hoje meu coração disparou PARTE II - alínea a

 na página 100 de "copo vazio" eu escrevo a lápis "TODAS assediam o mundo espiritual para trazer o macho de volta". como se aquela piroca fosse a única das galáxias. na página 108 eu comento "a gente faz dessas", sobre quando Mirela vai pra debaixo da mesa e grita alto o nome de Pedro na tentativa ilógica, incoerente, de trazê-lo pra sua vida novamente. nas páginas 72 e 84 eu puxo setas e escrevo nas margens "eles dão sinais"; "eles nos avisam". esses homens que vão embora têm suas formas de vazar resquícios, rastros, pistas de que algo vai dar mal pra nós. a gente percebe e, na hora, finge que é auto-sabotagem. finge que é neurose. finge que é vício de experiências anteriores que deram errado. Mirela doida no enorme pinto flamenguista de Pedro, no seu sotaque de Minas. compreensível. rogo, por outro lado, que possamos fazer pequenos avanços, talvez em uma sequência de workshops ou em breves sessões de coaching, de modo a habilitar esse faro que temos (e temos [nem todas tão aguçadamente.] em algum lugar) para sentir o odor da cafajestada.

depois da tirada de cartas na casa da minha amiga, perdi noites com a imagem das nove espadas perfurando um corpo - o meu corpo. "a crueldade". achei por bem não abrir minha intimidade para mais ninguém. seria melhor manter-me discreto emocionalmente: sofrer em silêncio pela saudade de Nestor, passar os finais de semana lendo romances e assistindo a séries no Netflix. apagar os perfis dos apps de pegação. impedir, ou pelo menos dificultar muito, que outro homem se esgueirasse pelas frestas da minha fragilidade. só não pude supor que uma mulher o faria. pois foi quando aceitei o convite para ir ao churrasco. e lá tinha uma diva fumante.

hoje meu coração disparou PARTE II

[a trilha sonora deste parágrafo é "socorro", cantada pelo Arnaldo Antunes.]

"bora lá, não tem sofrência boa sem um tarô", disse a amiga que me acolheu em seu apartamento dias depois do meu meltdown emocional por Nestor. ela tem razão. a mística das cartas, da astrologia, tem tudo a ver com uma dor de cotovelo. "põe as cartas pra esta macabéa", eu ratifiquei. eu quase havia precisado ir a um atendimento psiquiátrico de emergência. queriam me dar lorazepam, diazepam, um mata-leão qualquer pra me fazer parar de chorar e calar a boca. na sexta-feira anterior, depois de uma semana inteira de mensagens territorialistas, ambíguas, e sem nenhuma intenção de me ter no colo, Nestor mandou um meme. não, não era um meme; era um post de um perfil aleatório do twitter que brincava com a letra de "vambora", da A. Calcanhotto. só poderia ser um deboche, uma ironia. eu digitei "é uma piada?", ao que ele respondeu "não faz a Maysa", que eu supus remeter à cantora de "meu mundo caiu". ainda pensa que sou um romântico brega, esse calhorda. mandei logo um áudio de um minuto e vinte e três segundos. pápápá, somos dois adultos, bibibi, não é culpa de ninguém, tananã, eu vou viver minha vida, e isso e aquilo, gosto demais de ti. era por volta das três e meia da tarde. nunca mais recebi notícias de Nestor.

"então, amigo, vamos ver o que as cartas dizem", "elas mentem sempre", "hoje não vão mentir". ela embaralhou, pediu pra eu cortar o monte em três. eu cortei. ela reuniu novamente os montes, embaralhou. abriu as cartas em um semicírculo sobre a mesa de madeira. ela tinha colocado um incenso fedorento pra queimar, de cravo, meus olhos ardiam. "escolhe cinco." peguei três da ponta esquerda, uma do meio e uma da ponta direita da fileira. o assento da cadeira praticamente não tinha mais estofo, minha bunda doía contra a madeira, afundada. ela colocou quatro cartas em cruz e uma do lado superior direito. "esta separada aqui é a que manda no jogo."

