Retorno de Saturno

Apressado meu Saturno. Retornou ao seu grau de origem cerca de 4 anos antes do previsto.

Subitamente, ou não, uma profunda inconformidade com a razão, com a racionalidade, com os planos e com as estratégias que não foram bem paridos. Gestação rápida, in vitro, que colocou no mundo essa coisa estranha que sou hoje, essa entrecruzilhada justaposta. Não há caminhos, nem por cima, nem por baixo.

Caminhos impossíveis:
O caminho da frente é só terror [recusas, batalhas por um palmo de terra, discussões sobre um conceito, diferença mínima entre o grito e o silêncio {a não ser para o currículo lattes}, negações, reprovações, frases mal colocadas, resumos mal feitos, apresentações mal planejadas, inércia, invisibilidade, mais-uma-gota-no-mar-de-teses-e-artigos-sem-que-o-volume-do-todo-se-modifique, frustração, análises e sínteses deslocadas, mau planejamento, mau argumento, repetição não-diferencial, ventríloquo, fontoche, puppet, 4 encadernações com 4 formulários preenchidos e 4 vias homologadas até o quinto dia útil do mês {o pagamento NUNCA é feito no quinto dia útil do mês; não obstante minhas obrigações devem seguir à risca um calendário pouco afeito às elasticidades}, defesa, anteprojeto, banca, defesa, projeto, defesa, tese, título, defesa {se há defesa é porque há ataque}]. Sei que tenho pouco fôlego para esse afogamento em vaidades e citações bibliográficas. De qualquer modo, não é afogado que me imagino morto.
O caminho de trás já se fechou – e jamais esteve aberto. Vim dar aqui onde estou, em primeiro lugar, porque nunca planejei, porque nunca desejei, porque ao me deitar na cama à noite, até pegar sono, nunca construí sonhos com tudo o que vivo agora. Vim dar aqui onde estou porque, desde criança, sempre gostei da contramão, da contra-corrente, de acelerar no sinal vermelho, de estacionar em fila dupla, de sentar no banco do motorista e ir manejando o volante e as marchas como se o carro estivesse em movimento [quando na verdade estava parado dentro da garagem de casa, e meu pai estava dormindo sem saber que eu roubara as chaves]. Vim dar aqui porque fui pululando de não-em-não, espremido entre algumas poucas possibilidades que chegaram a me cuspir nesse ponto. Tenho pouca paciência para esse esmagamento incalculável que me empurra de um lado para outro. De qualquer modo, não é esmagado que me imagino morto.

