duas cartas sem sangue

[não vou concluir este post, que era a ideia original, porque me descobri uma pessoa feliz.]

A CULPA É O QUE GARANTE A UNIDADE DOS EVENTOS

[carta 1]

oi, Pequena. me surpreendi com teu email. falei com a D., e ela me disse que tu tinha voltado do rio pra sampa, que tinha encontrado outro apê na zêéle. tomei a liberdade de pedir pra D. teu endereço e te escrever esta carta a mão, comprar envelope, ir aos correios, colocar selo, tchá-tchá-tchá. quis ser analógico, romântico. "conservador", tu diria. ainda diz?

hoje o dia foi lindo, e acordei feliz. e decidi te escrever, feliz.

também sinto saudades de ti e também sofro um pouco ao lembrar da nossa criança. e acho lindo tu te referir à criança como "nossa". obrigado por me contemplar nas tuas memórias como pai da tua criança.

e agradeço também por tu te referir a mim como "a mais profunda e leal das tuas paixões, por mais que passageira". incomoda um pouco, mas é lindo. me reconheço enquanto alguém profundo e leal. e acho que o fato de eu ter sido "passageiro" diz mais sobre ti do que sobre mim. e isso não é uma crítica, é um elogio. porque tu sabe que os encontros entre as pessoas são "passagens". passamos, pois. nossa criança, passarinho.

tu fala sobre nosso fim. eu penso - sinto - ainda sobre nosso começo. tu me perguntou "o que nós temos, afinal? o que estamos vivendo juntos?". e eu respondi. dei uma definição, uma palavra para nós. a letra mata; ali morremos. tu tentou me dar uma criança, e nós dois fomos incapazes de dar um nome a ela. incapazes não; a morte foi mais rápida. nossa criança nem tocou a linguagem.


[carta 2]

não entendi esta tua msg. depois de mais de um ano tu ainda tem meu whats?

depois de mais de um ano tu ainda pensa em mim? seria ridículo se não fosse patético, sofrível. revoltante.

arrastei meu cu no asfalto quente do minhocão, sabia? e tudo do que lembro de ti, das memórias e trechos de fala, tão numa zona de muito sofrimento pra mim. então, respondendo:

não te quero mais na minha vida. qual a parte sutil dessa frase tu não entendeu?

uma amiga morreu de câncer semana passada. sabe no que eu pensei? "poderia ter sido eu no lugar dela." sabe o que mais dói disso? não é pensar em morrer. todo mundo deveria pensar em morrer, eu perdi uma criança de quem eu era pai. a morte tá aqui do outro lado da pele.

o que mais dói é pensar no que eu penso de mim mesmo a ponto de achar que não tem mais lugar na vida pra mim.

e, sim, tua passagem pela minha história tornou meu cercadinho menor. porque acreditei nas tuas mentiras e porque achava correto tu me detonar, me espezinhar e me desprezar. achava que tu tinha razão. e não tinha, e não tem.

não adianta comprar um novo chip e mandar msg. sim, eu te bloqueei.

e vou seguir bloqueando, bem como eu faço com os números de telemarketing.

porque tu não passa disto: um desconhecido que vende algo mentiroso.

e algo chato.

quer saber se sinto saudade?

então acompanhe:

0:00 sou eu correndo na direção contrária de ti.

0:32 sou eu com coragem.

1:03 sou eu na solidão da direção de um carro, pra distrair.

1:10 sou eu na distração do artesanato, pra reconectar.

1:19 sou eu tentando me apaixonar.

1:24 sou eu tentando ser mais bonito, pra variar.

1:35 sou eu esperando, sem chegar.

1:43: sou eu trabalhando.

1:51 sou eu experimentando, apostando.

2:03 sou eu com frio na barriga.

2:11 sou eu como meu pai. e sem vergonha.

2:19 sou eu.

2:27 sou eu apostando, como apostei em ti.

2:35 sou eu viajando, pra esquecer.

2:43 sou eu viajando, pra conhecer.

2:51 sou eu ouvindo aquela nossa primeira música.

2:57 sou eu fazendo as pazes com aquela cidade.

3:03 sou eu na companhia de quem não sabe que eu existo.

3:07 sou eu quando tu te aproxima.

3:12 sou eu quando tu acha que é macho.

3:18 sou eu quando me acho feio.

e assim sou eu com saudade de tu.

hoje meu coração disparou PARTE FINAL

[a trilha sonora deste trecho é "menina, amanhã de manhã".] 

não me vinguei, em fim. não sou vingativo. não fui feliz, como eu havia previsto e desejado.

