Convalescendo

Oi, pai; oi, mãe

Escrevo rápido hoje, com menos do que eu gostaria de dizer, porque estou me recuperando.

Estou parindo um livro. Às vezes eu gostaria de contar que já o tenho escrito, mas eu apenas digo: tenho um livro dentro de mim. Ou dois. Não importa. E vocês me disseram tantas vezes pra eu ser discreto... e como eu pude? Nunca fui. Duvidem do meu corpo quando ele escorrega, duvidem do meu olhar. Eu só finjo por vocês. Duvidem da minha alegria, da minha beleza. Não sou belo; nem o pai, nem a mãe são.

Estou fugindo. Nem de longe suspeitarias, mas lá me vou. Crês em Deus Pai? Já fui. Essa doença feia que herdei: ficar pedindo desculpas, sentir-se culpado. Estou grávido de um livro, te interessa?

Há tantas frases que eu gostaria de te dizer. Mas siga, vá, não te pares por mim: eu só vou te atrasar, te dizer chega, te censurar. Caminhe adiante.

Não há nada pior que o corpo que caminha adiante.

Degenerescendo

Oi, mãe; oi, pai.
Não posso escrever muito, pelo menos não tudo o que tenho.

Se é verdade que nunca falei, que nunca disse nada com todas as letras em sequência inteligível, também é verdade que nunca escondi, que nunca dissimulei. Essa forma de lidar com o não dito mas visível lhes é estranha. Não os culpo: apenas os chamo à responsabilidade de entender outras maneiras de habitar o mundo que não as suas próprias, que não apenas as suas próprias.

Eu formulei frases ótimas para dizer-lhes, frases cheias de verbos. Eu as esqueci. Eu continuo pensando nelas, construindo argumentos. São textos de teatro. Não lido com improvisações. Decoro as falas. Eu as esqueço. Gaguejo em frente à plateia. Devolvo-lhes o dinheiro.

Por que razão eu deveria me arrepender da conduta que venho adotando até então? Muitas respostas: desde os rasgos da boca e do pulmão ao sêmen não derramado. Desde os silêncios, silêncios de reticência que sempre se encarnavam em olhos cabisbaixos que olhavam para o chão, até as sungas não usadas e as camisetas não tiradas, o corpo não descoberto, até as viagens abortadas e as rotas de fuga, os atalhos, as noites trancadas nos quartos de hotéis anônimos. Desde passaportes feitos e nunca usados em 10 anos. Desde histórias falsas sobre baleias voadoras e músicas de dormir como “Boi da Cara Preta”, desde amigos imaginários que nunca foram bem-vindos lá em casa. Até namorados que foram muito bem-vindos, até pratos imensos de comida, até as noites sem ar-condicionado no verão, até a primeira taça de vinho aos 15 anos de idade, até os 11 anos de aluguéis pagos, até as roupas que serviram para cobrir o corpo, até os telefonemas. Muitas são as razões: desde o celibato forçado até o celibato voluntário. Desde o assassinato da criança que eu era em nome do adulto prematuro. Desde a vergonha endereçada até a vitória inesperada, ao amor pela chuva e pela cama quente no inverno, ao amor pelo vinho e pelo banho quente no inverno. Até a chuva batendo na janela, que eu escuto sozinho, até a cama quente vazia, até a garrafa de vinho não compartilhada, até o banho anônimo e silencioso, quente, no inverno. Desde o amor por aviões até a reserva medrosa em relação às praias e às areias, às águas em geral. Ainda ouço gente dizer “esse guri é poeta, essa bicha é poetisa”, mas eu sei que vou morrer a sós com meu corpo, sem mediação nem consolo, e já não sinto mais medo disso.

É essa vida toda que eu tenho que mudar agora e é demais para eu fazer em tão pouco tempo. Eu sobrevoarei uma por uma de todas as minhas cisões e contracorrentes. De todas as minhas vergonhas eu vou procurar me esquivar, e são muitas, andarei em ziguezague. Eu vou pra fora, pro lado de fora, rarefeito. Não é longe, é aqui do lado, do lado de lá da minha pele.

O lucro do luto

[...]visitar as sombras e por ali ficar, gastar um tempo com as sombras, deitar nelas. Nunca vi tanto lucro no meu luto: capaz de comprar uma vida inteira, reluzindo de tão nova. Deitar nas sombras e adormecer, e ao adormecer sonhar com aquilo que morreu ou com aquilo que matei. Acordar e regozijar com meu homicídio ou suicídio[...]
[...]as a vida grita mesmo assim. Eu fui até a janela, e nem a superfície da piscina estava calma. Não adianta represá-la, nem fazer barricadas: ela avança. Quando se está à espreita a vida acontece. E nisso há aqueles que se acanham, que se encolhem na sua pequenez de misericórdia, e ficam murmurando suas mágoas, seus restos de opiniões, juntando as migalhas de pão mofado para dar de comer às suas soberbas. Há aqueles que fogem, que se calam, que se misturam ao silêncio, que tentam passar incólumes, que preferem não ser vistos nem ouvidos e que trancam o que há pra sair. Há aqueles que choram e que rosnam, raivosos, aqueles que vociferam e ensaiam uma altivez cretina. Há aqueles que olham pro horizonte, estufam o peito e abrem os braços, caindo de olhos bem abertos no redemoinho que sabem que não podem evitar[...]