1a carta:

A Diva: uma mulher forte, poderosa, vai entrar na tua vida. ela é muito magnética. ela brilha. certifique-se de que ela te enxergue, te perceba, te aceite na vida dela como tu é; do contrário, ela será um rolo compressor.

2a carta:

A Pêssega: uma série de atitudes ingênuas e orgulhosas podem levar a um grande mal entendido, um grande ruído de comunicação. perda de valores por vaidade.

3a carta: 

A Falsiane: cuidado com a mentira e com a ilusão. o fascínio cega. palavras doces podem estar encobertas de segundas intenções, prenhes de veneno. alguém quer o suco da tua vida e vai fazer de tudo para vampirizar tua energia.

4a carta:

O Funkeiro: amante do sexo, drogas, samba, rock'n'roll. o ser errático que requebra os quadris na velocidade cinco do créo, que faz quadradinho de oito invertido. nascido do proibidão, desconhece a regra e a moral. pode ser a alma da festa ou o estraga prazeres.

5a carta:

A Sofrida: imersa na dor, não distingue tristeza, melancolia e cansaço. é a carta que rege o jogo. está enforcada, sacrificada. deu mais do que tinha e agora não tem como pegar de volta. deve aos traficantes da biqueira. entregou-se, mas foi rejeitada. chora e ninguém a ouve.

"achei um jogo pesado. quem sabe tiramos mais uma por descargo de consciência?", "a macabéa aqui aceita", "seja lá o que for, vai passar", "tem tanto sentimento, deve ter algum que sirva, cantou o arnaldo."

6a carta:

9 de espadas: a crueldade. nove espadas perfuram seu corpo. é mais que dor: é terror, é pânico, é horror.

"agora vou ser atropelado por uma mercedes?"


hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

 [a trilha sonora deste parágrafo é "eu bebo sim", na voz da Elza Soares.]

quando eu cheguei no churrasco dos amigos, no dia nublado, e reparei na Pequena, acho que conectei também com a força da sua ancestralidade. a força das mulheres negras é um repuxo de mar. eu achava que a isca do isqueiro esquecido era minha, quando na verdade ela sabia que se tratava de uma forma de eu começar a conversar com ela. desde o início era ela quem me queria, quem queria o meu destino, quem queria a minha vida na dela. e desde o início eu, um branquelo insípido, não tive outra escolha senão entrar nesse redemoinho de algodão e lavanda que era sua voz, seu cabelo. ela estava enérgica naquele dia. a Pequena gosta de beber, e eu tentei acompanhá-la na cerveja, primeiro, na cachaça, em seguida. sem sucesso. mas bebiriquei o destilado mineiro acompanhado de água. "cê não aguenta, não?", me questionou a Pequena. "aguento, mas hoje eu quero estar o mais lúcido possível." "por quê?", "porque hoje eu quero dormir pelado contigo." ela sorriu e pegou um baseado que circulava de mão em mão entre nossos amigos. "quer um peguinha?", e eu calculei rapidamente que sim porque sabia que havia docinhos e uma torta de chocolate com sorvete de creme de sobremesas. então: cerveja, cachaça, maconha, chocolate; só drogas leves. a Pequena me contava do seu trabalho, da mudança do Rio de Janeiro para São Paulo. da dureza da adolescência, isso sem nenhuma cor de drama. à medida que falava da sua história abria um sorriso porque conquistou tudo o que havia se proposto a conquistar: a mudança do interior pra capital, a entrada na universidade federal, o ingresso nos primeiros estágios de trabalho - sempre os melhores, muito bem posicionada nos processos seletivos. não porque era esforçada, mas porque tinha tesão em fazer o que fazia. e disse "eu até vou em manifestações anti-bozo, mas a maneira mais radical de mudar esse país é botando mais gente pra viver, é botando mais gente neste mundo, é dar sequência à linhagem de luta que me trouxe até aqui". fascinante, impetuosa. meus amigos presentes no churrasco passaram a me censurar. diziam que eu queria chamar a atenção dando beijos em uma mulher só porque eu estava com dor de cotovelo. repetiam que eu tinha nascido viado e que aquilo era heresia. que iam tirar minha carteirinha de passiva. que iam me excluir do decanato dos adoradores da Cher. um deles, já no final da noite, sussurrou no meu ouvido que não era com uma pepeca que eu iria tapar o buraco que o pinto do Nestor deixara em mim. o comentário nojento não teve réplica, mas merecia. a Pequena daria uma resposta à altura, mas quando ela chegou do banheiro eu já havia esquecido da grosseria e dei um beijo nela. minhas amigas queriam saber de onde eu havia tirado a lábia, a malemolência, a sedução. uma delas só soltou um "ai, se eu soubesse antes...", que eu também esqueci de comentar com a Pequena porque estava muito, muito, muito loucão. eu comi 3 fatias da torta de chocolate com 4 bolas de sorvete de creme. a Pequena só tomou mais uma dose da cachaça mineira e deu mais umas baforadas no baseadinho. fomos a pé pro apartamento dela. ela é bagunceirinha. nos beijávamos muito enquanto tirávamos a roupa um do outro - que, pra mim, levou um tempo longo e bem aproveitado. naquela noite meu pinto branquelo broxou (assim mesmo, com x [um uso chulo e desaconselhável pelos dicionaristas.], porque meu pintinho branquelo é chulo). perguntei se ela queria que eu fosse embora. a Pequena não se importou, "fica do lado de fora da conchinha pra eu pegar no sono?". e dormimos.