não houve velório. só houve a convalescença da Pequena. alguns amigos fizeram uma cerimônia ao pôr-de-sol de despedida pra a criança. nenhum dos parentes do Rio vieram prestar seus pêsames. eu tentava apoiá-la com minha companhia, mas ela rosnava cada vez mais alto. ouvi de um conhecido que toda a situação só poderia ter sido castigo das deusas gays. percebi que meu namoro com a Pequena sempre fora objeto de piada. inclusive pra ela própria. e agora a piada tinha ficado sem graça. eu ouvia até as paredes rirem de mim, como pai. o cheiro da marginal tietê era o aroma do deboche de mim, como namorado: podre, e a metade de são paulo ainda cagando ali. suportei dividir o apartamento na zêéle até o dia em que eu ouvi a Pequena levantar de manhã cedo e ligar a caixinha de som JBL no spotify. até então, eu dormi as noites em um amontoado de colchas e edredons arrumado onde antes eu havia montado o berço da nossa criança. a Pequena dormia na cama de casal, um casal que nunca existiu, no quarto ao lado. não nos falávamos no cotidiano. no dia em que ouvi a playlist de samba às seis e meia, pela primeira vez em meses, eu refiz minhas três malas. ela voltara a desejar. ela quis me dizer algo quando me encontrou na sala, mas eu a impedi. "estou indo embora. pode ficar com os meus móveis." ela arregalou os olhos, mais de raiva do que de surpresa. vi nas rugas dela a contrariedade de não ter podido me convidar a deixar o apartamento. diferentemente de quando eu cheguei, minhas três malas estavam mais leves.

chovia naquela manhã. um mês se passou desde que eu fui embora do apartamento da Pequena, só fez sol. quero interpretar essas condições climáticas como um sinal. foi necessário, tanto pra mim quanto pra Pequena, ser livramento um pro outro. o sol é livramento, é claridade que ilumina. havia morte no meu sêmen?, morte no útero dela?, morte nos nossos corpos que não poderiam ter se encontrado para desejar vida?, o sol está dizendo que sim. porque está tudo aí exposto: a morte de uma criança que não mereceu velório, nem luto. está tudo aí exposto e a claridade mostra: não seja pai; sua vida não fertiliza outra, não nutre outra. a última vida da linhagem carregando três malas leves do tatuapé até santa cecília, onde haverá de encontrar um lugar pro seu desespero, refazer um ninho onde nada vibra, nem o assombro de perder o que tinha de mais precioso. uma criança que nunca fora sua.

e Nestor... é uma borboleta escura que cruzou meu caminho, saindo da minha cabeça. nunca o esqueci, nem quando sentia pela Pequena tudo de mais grudendo que existiu, como a lealdade de um pastor alemão. eu fui um cão pra Pequena, acompanhando-a, às vezes defendendo seu corpo. mas não senti por ela o mesmo que senti por Nestor. não, isso não foi traição. nem mentira. não escondi o que tinha acontecido entre mim e ele. porque ainda quero poder me apaixonar por outro homem como eu me apaixonei por Nestor. pelas pequenininhas coisinhas da convivência: a cueca esgarçada; o sol poente brilhando entre os fios do cabelo dele; o cheiro de chuva quente no asfalto [o hálito da cidade que eu mais adoro] que entrava pela janela onde ele se escorava, seminu. até hoje encontro os pentelhos de Nestor na minha barba - ou assim fantasio com seu rastro em mim. até hoje rio das suas piadas sobre as senhorinhas quatrocentonas, bolsonaristas de higienópolis. algumas pessoas encontram a chave de quartos na nossa memória, se acomodam lá com poucos de seus pertences, e se domiciliam. às vezes abrimos as portas desses quartos e olhamos a míngua na qual se transformaram - mas elas estão lá e ainda falam, ainda gritam. Nestor me habita nessa condição minguante, com uma ou duas malas pequenas onde cabem sua cueca esgarçada, seus cabelos desalinhados, sua barba e seu humor. e eu talvez habite um quarto, uma varanda ou uma gaveta da memória da Pequena. ela nunca foi o tipo de pessoa que revira gavetas. sempre que o fazia encontrava algo que julgava perdido, já absolutamente esquecido, e se dava conta de que ela própria tinha criado uma narrativa pra a perda daquele objeto qualquer, que era uma mentira. ou melhor, uma fantasia - a Pequena fantasiava muito. fantasiou a nossa criança. e eu acreditei na sua fantasia, naquilo que ela dizia que sentia por mim e na relação que ela queria ter comigo. não foi traição, nem se trata de mentira. eu estava em surto, atravessado por uma psicose de paternidade. um pai psicótico é risco de morte-e-vida pra uma criança. ainda bem que a nossa criança morreu antes de vir à luz. porque a luz expõe tudo. e a luz a qual a criança seria dada exporia o pai psicótico que a fertilizara. a colher de sopa de loucura que há no meu sêmen iria reluzir, como o sol por entre os cabelos de Nestor.