Caminhos possíveis:
Pirueta dupla com um carpado de nu frontal. Sexy, porém perigoso. Posso decidir que vou dando de mim a quem quiser, fazendo a linha Geni acadêmica; posso ir vendendo meu corpo como mão-de-obra e minha [rasa] capacidade de reflexão a quem quiser ouvir minhas advertências e meus conselhos. Michetagem intelectual a $100 hora/aula. Posso escrever maravilhas para o governo, ser financiado e viver a vida repassando alguns mil das contas públicas para minha conta pessoal sem que haja nenhum monitoramento nem avaliação dos usos e abusos que vou fazer do dinheiro que você, caro cidadão, paga todo ano à tigresa de unhas negras e íris cor de mel [leão? Imposto de renda no Brasil tá mais pra tigresa que pra leão]. E quando cansarem dos meus pareceres? E quando não houver mais bichas morrendo de aids? E quando, finalmente, todos nós nos reproduzirmos por derivação e ninguém mais se importar com as {vômito} identidades sexuais {arroto}? Meu corpo não está sendo esculpido a goivas gregas [e aveia em todo café da manhã, 0% de gordura e reduzido teor de carboidratos] para morrer depois de uma sessão de tortura tupiniquim numa sala qualquer da Polícia Federal para em seguida ganhar as capas dos jornais como “A BICHA ESTELIONATÁRIA QUE SE MATOU NA PRISÃO DEPOIS DE ENFORCAR-SE COM SUA CUECA CALVIN KLEIN”. De qualquer modo, não é torturado que me imagino morto [nem me imagino morto e vestindo uma cueca Calvin Klein].
Triplo mortal de costas com fio-dental. Exige treino, concentração, obstinação, foco, tanto quanto os antigos samurais eram disciplinados pelos seus mestres [vide Kill Bill 2, a própria interpretação do Retorno de Saturno]. O problema é que não sou samurai, sou um cigano com desvio de déficit de atenção que está em tratamento com ritalina e lorazepam. Nômade, meu pensamento e meu corpo creem que o pior labirinto é a linha reta [maldito filósofo francês que me ensinou isso!]. Eu quero, eu desejo, eu acho que consigo. Mas sinto que fracassaria, sinto que não teria paciência, não teria força. Ou melhor, sei que tenho a força [momento He-Man, aquela Barbie loira passiva que confundiu tudo na minha cabecinha], mas acho que minha força iria se dissipar, iria encontrar curvas, iria se desprender, porque minha força raramente encontra alvo fixo e sempre vai-e-vem aos turbilhões, atirando para todos os lados sem acertar em nada exatamente, sem rasgar nenhuma jugular. Só arranha algumas veias periféricas. Minha força não é mortal; ela pode matar, mas é demasiado pulverizada para fazer morrer. Mas seria maravilhoso poder terminar de costas para o público, depois de desenhar no ar três círculos com minhas pernas e meus braços; de costas para o público que acha que é loucura largar de tudo para reaparecer num outro ponto da espiral; de costas para o público e mostrando minha bunda branca/flácida de desprezo a todos os mal-comidos, brochas, paus-pequenos, ejaculadores precoces, frígidas, recalcados de todos os gêneros, conservadoras carolas e moralistas. Seus olhares de raiva sobre mim são um verniz de orgulho. Porque eu teria esnobado suas expectativas, teria desdenhado de seus planos para mim e teria cravado meus pés no solo depois do triplo mortal com fio-dental que alguns achariam ridículo e infame, outros achariam justo para com eles próprios [menos concorrência para a vaga de Professor Estúpido nível 1], outros chorariam e se perguntariam, rasgando suas roupas, “por quê, meu deus, por quê?”. E eu extasiado, simplesmente por ter conseguido vestir o fio-dental e dar três giros no ar, sem saber se no chão eu pousaria com sucesso. Esse público perverso deixaria que eu morresse sozinho, no meu apartamento próprio de 1 quarto em Petrópolis, encontrado dias depois de fazer-a-passagem porque os vizinhos chamariam os bombeiros devido ao mau cheiro da carne em avançado estado de decomposição [será no ápice do verão úmido de Porto Alegre que vou deixar este mundo, porque ninguém merece o verão, e minha morte será a mais profunda manifestação de desgosto por esta estação do ano], estendido em frente à porta de entrada [os bombeiros teriam dificuldades em abri-la porque meu corpo a emperraria], com o braço direito alongado e o dedo indicador sobre o número 9 do telefone [“coitada desta bicha”, diriam alguns bombeiros gostosões, “ainda tentou discar 192 para pedir ajuda, mas não conseguiu”. É, bofe, mas antes disso consegui trepar com o michê e me dar conta que ele já ia me dando um boa-noite-cinderela, coloquei o michê pra correr com uma faca de cortar carne, dei um talho no rosto dele, ainda voltei pra casa, escrevi duas cartas de adeus pra dois amigos queridos {aqueles que talvez não tenham me apoiado em todas as minhas decisões, mas que sempre confiaram na possibilidade de eu arcar com as consequências delas}, tomei um banho, passei uma base no rosto, pus meus cílios postiços, meu perfume Bvlgari e só então que eu decidi ligar pra SAMU pra pedir ajuda. Se não fiz antes foi porque eu simplesmente NÃO QUIS, bonita.]... É... Assim eu me imagino morto.