hoje meu coração disparou PARTE I - parágrafo único

[a trilha sonora deste parágrafo é "everybody's gotta learn sometimes", cantada por Beck. Ah, para ler "hoje meu coração disparou" é necessário ter assistido a esse filme também. do contrário, nada acontecerá nessas almas moles de vocês.]

leio "copo vazio" com um lápis. sempre leio romances com um lápis em punho porque tenho a mania de comentar, corrigir, encontrar pequenos erros de digitação, sublinhar o que me impressiona. eu estudo a narrativa de ficção. vou atrás das referências, confiro as intertextualidades. monto a rede de histórias na história - não para entender melhor, mas para espalhar o que leio. esparramo a narrativa. escrevo na margem de vários parágrafos de "copo vazio": "eu todinho", "eu inteirinho", "puta merda"; faço emojis de coração ao lado de "ele se deitou de cueca" na página 29; assinalo asteriscos nas ruas por onde passei; comento na página 31 "gata, você é uma trouxa"; discordo da narradora, na página 43, quando fala em "abandono", pois não acredito que Pedro tenha abandonado Mirela, e escrevo "desinteresse", "desprezo", "condescendência", "despaixão" nas margens. converso com Mirela, pois me identifico. trouxa, ingênua. adoro Mirela. caiu no conto do flamenguista. Pedro é meu Nestor - com sutis diferenças. eu o conheci no minhocão, num dia estranhamente quente depois de uma sequência de dias frios. amanheceu aquele domingo de sol morninho, um domingo que aconteceu, assim mesmo, como se acontecimento fosse. eu vesti regata e bermuda displicentemente, fones de ouvido e celular, paramentado para caminhar. era metade da manhã. o minhocão é energizante. os grandes murais dos prédios carcomidos, com mensagens de emancipação e revolta e autoafirmação, as pessoas estranhas nas janelas e sacadas, as pessoas mais estranhas ainda usando o asfalto como se praia fosse (e é [não é, mas serve.], a praia santa cecílier). caminhei e li "eu sabia que você existia"; "no país da corrupção pixação é crime", "hoje não vou me ferir", e eu sorria. naquele domingo eu estava ali e em nenhum outro lugar. não estava radiante, eufórico. estava só aproveitando a bondade do domingo, que era um acontecimento. decidi me sentar nos bancos improvisados próximos à praça Roosevelt. e notei o rosto por trás da máscara (às que lerem isto anos no futuro, houve uma pandemia causada por um vírus entre 2019-2020-2021 e todas as pessoas do mundo precisaram usar máscaras como forma de prevenção [o que foi uma chance para quem era feia e uma dificuldade a mais pra quem era apenas normal mas tinha harmonia facial, como eu.]), cujos olhos me acompanhavam. Nestor estava sentado a poucos metros num platô de madeira. eu me deitei em algo que parecia uma espreguiçadeira, de tal forma que o rosto por trás da máscara estava no meu campo de visão. escolhi um podcast de política para ouvir no spotify. e cuidava daquele rosto por trás da máscara que, sem