[a trilha sonora deste microtrecho é "adoração"]

e Nestor na Pequena... ou sobre quem eu quis que ela fosse, esse homem que eu procurei nela, eu me desculpo. eu peço desculpas por gritar truco a cada vez que ela dizia apenas "sim". fiz tudo por ti, porra, e tu me esquece, me substitui nessa criança nascida morta, o que mais tu quer de mim?, cara rasgada ou dente caído, eu te amo, ou lábio destroçado?, eu todo pra ti, teu corpo todo me serpenteando, e a flecha do ciúme sempre me acompanhando porque pra ti sou nu, sou translúcido, me pega e me atravessa, me toca, o elevador tá gritando que alguém vai descer no meu andar, eu lembro de não pegar elevador e seguir num corredor longo, amarelo, e eu dei de cara com um rapaz por quem eu poderia ter vivido a vida inteira em sorrisos e pouco dinheiro, às custas de qualquer auxílio estatal, bolsa-meu-cu-que-seja-eu-te-amo, era diego o nome dele, eu jamais quis ter outra filha, nenhuma filha, já tive um no Chile e chama-se Estebán, e minha dor mais imensa é ser sozinho, sem nenhum toque grosso, nada na pele branca, nem um arranhão teu, essa pele branquela e ridícula que não tem história pra contar que não seja de escravidão, eu te grito pra tu voltar e sei que tu não volta nem que eu pague nem que eu lamba a linha vermelha inteira, eu te lambo, eu te grito, e não tem nada na vida que faça teu samba descompassar, eu prometo que cuido da tua buceta linda, e te como, eu te como, viado que sou, tua buceta linda eu como porque eu sou tu aqui atrás, no mais lindo do teu bacanal, seu viado filho da puta, não enxergas que sou eu sustentando toda tua malemolência e acidez, porque não acho que tua putaria te garanta um lugar muito - como gato, como leão, ou como uma coisa felina que pousa as patas arredondadas na terra e marca -, tu é rio, eu sou margem, não vês?, eu sou tu ao contrário, e quando eu perco tudo [eu perdi tudo por ele, meu dinheiro e meu respeito, e é aí que ele me acha comum] tu escolhe viver a vida com outro, O OUTRO, por quem nada haverá de surgir, nada de belo haverá de iluminar a linha da tua pele quando tu não quiser acordar às seis da manhã pra trabalhar, e eu estava lá pra te fazer café, mas vejo e sinto que não é isso, "não é sobre isso" como dizem teus amigos hipsters, é sobre o quê?, seu filho da puta previsível, eu sei de todo teu desejo como quem assiste a um filme VHS, rebobino teu gozo, e vejo que tudo o que experimentei é só e tão somente essa farsa, fascinante, que é tu, e venha deitar na nossa cama, que falta faz cada pentelho teu na nossa cama, cada suspiro e ronco; volta; não posso lidar com o mínimo que tu me dá; mas que mínimo, a final, que não seja aquilo que pensamos de nós próprios; minha voz e minha pele, e meu sorriso, são todos teus pra tu trocar pelo sorriso desse OUTRO que tu pensa ser melhor que eu, e eu que não penso ser melhor que numa vez que usamos emedê, eu era todo, tu nem tanto, havia uma parte de ti que achava outras saídas de mim, e eu te seguia, te perseguia, e lá ia tu saindo de toda intimidade que eu havia criado, não era cafona nem mofada, tinha cheiro de benjoim, e tu disse que eu "procurava macho" quando era tu, apenas, que fazia todo o sentido naquelas paredes que hoje eu preciso pintar, seu filho da puta, eu tenho que pintar as paredes onde eu fermentei teu corpo e tua voz, tá tudo ali, seu filho da puta, não tem demão de tinta que dê conta do que eu senti por ti, seu filho da puta, meu cu era todo teu e minha pele rasgada, velha, caída, minhas olheiras, eu tentei te acompanhar nas drogas mas [como cão] eu uivei, e acabei num cubículo em perdizes, cep zero um dois três três, e o caralho, era tu, seu puto, que viveria comigo pra todo sempre, mentiroso, desonesto, era sobre você estar naquela casa da qual não consigo mais desapegar, e pago rios de dinheiro pra tentar desfazer, e se agora estou desempregado é por tua culpa, inteiríssima culpa, mas como sei que tu não sente culpa eu só te desejo solidão. estar consigo. porque deve ser como um dildo pequeno no seu cu quando tu pede pra ser humilhado. uma camada de nada. o pior dos fracassos. 

[a trilha sonora deste microtrecho é "fina estampa".]

