eu posso, na verdade, falar de pedaços, fatias ou cortes. cada um tem sua história. cada um grita mais alto que o outro. mas tem algo que atravessa os pedaços, fatias ou cortes: a coisa separada de si. é, na verdade, a primeira coisa que vivemos, acredito. nos tiraram de algum lugar de onde jamais sairíamos. as mãos e os pés já se separam no primeiro choro: e eu quero estar com os vizinhos que cantam Djavan - e eles contam com backvoice inclusive. estarei eu no apartamento certo? claro que não estou. ...."que me remete ao frio que vem lá do sul"... isso é a coisa menos descobridora do mundo. mas abre algo, o frio: o frio abre. porque agride e fragiliza, e porque marca uma aproximação dos corpos que o verão apenas põe em urgência. a urgência sempre houve, ela atravessou o frio. eu posso recusar tudo, o vínculo em si. a única coisa que eu sei do vínculo, e eu posso acabar com minha vida toda por acreditar no vínculo. eu quero legislar sobre o vínculo: tu não pode sobre mim e eu não posso sobre ti. nem tua voz que grita cantando no outro apartamento. que bonita tua voz que me chega do outro apartamento. ela canta uma canção de resistência. devo eu lembrar da sua canção quando eu estiver num porão sendo torturado? é a minha fantasia: torturado. minha epifania: vocês cantando no outro apartamento. "passar a noite em claro dentro de ti". jamais poderia. quero saber o que posso fazer de fantástico para poder apresentar-me dentro de alguém. (temo jamais poder.)
o dia em que eu não souber onde eu estava, qual meu propósito, a bebida que eu bebia, com quem eu estava, o que eu fazia, os filhos que vocês tiveram, e que eu eventualmente teria, os pais que eu tenho.... pois se fosse hoje: eu aceito ficar sozinho sob o protesto de ser o primeiro a saber que não posso estar sozinho porque minhas fraldas estão cheias ou porque os drenos não se desligam sozinhos. desliguem tudo, eu quero somente paz. deixem-me. uma coisinha pequena que se esvai. sozinho.