cansar, sustentava o olhar em minha direção. boné, bermuda jeans, chinelo de dedo, camiseta verde da osklen. nesse primeiro instante eu não tinha certeza de gostar daquele homem que me encarava. eu o achei jogado demais - mas o que é ser jogado? era eu quem vestia displicentemente regata e bermuda, seminu. e o rosto por trás da máscara ainda olhava. "a política externa de bolsonaro, pipipi-pópópó, a descrença nas instituições democráticas, patati-patatá", eu ouvia o podcast certo de ser alguém que, mais que sustentar um olhar, poderia sustentar também uma conversa. o rosto por trás da máscara se levantou e veio caminhando devagar até um espaço vazio próximo de onde eu estava deitado. sentou-se e arrumou a camiseta verde da osklen amarrotada. olhou pra frente, virou pra mim, o rosto por trás da máscara sustentou o olhar em mim. decidi retribuir, simulando aquelas brincadeiras de quem-piscar-primeiro-perde ou quem-rir-primeiro-perde. eu perdi porque eu ri primeiro. ele percebeu, mesmo que eu também estivesse usando máscara (só naquele momento me dei conta de que eu poderia ser uma boa ou má supresa pra ele quando eu tirasse minha máscara [e ele também pra mim.], então a tirei, um pouco envergonhado). "eu sou Nestor. o que cê tá ouvindo?". tirei um fone do ouvido, "desculpe, não te ouvi". "eu disse que sou Nestor. o que cê tá ouvindo aí?" "ah, uns podcasts sobre política. é sempre um horror." "é sempre um horror. eu deixei de ouvir. prefiro viver, fazer coisas boas. porque se esse cara continuar como presidente..." e foi então, vendo e ouvindo Nestor articular as primeiras palavras, que me fixei nos pelos pretos e brancos da barba se movendo por entre os elásticos que prendiam a máscara pelas orelhas. um tiozão de esquerda nove anos mais velho que eu. Nestor foi se espalhando, e eu fui dando entrada. de política trocamos de assunto pra cinema; de cinema pra literatura; e já era início de tarde, e eu o convidei pra conhecer uma cafeteria ali perto onde há café e também livros; nos demoramos na literatura; de literatura pra música; de música pra adolescência; e a tarde já virava noite, e do café passamos pro vinho; da adolescência pro primeiro beijo; do primeiro beijo pras saídas do armário - pra família, pros colegas de trabalho, pros novos amigos; de saídas do armário pros grandes medos. eram dez da noite. tínhamos passado doze horas conversando. o café estava fechando. pensei em trepar com ele na rua mesmo. mas ele, por outro lado, pareceu querer preservar alguma coisa de vitoriana daquele momento. pediu, apenas, que eu mandasse um oi no whatsapp e disse que responderia quando chegasse em casa, pois a bateria do celular tinha acabado. de pronto registrei o número nos contatos e corri pro aplicativo pra conferir a foto de perfil que ele escolhera. um pouco decepcionante. mesmo assim escrevi: "conforme o prometido, oi". como sempre, eu mantenho minhas promessas. eu aposto.