eu sempre me imaginei nesta situação exercendo alguma dignidade. agora, pelo retrovisor dos dias, sinto que tive pouco - e o pouco de dignidade que eu tive serviu para que todos em minha volta me achassem i) grosseiro ii) insensível iii) doente. disseram que eu "esqueci da Pequena muito rápido"; que eu "excluí Nestor da minha vida abruptamente"; que eu "mudei e des-mudei como um homem cis branco católico pequeno burguês safado e arrogante, que monta e desmonta casas como se de cartas fossem". não gostaria que pensassem isso, pois é menos de um quinto do que se passou em mim. mais que trepar [também trepar!], eu gosto de contar segredos sobre mim. mais que andar na rua de mãos dadas [e andar na rua de mãos de dadas é pra mim obrigatório!], eu gosto de compartilhar uma noite de sono. eu preparo refeições e as ofereço. eu planejo e executo viagens. se necessário for, eu até canto, até declamo versos da Florbela Espanca. eu monto berços. conduzi com dignidade meus sentimentos por Nestor e por Pequena. aquele escolheu outro; aquela não quis minha criança. isso não é pouco. repito: atravessei meus sentimentos por Nestor e por Pequena com dignidade, o que não significa que eu habitei uma casca, nem que dissociei. tenho cá minhas doenças; nenhuma delas me impede de me apaixonar. e o fiz, duas vezes, na sequência. tive essa habilidade. e fui engenhoso a ponto de me acreditar pai. não segurei minha criança no colo, mas fui seu pai; pai de uma criança que cuidei e nutri. tenho cá minhas misérias neuróticas; nenhuma delas me impediu de me conduzir com dignidade pelos labirintos de Nestor e pelos dreads da Pequena. houve felicidades banais. se me calei, se sumi, se arrumei três malas leves e saí com muita rapidez, foi porque estava a ponto de perder a dignidade. o que vocês veem é uma fina estampa. mesmo quando eu choro, e há algumas noites eu agachei no piso do box chorando no banho, de soluçar, até nesses momentos eu o faço com sobriedade, com motivo. eu perdi minha criança, uma criança cujo sorriso eu desejei. e mesmo tendo enterrado uma criança natimorta, eu ainda me sinto capaz de me apaixonar, de desejar vida pra outra criança, de montar berços, e de arrumar malas leves pra ir embora se for preciso. se amar não for encontrar a morte no corpo do outro, doer com isso e continuar apostando na vida encontrada no outro [apesar da sua porção de morte], nenhuma forma de amor vale o canto. se amar não for isso, nenhuma forma de amor vale a viagem da barra funda à itaquera. se amar não for isso, nenhuma forma de amor sobrevive a são paulo.

[a trilha sonora deste microtrecho é "noite de são joão"]

nas primeiras noites depois do último minuto que passei com Nestor, depois do último minuto que passei com a Pequena, eu só conseguia dormir com remédios. desses fortes, tarja preta, que consegui porque desagreguei das duas vezes e fui atendido em clínicas por médicos que não pouparam receitas controladas. não conseguia ficar em casa sozinho. não conseguia lidar com o escuro, nem com o silêncio. das duas vezes. por isso, eu quase não dormia. e fui criando bolsas de retenção de líquido embaixo dos olhos. e não conseguia comer, o que me fez emagrecer. das duas vezes. meu rosto desmanchou: bochechas caídas num andar abaixo das olheiras inchadas. eu parecia um bulldog em luto. das duas vezes. bebia demais, muita cerveja, porque já que não conseguia ficar em casa [quando eu desesperava era durante os pores-de-sol, quando o lusco-fusco entre dia e noite sinalizava "fim" em toda a cidade], eu apelava pela companhia de amigos em botecos, quaisquer botecos, desses com mesas e cadeiras de praia na calçada. bebi demais das duas vezes. e, com isso, gastava meu salário todo antes do dia 20 de cada mês. quando acordava, tomava café passado no coador e fumava um cigarro bolado [essa prática foi mais intensa nas centenas de milhares de minutos depois do último que passei com a Pequena, porque me lembrava dela]. isso me deu azia. das duas vezes. virei um monstro bêbado. todos esses sintomas de conversão, em verdade punições, passaram depois de meses. quando eu entendi que Nestor e Pequena eram, assim como eu pra eles, substituíveis. sem rancor, sem ressentimento. das duas vezes. passei duas oitavas acima nas minhas canções de amor. e meu corpo também se regenerou. não sinto raiva nem de um, nem de outra. senti pena de mim, às vezes, porque eu era atravessado, no meu próprio corpo, pelo metal da decepção. nem um, nem outra foram decepcionantes. mas eu tinha lá minhas expectativas em relação a ele e à ela, que vinham em tsunamis de frias lâminas. era meu corpo soterrado. não foi só tempo que exerceu cura. foi, também, a humildade de suportar a contradição da decisão, a escolha pelo erro. das duas vezes. me reconhecer humano no erro e na contradição foi o que me curou. pra essa cura não há tempo; há postura. aguentar calado a rocha da imperfeição sobre os ombros. ouvir o grito de quem existe, mas que por sua vez não sabe que existimos, e não tentar se fazer conhecido. conviver com a ignorância do outro sobre nós, e tomar chá com nossos demônios [chá de picão].

hoje meu coração disparou PARTE VI

[a trilha sonora deste trecho é "não é céu".]

chorei por horas e dormi ao lado do berço. acordei de madrugada. a porta do quarto permanecia fechada, e eu não ouvia nenhum som vindo de lá. talvez a Pequena tivesse pegado no sono. peguei a caixa de ferramentas que tinha comprado pra a montagem do móvel-ninho. heranças materiais pra nossa criança - as ferramentas, o ninho. compreendi que era necessária a desmontagem naquele instante, e nos próximos, até que a porta do quarto se abrisse e voltássemos pra o hospital. um parto induzido; um aborto espontâneo. dar à luz uma criança morta. um viado gaúcho pai da criança de uma sambista carioca. estava tudo ao contrário, tudo contradizendo o que a vida poderia ser, deveria ser. um quase-pai de uma quase-criança que indesejou vir ao mundo.

