sentados nos bancos e se articulando através de olhares que te escaneiam. Centopeias oculares, flexo e reflexo. Eu poderia passar por ali dois séculos depois de hoje e eu ainda acharia rastros desses olhares – sem dúvida não acharia os mesmos homens, tampouco o mesmo jogo de flexo e de reflexo, mas eu acharia algo todo novo e inusitado que, de certa forma, seria um quê herdeiro dessa disponibilidade, dessa disposição, dessa inquietude dos homens que se sentam naquele banco. Uma beleza tardia se despencou na minha frente: nunca a supus, e quanto tempo perdi procurando-a e produzindo-a sentado num banco que nunca mudava. Sem medos ou esperanças: o que se faz diante dos meus olhos? Aquilo que se arrisca no olhar, aquilo que fulgura; aquilo que impede Narciso de apaixonar-se à beira do rio. É uma água turva, movente, que bloqueia qualquer marasmo ou estado plácido de calmaria que transforma a superfície da água em espelho – nunca haveria de refletir rosto nenhum. E, quem diria?, uma parte toda lisa de mim te absorve e te reflete, te irradia. Flexo e reflexo. É mentira que as pessoas deixam o céu aberto porque não querem se molhar: é a chuva que chega e que se gruda nos corpos querendo ir embora das nuvens. Nunca percebeste? Então vem, te gruda em mim, corre no meu entorno, que eu te espero com zelo sentado naquele banc[...]

O PÓ SOBRE MIM

Num momento de desatino, eu até poderia ter feito algo do qual meu corpo se orgulharia mais tarde. Mas não fiz. Bebi, bebi muito, e beberia mais. Porque pouco me importa a saúde do meu fígado, ou o estado do meu estômago. Pouco me importa a segurança da minha cidadania quando eu sento nas raízes das árvores querendo sexo na madrugada. Pouco me importa a decência das minhas roupas. Eu apenas me perfumo para despistar minhas misérias. Houve um momento de desatino, de grito, de coisa estridente, de barulho. Um momento me perdendo nos olhos, e nos dedos, e na roupa, e na história. E não haveria algo de mais sublime que perder-se na história de alguém? Me conte toda ela, não seja tímido, me desvende tua vida com tua literatura – com aquelas histórias que tu narras e que tua achas que são verdadeiras, ou que sabes que são ficção: são lindas. Me conta do teu corpo, de como ele envelheceu e criou rugas, de como tu cortas a tua pele, de como nascem teus pelos, de como tu te deitas e de como tu comes. Tudo é algo novo sobre mim, espana meu pó pra longe. Eu já deveria ter limpado essa casa do avesso não sei quantas vezes, seus vidros, suas louças sujas, suas tolhas pra lavar. E eu faço: minha tristeza é não ter mais vidros, mais louças, mais roupas, mais pó. Eu não sei se há mais perguntas a serem feitas, mas também não te convido para entrar, pois há tantos outros que eu convidaria para entrar, há tantos outros com quem eu passaria uma noite, ou uma tarde, que já não sei se tu és tu nisso que eu quero. Não sei se tu é pó ou espanador. Nem mais a bebida eu aceitaria depois disso. Quando eu me viro pra luz eu vejo que meu corpo todo é recoberto por essa penugem ingênua de quem crê em tudo o que é puro e sincero. Acorde: a vida toda é feita de pequenas perversidades. Não me custaria nada rasgar tua cara, te sodomizar em frente a todos. Tua feiúra grita nessas brechas ocas de uma beleza que não tem nada a dizer, de uma beleza reticente, inabitada até por mosquitos. Um beijo meu te salvaria? É disso que tu precisas? Venha cá, te dou de bom grado tudo o que tu precisas para uma viagem migratória, um cruzeiro em alto mar, uma noite em paz. Te dou o que precisas, eu sei que posso. Jamais escreverei palavras de amor, mas os meus murmúrios e meu pó vão ecoar, como ondas, nesse teu labirinto opaco – que truque interessante, apagar tua luz: tudo em ti brilha pros meus olhos. Não tens como te esconder.