paramos nos grandes medos, e Nestor é isso pra mim até hoje.

hoje meu coração disparou PARTE I - alínea a

 "como não escrever sobre o amor?" é a última pergunta na coluna de uma escritora publicada hoje, 26 de novembro de 2021, no jornal Folha de S. Paulo.

ora, não escrevendo. o problema é que quase tudo surge ou acaba em amor, leva ao amor. o problema é que os melhores textos, os melhores romances, as melhores músicas, os melhores filmes, as telas e esculturas mais belas são sobre amor. o amor não é um tema, é o pano de fundo de quase todos os temas mais interessantes. pouco(s) escapa(m) ao amor. eu sou um deles.

esta não é uma história de amor. é uma história de arrebatamentos, de fascínios. e de arrebatamentos desencontrados: Nestor nunca foi arrebatado por mim (ele nem sabe mais quem eu sou [será mesmo que nenhum resto do meu rosto grudou na sua memória? não.] e se sabe algo sabe errado, é um equívoco) e a Pequena acho que nunca será. porque eu sei que a Pequena quer alguém - simplesmente alguém com quem estar. ela gosta de mim, mas ela gostaria também daquele e do outro lá desde que eles topassem tudo o que ela propõe. eu topo. assim como topava todos os convites de Nestor, para qualquer atividade no frio ou no calor, para beber e para comer sorvete, para deitar no gramado do parque buenos aires. eu sou assim: eu topo. eu aposto.

então, esta história não é uma história de amor. é uma história de arrebatamentos desencontrados. mas o amor é o pano de fundo desta história, a redoma onde os desencontros acontecem. tento ter cuidado em escrever e falar a palavra "amor". porque o amor não me conhece, não sabe meu nome: comigo o amor age como Nestor. escrever e falar "amor" exige compromisso, comprometimento e cuidado. é uma responsabilidade falar "amor". o que sinto por Nestor não é amor, mas segue o curso de um sulco forjado pelo amor - caldo este que, admito, ainda quero que desemboque nos deltas de Nestor. o que a Pequena sente por mim também não é amor, mas eu venho percebendo que eu sou um veículo para ela por no mundo alguém que ela vai amar muito. eu não amo nem sou amado. mas o amor me circunda e me circunscreve. talvez seja só isso que terei na vida.

hoje meu coração disparou PARTE I

 um pé na bunda te joga pra frente. e a melhor vingança é ser feliz.

ontem uma amiga me deu de presente, de surpresa, "copo vazio". na dedicatória ela escreveu: "seguimos juntos ... em tudo mais que essa experiência de viver nos traz". uma dedicatória digna de ser escrita, afinal. na narrativa, Mirela levou um ghosting. ela se arrasta pelas ruas de São Paulo, transtornada para entender o porquê de Pedro ter desaparecido depois do encontro arrebatado entre os dois. Mirela não está só, nem Pedro.

[a trilha sonora deste parágrafo é "devolva-me", cantada por Adriana Calcanhotto.]