tirei os parafusos e desencaixei as peças de mdf. empilhei uma a uma, da maior pra menor. a cabeceira do berço deixei de pé, encostada na parede. facilitaria sua remoção. eu não suportaria fazer isso. chamaria amigos pra me ajudar. ou contrataria o mesmo carreto que levou minhas poucas coisas pra zêéle, quando fui morar com a Pequena. ou jogaria pela janela ainda à noite. ou poria fogo em tudo assim que a Pequena fosse pro hospital. ou serraria tudo em pedaços, em retângulos, pra fazer um dominó ou um quebra-cabeças, um xadrez que comporia o rosto imaginado da nossa criança. ou construiria um caixãozinho onde nossa criança seria velada. aquele já estava sendo parte do meu velório enquanto pai indesejado.

abri as portas do armário e as gavetas da cômoda. uma a uma, tirei de lá as roupas pensadas para vestirem a criança. eu as desdobrava, abria os panos com as mãos e sentia o tecido, roçando minha pele em cada peça que jamais cobririam o corpo da nossa criança, já morta dentro da mãe. voltava a dobrá-las para colocá-las dentro de uma mala. a Pequena quereria doar tudo para uma nova mãe, para uma criança viva. eu rasgaria tudo, cortaria partes como mangas e punhos, costuraria as peças desmontadas formando um grande tecido bricolado, revestido com as fraldas RN, preenchido com os montes de algodão, e jogaria nele todo o shampoo e essência "com cheiro de bebê" que eu havia comprado pra nossa criança. e enrolaria o corpo da nossa criança nesse grande patchwork sombrio e perfumado. e poria fogo em tudo. um ritual definitivo de cremação para uma criança quase-viva, realizado por um pai indesejado.

hoje meu coração disparou PARTE V

[a trilha sonora deste trecho é "i get a kick out of you".]

cheguei na casa da Pequena com três malas, quase não conseguia carregá-las. contratei um carretinho pra levar até o apartamento na zona leste, zêéle, meus móveis. fui morar na zêéle, onde o berço da nossa criança estava montado. eu quis tanto um berço, um lugar de conforto e acolhimento; uma manjedoura onde nutrir nossa criança (a criança dela, em verdade); um ninho. a Pequena desprezava ninhos, assim como raízes. ela estava mais pra cardume do que pra matilha. navegava em águas tristes por aqueles dias, eu não entendia o porquê. houve uma manifestação feminista no vão do MASP na tarde mais fria do ano. ela tremia, e eu a abracei. e perguntei a razão pela qual ela não sorria. ela disse que estava cansada, talvez por causa da gravidez. a vida que ela carregava na barriga estava pesada demais pra um corpinho que mal sustentava os dreads do cabelo. mas a Pequena seguia sambando, como numa apresentação de teatro em que o show não poderia parar. o cansaço da Pequena era de outra ordem já ali, e eu não percebi. como sempre, a Pequena me escapava, de mim desviava, onde eu estava quase entendendo o que nela se passava. voltávamos pra zêéle de metrô, a Pequena calada desde a estação Marechal Deodoro. quando paramos na estação Anhangabaú, ela disse: "posso te pedir uma coisa? não precisa lavar a louça todos os dias. nem dobrar a roupa pra guardar no armário. não quero que a minha criança seja toda certinha e sem graça". do Anhangabaú até o Tatuapé quem permaneceu calado fui eu.

esse foi o primeiro momento em que um par de pensamentos me ocorreram. um: a Pequena estava cansada de mim. dois: teria sido melhor permanecer viado.

passei a desconectar da Pequena a partir da estação Anhangabaú. e segui desconectando, a cada dez minutos mais, até nos separarmos. se fosse uma imagem no espaço, isso daria pra muito além de Itaquera. mas a nossa criança estava dentro do seu corpo, e eu continuei orbitando, perto. o movimento de desconectar da mãe e ainda estar com a criança criou uma bifurcação que me rasgou ao meio. a Pequena desejava a criança, a sua criança, e não a mim. tudo bem. era uma forma de reparação histórica, pois meus antepassados usaram o corpo de mulheres pretas por séculos, indesejando as crianças que vinham desse encontro. eu sofria, mas entendia que era melhor assim do que ao contrário: que a Pequena desejasse a mim, e não a criança. pois uma mãe que não deseja sua criança confisca a possibilidade da criança se inserir no mundo, na vida. então aceitei a triangulação. a mãe e o pai desejavam a criança; a mãe não desejava o pai. o pai estava sozinho e sustentaria essa solidão em nome da vida da criança.

a quem eu e Nestor desejaríamos em uma triangulação? passei a pensar em formas de relação aberta, não monogâmica, entre homens. fantasiava com surubas gays enquanto escolhia fraldas RN e pomadas pra assaduras. não ficava de pau duro. porque não se tratava de gozar com e pelos outros. eu queria ter gozado pelo Nestor.

