o problema do meu escritório é o meu vizinho.

Desculpe, eu não entendi.

o problema do meu escritório é o meu vizinho. o vizinho do sétimo andar do bloco h. é horrível pra mim, não consigo me concentrar no meu trabalho, nos meus estudos, nas coisas que tenho para fazer. simplesmente não consigo.

Por quê?

todos os vazamentos do apartamento dele dão pra janela do meu escritório. todas as entradas do apartamento dele estão viradas para minha janela, menos a porta principal, que obviamente comunica com o corredor interno do prédio.

Vazamentos?

sim. a sacada, a imensa janela da sacada, a porta da área de serviço, a janela de um quarto, de outro quarto e do banheiro. todas as aberturas, as linhas pontilhadas que conectam onde ele mora com o resto do mundo dão direto pra minha janela! [as mãos, em forma de garra, agarram os joelhos.] qualquer movimento que vem de lá, qualquer coisa me assusta, captura meu olhar, me chicoteia e dói em mim.

E por que isso te deixa tão nervoso?

porque ele é lindo. eu já o vi na academia do condomínio, já o vi circulando sem camisa na sacada. lindo.

[Silêncio.]

ontem eu ouvi a voz dele. foi desesperador. [apoia a testa em uma das mãos, fecha os olhos.] ele pediu ao vizinho de baixo que deixasse para outro momento do dia a serragem de canos, pois tentava estudar e não conseguia por causa do barulho. puxou mais alguma conversa sobre o tempo, falaram alguma coisa sobre uma ambulância. [abre os olhos e mira pela janela pássaros que voam.] isso me debilitou. fiquei atordoado. a voz dele não saía dos meus ouvidos. o cabelo pendendo sobre o rosto. o corpo alto e esguio que cabe em qualquer calça, em qualquer cueca, com a mesma graça.

É a beleza dele que te perturba?

é a minha falta de beleza que me perturba. ele só é a coisa mais cintilante próxima de mim que me mostra que eu jamais serei assim, nem nunca fui.

[Silêncio.]

eu já desisti, nessa vida.

Eu discordo.

Ahn?

Eu discordo. Eu não acho que tu já desistiu. Pelo contrário, eu acho que tu continua tentando. Por isso que teu vizinho te perturba tanto.

não. acabou. o vizinho é a prova de que não há esperança pra mim.

O vizinho é a prova de que tu tá vivo e continua tentando.

eu nunca vou ser bonito, nunca vou ter aquele corpo.

Eu não estou falando de beleza, nem de corpo.

Tá falando de que, então?

De vida, de esperança. Foram as palavras que tu mesmo acabou de usar.

[silêncio.]

Talvez fosse o caso de des-insistir em vez de desistir.