soube que Nestor está bem e namorando. aquela alma atormentada. faz exatos três meses que deixamos de falar. foi um ghosting reverso: ele desembarcou aos poucos de mim, e caiu no meu colo a responsabilidade de dar fim àquelas seis semanas de um encontro também arrebatado (para mim, ao menos [que desde o início suspeitei da desconfiança dele sobre meu corpo, da capacidade dele em foder, da disponibilidade dele para meus espinhos], que sou um personagem saído de um romance da Jane Austen). ele não me quis mais, e fui eu quem precisou parar de responder as mensagens dele mesmo querendo, desejando, desesperando cada centímetro quadrado da sua pele. perverso, Nestor não me chamava mais para almoçar, jantar, nem para tomar café, nem para sentar no parque e falar mal das senhorinhas bolsonaristas cheias da grana que circulavam com seus cães shitsu, yorkshire, lhasa-apso, tecendo comentários horrorizados sobre as eleições de 2022 - mas ele manteve uma comunicação territorialista, feita dia sim, dia não, do tipo guerrilha, em cujas mensagens ele dizia absolutamente nada, ora uma foto aleatória, ora um meme, ora uma figurinha ou um gif repetido em vários grupos de whatsapp. não eram convites para estarmos juntos; era só uma estratégia para me impedir de esquecê-lo. não sou homem disso. tomou um ghosting reverso. os dias foram e têm sido horríveis desde então. o que eu senti e sinto por ele é forte demais. mas esse arrebatamento é um animal, uma coisa viva que pode morrer. eu quero que morra, mas o arrebatamento luta por si próprio. o que sinto por Nestor luta, não se entrega, revida.

[a trilha sonora deste parágrafo é "ela é carioca", cantada por João Gilberto.]

mas conheci a Pequena no mês passado. cheguei num churrasco na casa de amigos, debaixo de chuva, e reparei nela de imediato. a Pequena é - pequena. magrinha, pequeninha, peitinhos, mãozinhas. é enérgica, tem fala acelerada, tem uma piada para fazer a cada frase e uma história nova para contar a cada cinco minutos. ela é fluminense, ela é fluminense - daria para reescrever a música. olhos de gata, oblíquos, honestos. nos olhamos de cima abaixo durante algum tempo. ela demorou um pouco mais nessa atividade porque tenho um metro e oitenta e cinco. e ela gostou. eu me demorei mais nessa olhada, apesar de ela ser pequena - a minha Pequena -, porque a camisa que ela usava marcava os bicos dos peitinhos. e gostei da combinação de saia rodada e tênis adidas. ela fumava, e eu estava aprendendo a fumar novamente (como se fosse possível [e é], fumar é como escrever, escovar os dentes ou andar de bicicleta). ela tinha uma carteira de marlboro light e eu, um saquinho de tabaco natureba. "ela é linda demais e além do mais ela é fluminense, ela é fluminense", eu cantava no seu ouvido. fumamos juntos porque eu fingi estar sem o isqueiro só para ela vir em meu auxílio - e veio. a Pequena e seu isqueiro amarelo. na primeira baforada eu quis beijá-la. e de fato nos demos mil beijos naquele churrasco, e eu perguntei a ela depois de muita cerveja e muita maconha: vamos dormir juntos, pelados? meus amigos, depois, insistiam que eu deveria parar com aquilo - porque eu só estaria querendo chamar atenção em um churrasco que deveria ser só diversão. minhas amigas, por outro lado, foram mais furiosas - desde quando eu pegava mulher, desde quando eu gostava de mulher, desde quando eu sabia chegar numa mulher? ora, desde que eu vi a Pequena. e desde que Nestor desembarcou de mim. os dias foram e têm sido horríveis, mas a pequena tem me dado momentos lindos, oásis na maré de mijo.

nesta história há um tanto de Mirela, um tanto de Pedro. muitos copos vazios. Nestor me destruiu com seu silêncio. mas me jogou nos braços da Pequena, alguém sem cuja companhia já não consigo imaginar meus finais de semana. penso em Nestor em todas as horas de cada dia desde que nos conhecemos no minhocão. sinto raiva dele, e pena, e saudade, e orgulho. o bichinho é bom no que faz. mas a Pequena é, também, um encanto, uma leveza, um oásis na secura da rejeição. (a Pequena é um oásis em qualquer lugar onde ela esteja, onde eu estiver.) com a Pequena eu gargalho de Nestor, mesmo que ela saiba que ele tenha existido na minha vida, com seus paredões. ela sabe o suficiente de mim. ele soube de menos, e eu nunca vou perdoá-lo por isso.