a Pequena já não queria trepar fazia semanas, e estava cada dia mais cansada e triste, calada. eu sustentava cada segundo do seu cansaço, em nome da criança que eu e ela desejávamos. porque a criança nunca teve nada a ver com gozo, com buceta molhada ou com pau duro. a criança tinha a ver com um projeto de vida em parceria, que eu sabia estar em demolição. mas quando uma parede parecia desabar, um teto parecia rachar ou uma viga parecia trincar, eu corria para segurar tudo. porque a criança precisava de uma casa onde ter seu berço. e teve uma manhã de segunda, quando chovia, em que a Pequena desmaiou em casa. disse que sentia náuseas. eu a levei ao pronto-socorro e chamei a médica que a acompanhava no pré-natal. a Pequena foi atendida, levou soro na veia, e uns outros medicamentos coloridos porque, ao que parecia, ela estava anêmica. samba demais, ferro de menos. quando a médica chegou, questionou a Pequena sobre o porquê de ter interrompido as consultas periódicas. a médica estava soturna. foi quando eu soube que havia mais de seis semanas que a Pequena não fazia o acompanhamento. na maca de um quarto coletivo da enfermaria, ela virou o olhar para a janela e chorou. a Pequena estava indesejante. temi pela nossa criança.

algumas horas depois vieram os resultados dos inúmeros exames. a criança estava morta dentro da Pequena. má formação fetal, ou algo assim, que misturava a maldade com a gestação e com um feto espremido dentro de uma barriga, que já não era mais ninho. não seria possível fazer o procedimento de retirada naquele momento, mas dias depois por meio de um parto induzido. nossa criança estava grande demais, ocupando espaço demais, abrindo o buraco da morte fundo demais. para tirar um corpo morto de dentro de um corpo vivo seria preciso todo o cuidado, pois a morte se alastra. e se alastrou. a Pequena e eu tivemos que aguentar conviver com o cadáver da nossa criança por algumas horas, as piores das nossas vidas, até que o parto da nossa criança natimorta fosse realizado. quando chegamos no nosso apartamento na zêéle, a Pequena se trancou no quarto. eu não ouvia sequer seus soluços quando bati na porta e pedi pra chorarmos juntos. ela não respondeu. eu sentei no chão, ao lado do berço que eu tinha montado. e, de novo, senti saudade de Nestor.

hoje meu coração disparou PARTE IV

por coincidência, reparei naquele homem barbudo na praia. eu já tinha tomado algumas caipiroskas; a Pequena já dançava funk. conhecia aquele jeito de parar de pé em uma perna só. as mãos entrelaçadas sob a bunda. mas eu poderia estar bêbado. ou os óculos escuros poderiam estar embaçados pela maresia. ou poderia ser uma miragem, uma fantasia. ou seria a Pequena que chamava muito a atenção do entorno. mas o perfil daquele homem, o nariz de bolota, os cabelos em desalinho, o sol queimando aquela pele: eu já havia estado ali.

Nestor e Pequena estavam na mesma areia, no mesmo mar, sob o mesmo sol. haviam estado com o mesmo homem, eu, que se interpunha aos dois. uma ignorava a presença do outro.

neste dia eu poderia ter tomado rumos mais interessantes pra a vida que seguiria. nem com uma, nem com outro, eu poderia ter escolhido outro alguém. eu poderia ter escolhido ir embora. eu poderia ter escolhido devolver ao mar o que do mar é. poderia, em paz, ter escolhido morrer. de certa forma eu escolhi morrer. prolonguei, entretanto, minha morte. a minha, a do Nestor, a da Pequena. acho que nós três morremos. no dia em que coabitávamos a praia foi quando, talvez, estávamos mais felizes. a Pequena já estava grávida e Nestor estava com seu namorado. e eu, sozinho. não chamei por Nestor, não nos cumprimentamos, acho que sequer ele me viu. eu não informei sua presença à Pequena. ela estava tão feliz, enfim. feliz em fim: no estertor de dia de sol que seria seguido de uma míngua até o golpe mais baixo, até a manhã de maior desespero. até o canto entre paredes onde o escuro desfaz a pele do peito, e os órgãos se dissipam, se estilhaçam, porque o escuro tem boca de piranha e arranca partes de nós em silêncio, em sofrimento. e em primeiro lugar o escuro-piranha morde nossa garganta para não gritarmos. e em segundo lugar o escuro-piranha morde a boca de nosso estômago, por onde vomitamos um sentimento que nem supúnhamos ali. deslizamos a parede do canto onde estamos encurralados sem garganta e sem estômago, sendo atacados pelo escuro-piranha, desejando que no próximo golpe a morte já venha, mas aí ele se retira e nos deixa sob o ar da solitude, do esquecimento, tentando costurar os pedaços das cordas vocais pra gritar, chamar mãe ou pai, ou pra tapar a boca do estômago pra parar de vomitar a lava. e em terceiro lugar ele volta, o escuro-piranha, pra arrancar nossos olhos, pra entrar na nossa boca e morder nossos dentes, alimentar-se da nossa língua, arrombar nosso cu e rasgar nosso reto, nós comidos por dentro pelos dentes de serra de um escuro que não para, e não para, e não para. é aí onde estou hoje, sem Nestor e sem Pequena. cada um de nós com nossos escuros-piranha, sendo devorados por dentro.

hoje talvez tenha sido o pior dia desde esse, no qual Nestor e Pequena, sem saber, estavam lado a lado. se eu soubesse o que viria, teria fugido. teria morrido. teria matado. mas eu não sabia. por isso, morreram no meu lugar.

hoje meu coração disparou PARTE III - alínea b

 [a trilha sonora deste trecho é "grávida"]

"não vai ter chá de fralda merda nenhuma, mermão", gritou a Pequena. ela falava ao telefone com a família, do RJ, e negociava a vinda deles para conhecer o rebento. com os meses passando, ela me dava notícias a conta-gotas das opiniões e expectativas sobre a criança - e sobre nós, os pais. perguntavam pra ela como era possível um viado engravidar uma mulher. ela respondia: "é possível porque sou muito fértil". uns queriam uma guria; outros, um guri. os motivos para desejarem um ou outro eram invariavelmente machistas: gurias sofrem mais, é mais fácil de criar guris. as razões de ser mais sofrido ou mais fácil permaneciam inquestionadas. eu dizia que a gente criaria nossa criança tendo como critérios a honestidade e a responsabilidade - eu tinha excluído o amor e a humildade porque não combinavam em nada com a própria Pequena. eu nem tocava no tema da liberdade, pois nela eu não acredito mesmo. a Pequena ouvia eu falar isso e me olhava com desdém. ela nunca dizia como queria criar sua criança - sua criança, ela afirmava, nunca a nossa criança. eu sempre respeitei, pois reconhecia nessa linguagem uma afirmação preta, feminista. e a sustentava. à Pequena caberia o lugar do corte, da separação; a mim, o da religação, da comunhão. nós dois só concordamos com orgulho em um aspecto: nossa criança seria preta.

a Pequena não queria saber o sexo da criança. nem eu. nada que estivesse ligado àquela biologia, àquele amontoado de carne, definiria o gênero daquele ser. a Pequena achou que assim estaríamos afirmando a liberdade da criança. um dia eu disse que ninguém era livre, nem a nossa criança. ela respondeu: "a minha criança será a pessoa mais livre deste mundo". e foi. a criança da Pequena pode ser tudo, pode ser todos, pode ser todes. eu, como pai, só queria que a criança pudesse ser ela/ele mesma/o, com suas dores e lutas, e vitórias, e choros. eu queria que a minha criança tivesse história para contar de si já desde muito jovem. porque quem tem história pra contar de si é quem se joga na vida. e eu queria isso pra minha criança porque essa seria a herança ética da mãe. uma mulher que é uma força da natureza, uma tempestade. eu também sou uma força da natureza, mas de outra ordem. eu sou a terra e a rocha, aquilo que sustenta. a minha herança ética seria responsabilidade pelas escolhas. os progenitores perfeitos, pois.

já era vigésima, vigésima primeira semana de gravidez. a Pequena e eu tínhamos comprado um berço de madeira. combinamos de montá-lo num domingo. chovia, pois era março. eu me embrenhei por entre parafusos e martelos. suava. tirei a camiseta. me senti homem: seminu, construindo a cama da minha criança - digo, da criança da pessoa que me pediu em namoro. pensei que eu não havia sido homem com Nestor, em nenhum momento. pelo menos não na intensidade com a qual estava sendo com a Pequena. grávida, eu sentia mais tesão nela. ela, pelo contrário, se afastava. no entanto, no momento em que terminei de montar o berço, a Pequena me perguntou: "vamos morar juntos?".

hoje meu coração disparou - PARTE III alínea a

[a trilha sonora deste trecho é "perfume do invisível"]

já não lembro direito. mas parece, ao que tudo indica, que Nestor parou de responder minhas mensagens. é, acho que foi isso. eu lembro de estar almoçando com uma amiga em um restaurante de Higienópolis, era um sábado. eu havia mandado mensagem pra ele pela manhã. já eram três da tarde. eu insisti: "tá tudo bem por ae?". ao que ele replicou dizendo que havia trabalhado, que estava cansado, que estava sem rumo, que estava nublado... o que se diz geralmente quando se quer fazer com que alguém acredite que "não é problema seu, é problema meu". fiquei puto e deletei a conversa com Nestor. faço dessas. com a Pequena, ih, fiz milhões de vezes. só guardei seu último texto, tal como Madame Curie guardou o pedaço do crânio do seu marido. o último texto que a Pequena me mandou ainda está aqui no meu whatsapp, e fede como o osso de um cadáver.