 "morrer de amor e continuar vivendo": quando eu era criança, com menos de 5 anos, uma vizinha tinha uma cachorra, a diana. ela tinha pelos longos, pretos e brancos. eu, de pé, tinha a altura dela e me deitava sobre seu corpo. gostava de tocá-la, afundar meus dedos na pelagem, sentir o cheiro de animal, as lambidas no meu rosto. me divertia assistindo diana pular para morder no ar o pedaço de carne que a vizinha arremessava enquanto preparava o almoço. meu sonho de liberdade ainda é passear com diana, gozar da sua companhia quando o dia nasce. latir junto com ela. e durar o tempo que um cão dura no mundo, peludo, deixar só saudade e histórias engraçadas de roupas mascadas, de vidros quebrados.

 tu acabou de sair daqui. dou pulinhos atrás da porta, feliz, sabendo que à noite vamos numa roda de chorinho beber caipirinha de limão siciliano, que tu adora, sem açúcar, porque eu preciso. no espelho já não sou mais o mesmo: nenhum pelo da barba está inflamado. sorrio porque, ao acordar, tu disse que sonhou comigo. tu acabou de pegar o metrô e me mandou mensagem avisando que está tudo bem. de nenhuma das minhas feridas escorre pus. e avisou que sente saudade. me debruço na janela e sinto o vento, uns poucos pingos de chuva. hoje a noite vai ser fria, e vamos dormir juntos. quando acordarmos, faremos o de sempre: eu na conchinha de fora e tu na de dentro; viramos; tu na conchinha de fora e eu na de dentro; beijos; tu fala dos teus sonhos, e eu em silêncio porque nunca lembro dos meus; levantamos da cama; fazemos xixi; tomamos trezentos e cinquenta ml de água em jejum; vamos pra sacada ver o sol nascer e fumar um cigarro de kumbayá cada um. tu acabou de dizer que chegou em casa e manda um emoji de coração. eu me jogo no sofá e amo cada parte de mim em que tu encostou durante a noite.

 eu apoiei e incentivei todas as tentativas e fantasias de tu ter uma casa. sem sucesso. eu desapareci com tudo que era teu, eu não tenho mais nada teu, a não ser tudo. pra onde eu me viro tua cara está virada pra mim, teus olhos grudados nos meus. em cada hora de cada dia, em cada sonho à noite. é uma tortura que eu só aguento com cigarro. um são sebastião fumante que apaga as bitucas em si próprio.

 ninguém volta pra casa sozinho. ninguém faz sozinho da tenda uma casa. não consigo amar dois homens ao mesmo tempo. não esqueço desprezos, nem rejeições. preciso diminuir o cigarro. já tenho um plano de saúde privado. odeio crianças dentro de aviões. poucas foram as vezes em que tive uma casa. nunca casei. nunca amei - melancólico é o pai cujo filho não é capaz de amar. quase sempre chorei quando afirmei que me sentia mais feliz por um ou dois segundos. e quase sempre foi mentira, e quase sempre durou menos que aquilo. detesto trabalhar depois das 19h. estendo a roupa lavada no varal, mas gosto mesmo é de passar camisas a ferro, na tábua - ninguém entende isso. já me senti o último homem assistindo ao por-do-sol. nunca desejei a fama, nem o brilho. não sou imprescindível pra nada. família sempre foi um dever. amizades se tornaram menos mistério com a idade. a velhice, um espinho. o corpo é o tempo presente que se desgasta, pedra de areia na margem do rio em erosão. não extraio prazer da dor, nem da humilhação. minto e me envergonho. quero mais da vida do que ela é hábil em me dar. não lembro dos meus sonhos - fria é a mãe cujo filho não lembra dos seus sonhos. pouco sei sobre o porquê de eu estar aqui do jeito como estou. tentei poucas vezes de quase tudo, e quase sempre deu errado. o que deu certo me manteve vivo. por isso sou eu quem percorre o vão entre as torres gêmeas sem cabo de segurança.