não me recordo com precisão. talvez seja efeito dos remédios psicotrópicos que tenho tomado. mas Nestor passou uma semana sem nem dizer um "oi sumido rs". ou talvez eu não consiga resgatar essas memórias porque já faz bastante tempo que isso aconteceu. ah, sim: ele me mandava mensagens sobre seu trabalho, dia sim, dia não. nunca perguntava como eu estava, se já tinha limpado a casa ou se já tinha batido punheta. segunda sim; terça não; quarta sim; quinta não; sexta sim; e eu mandei à merda. porra. respirei. peguei uma folha de papel, um lápis. fiz um roteiro do que dizer em um áudio curto. porque sou desses que manda áudio de três, quatro, até dezoito minutos. sou mesmo. escrevi:

  • que legal, teu trabalho está sendo reconhecido e será um sucesso;
  • entendo que não queira mais encontrar;
  • eu gosto muito de ti;
  • eu vou seguir minha vida;
  • vá para o mar e aproveite a água, que tu tanto adora.

bem cognitivo comportamental, pois a psicanálise eu deixei pra depois, com a Pequena. parece que seria rápido, mas foram um minuto e trinta e sete segundos. eu ainda queria estender mais, só pra protelar esse pequeno fim. aquela preta cueca esgarçada que eu nunca mais tiraria; a barba em que eu nunca mais roçaria. queria que ele ficasse grudado no celular com aquela orelha onde passei minha língua, só pra ouvir minha voz. alguém mais termina uma pegação de quatro meses com um áudio de um minuto e trinta e sete segundos baseado em um roteiro? sou desses. e mandei. ele respondeu "positivo e operante. desculpe de encher o saco. sucesso na vida".

eu desfaleci. não lembro, mas acho que quase desmaiei. pro Nestor, eu não merecia nem quinze segundos de resposta pela sua própria voz. resplandecia, por isso, o lugar que eu ocupava em sua vida. fui pra academia e caí na esteira enquanto ouvia o mais recente número do Foro de Teresina. tropecei no cadarço do tênis. virei chacota, saí de lá e fui pra um boteco qualquer. bebi a noite toda. e no outro diz amanheci na sarjeta da avenida paulista com a rua augusta, aos pés do banco safra, nas condições já relatadas.

eu havia me tornado invisível. eu não lembro direito, mas acho que foi isso.

hoje meu coração disparou - PARTE III

eu e a Pequena trepamos três vezes por semana, por três meses. ela chegava na minha casa como uma pombagira de rua. no início eu ignorava com desprezo sua intensidade. achava que era só uma casquinha que ocultava o vácuo e a dor da vida que a trouxe até mim. ao final dos três meses, percebi que eu não estava tão equivocado, mas que tampouco acertava no alvo. o alvo da Pequena era móvel, cigano; quando eu acreditava ter encontrado uma fragilidade, algo mais intenso vinha em seguida que dirigia minha atenção para outra paisagem, e outra, e outra desse cenário em tempestade. 

ela entrava pela porta jogando a bolsa no chão, tirando os sapatos, deixando um na cozinha e outro no banheiro. às vezes ela não usava sutiã, e eu me perguntava como sustentar aqueles encontros. mas seguia encontrando. ela tomava banho e deixava o tubo de shampoo de ponta-cabeça. ela tomava água em diferentes copos, que ia esquecendo em cima da mesa, da escrivaninha, da geladeira. ela abria latinhas de cerveja e deixava pingar o líquido no sofá. ria quando isso acontecia. foi introduzindo o caos aos poucos, sempre me perguntando se podia, acreditando que eu nunca diria “não”, e eu consentia. de tão revolucionária com sua própria vida, me pediu em namoro. talvez acreditando que eu não diria “não”. e eu não disse.

viajamos. algo parecido com uma lua-de-mel, mas com muitas drogas. até hoje não sei se é possível fazer uma lua-de-mel com drogas porque aquela não foi inteiramente uma lua-de-mel. nem tão lua, nem tão mel com os sintéticos, lisérgicos e estimuladores. nada com a Pequena foi inteiramente algo. havia sempre um deslize ou um vazamento, uma escorregada: uma ideia que se perdia nas suas divagações; uma espuma de sabão que escorria na louça enxaguada; um olhar para a tevê quando eu me declarava; um bolo de cabelos num canto recém varrido. ela parecia não-toda. não porque fosse incompleta, mas porque ela desviava. ela estava ali, mas também estava em outros lugares. ela sempre pegava um detour, um atalho para fazer o que queria. e fazia. isso, com o tempo, me fez sentir paixão.

sem sutiã e sem vergonha, passamos a nos ver todos os dias. pequenas gotas de caos pingaram no meu piso vinílico. seu corpo, que eu vinha aprendendo a manipular tão bem pro meu próprio deleite, também tinha seus jeitos de escorregar. seu corpo pulsava em um lugar, pra onde eu ia com minha boca, mas então ele já pulsava em outro, que eu tentava agarrar com minha mão. nunca consegui abraçar sua vida. mas quase o fiz.

a Pequena chegou do trabalho pelas sete e meia da noite de um dia de outubro. me deu um “oi” entre os dentes. estranhei. ela não tirou os sapatos. pediu água, que eu dei. segurou o copo em silêncio. e me disse: “estou grávida”.