 [...]asia com a morte, com a dor, com o caos. tu chegou e tirou tudo, tudo: o ranço, o mofo. pegou com a mão e espanou o pó, arrancou as teias de aranha. os dias mais felizes da minha vida, os mais nublados, os mais frios, os mais demorados. nunca suportei aeroportos, e tu aterrissou em mim, abriu o reverso, ocupou o hangar. desembarcou pra dentro. tu tirou tudo com a mão: as ideações, os ideais, as dúvidas. ainda me pergunto como chegar em casa, o que fazer em casa, como limpar a casa. mas agora eu tenho tu, tu, tu. eu sorrio enquanto tu lava a louça de cueca furada. eu sorrio enquanto tu baba no travesseiro dormindo. eu sorrio enquanto tu escova os dentes pelado. um homem aterrissou em mim. eu trabalhando, tu assistindo tevê; eu deslizei o olho pro lado da tela pra te observar; o quase riso com a quase piada da série que eu indiquei; eu sabia que tu não estava gostando, mas tu te esforçava porque queria me agradar; eu sorri. eu nunca suportei aeroportos. eu sempre fiz banheirão em aeroportos: não mais. ou, talvez, sim, pensando em ti, em cada centímetro quadrado desse corpo pelo qual choro hoje de tesão e, ontem, de saudade. eu sinto a inveja em quem nos vê quando andamos na rua, quando jantamos juntos na tratoria, quando nos deitamos no gramado, quando pegamos o metrô, quando vamos ao supermercado e tu briga comigo porque estou comprando muito vinho ou se sigo escolhendo a manteiga mais cara. somos tão nós mesmos que irrita quem nos encontra. as frases que não precisam de palavras para terminar: eu sei qual o verbo, qual o adjetivo que tu usa pra a ironia apropriada. tu, tu, tu me preenche, na boca, na bunda, na insônia que tu suporta comigo e aguenta até o sol nascer pra depois voltar a dormir e levantar só às 11h. eu to odiando aviões. me levam pra longe de ti, e tu pra longe de mim a me espelhar no teu olhar até sumir. eu e tu: não há quarto que aguente, não há cama que sustente. pesamos, efervescemos, crescemos onde o lodo invejoso dos outros grassa. tu, tu, tu pediu pra vir e veio e ficou e eu chorei. e choro até hoje. e gozo até hoje onde tu me pedir pra gozar, e onde eu também assim escolher, pois cada centímetro quadrado da tua pele acolhe meu sêmen e a minha, o teu. compartilhamos peles. nem todo o látex do mundo enrolado em volta do meu pinto impediria a transmissão dos vírus mais potentes com os quais nos recontaminamos: a cumplicidade de quem vai desligar os aparelhos quando eu estiver em coma, a lealdade de quem vai trocar tuas fraldas quando estiver imóvel e inconsciente, a resignação de quem vai ver me ver apaixonar por outro e esperar passar. tu, tu, tu. aperto tuas mãos contra minhas costas pra enterrar teus dedos nas minhas costelas e te fazer entrar, imiscuir, mesclar, misturar. somos um humano de 46 pares de genes autossuficientes e complementares. teu esperma gruda no meu e faz gigantes: a vênus monstruosa sai da concha. queremos cada gole de toda a ressaca do outro. cada gemido de dor de cabeça. cada vômito, pois não temos nojo dos fluidos do corpo, das excreções do corpo. pois o meu é também o teu. se mijamos, mijamos juntos, e eu deixo tu molhar a mão no meu jato. e lambo tua mão depois, pois o que sai de mim sai de também de ti, e entra. tu, tu, tu em cada fotografia emoldurada do edifício copan. inteiro e sublime pensando em se jogar da janela. não seria criativo. eu, eu, eu te agarrando pela camiseta verde da osklen e suplicando: [...]