Cadáveres

[...]eixa eu tentar te explicar, não sei se consigo: tem um cadáver na minha casa. Bem ali, ó: na passagem do corredor que une o quarto, o banheiro à sala. Tem um cadáver estirado ali há dias. Há pelo menos três dias. Eu passo por ele e olho, desvio dele, passo por cima. Sempre que passo por ele eu lanço um olhar. Não consigo movê-lo dali. Acordo pela manhã e vou dormir à noite: ali ele jaz em velório. No meu velório. O corpo estirado no quase chão da minha quase sala é o de uma mosca que entrou pela janela da minha cozinha há pelo menos seis dias. Por três noites e três dias ela voou aqui dentro. Ao fim do terceiro dia ela morreu e ali ficou. Não quis tirá-la do seu leito. Do meu leito. Eu fico inclusive lisonjeado, de certa forma feliz, que ela tenha vindo até mim nos seus últimos momentos. Fico recontando sua trajetória, de que lugar ela veio, por que casas passou antes daqui, que ventos ou que luzes a trouxeram até minha pequena e bela ilha deserta para morrer comigo. Que mosca será essa que veio morrer comigo? Entende? Nenhum dos seus veio reclamar o corpo. E se fui eu quem morreu e ninguém deu-se por conta? Me pego às vezes pensando nisso, em morrer e não me dar conta, ou em morrer e ninguém se dar conta. Ninguém dar por minha falta. Não que isso seja um problema, mas coitados dos vizinhos, né? Acho que já posso enterrar a mosca[...]

Depois do silêncio

[...] (silêncio). Um cansaço, sabe? Só de pensar, de imaginar, só de vislumbrar aquelas pessoas todas que retornam, suas roupas e o tom das suas vozes. Um cansaço, uma contrariedade. E quando fui me dando conta do incômodo, eu fui me calando e ficando quieto, cada vez jogando mais longe meu olhar naquele horizonte de dois azuis bem distintos, perfeitamente reto, do encontro do mar com o céu. “Vem, vamos, há muito ainda o que fazer, há muito ainda que trabalhar, há pessoas que precisam de ti”. E eu não quero ir, vou arrastado com as mãos atadas, puxado pelo nó que as imobiliza. Foi de uma revolta e de um deboche sem iguais: “E o Troféu Piroca Verão 2011 vai para... o Mineiro! O Mineiro ali de sunga preta com detalhe vermelho! Parabéns! Aqui está o Troféu, um falo feito de gesso banhado a ouro 18 quilates, glande cravejada de rubis bem vermelhos, veias desenhadas com pedras lápis-lazuli, saco delicadamente trabalhado em duas pérolas gigantes e espirrando sêmen em cascatas de brilhantes! Agora larga essa mocreia loira que não dá nem pra fazer faxina lá em casa e vai ganhar o mundo!”. Silêncio, isso sim. Eu fui obrigado a apenas construir esse e outros textos mentalmente, sem mexer sequer os lábios. E construí, ei-lo aí. Talvez minha dor no estômago se deva ao fato de eu ter que engolir minhas palavras que, prestes a tomar voz, eram deglutidas a força. Meu silêncio não era um nada, uma letargia neutra. Eu não sou neutro. Meu silêncio era minha úlcera fervendo no estômago cheia de ironias e sarcasmos, histórias fantásticas de humor sexualizado. O próximo passo é o vômito. (silêncio) [...]

Grávido. (um post heteronormativo)

Um breve partir

[...]bora. Mas é um partir breve, não vou demorar. Vê se não fica até muito tarde em frente ao computador: ‘saia pro mundo, caia do blog, na batida da vida se jogue’. Leia bastante, daqueles livros lindos que tu recitas de olho fechado parágrafos inteiros. Acho tão bonito quando teus cílios se encontram e tua boca mexe, quase sorrindo, falando aquelas palavras. Eu sei inclusive que tu lembra da disposição dos parágrafos nas páginas, e dos números das páginas, do volume das edições que tu recita. Resista às calças jeans. Elas te escondem, te engessam e te imobilizam. Tu é bonito assim, com os tornozelos à vista e com os calcanhares ousados. Não te preocupes comigo: derramei umas gotas de mirra na água e vi desenhos lindos. Será uma estada tranquila. Não consultei os astros, nem as cartas, pois tenho tido dificuldades em lê-los de maneira acurada e sensível. Eu os tenho interpretado às avessas. Regue as plantas, sobretudo essas do teu peito. Não dome o furor das tuas ideias; quando eu voltar, quero ser engolfado pelo redemoinho que elas provocam. Eu vou, sim. Talvez os dias se multipliquem e se dilatem enquanto eu estiver fora e talvez seja difícil manter intacto o teu rosto na memória. Ele já me aparece aos borrões contigo aqui na minha frente. Também não sei se vou conseguir manter acesa a chama da tua lembrança – já tentei fazer promessas desse tipo antes e nunca consegui cumpri-las. E não quero que tu te responsabilize por mim nas tuas memórias, que são tantas: vai procurar beleza lá onde ela de fato existe. Eu gosto de ti assim, me achando feio. Se eu parto, não é porque estou fugindo. Eu parto porque não suporto, porque não dá mais pra mim, e preciso de uns dias de leituras, escrituras e olhares perdidos no horizonte do Atlântico. Aqui as coisas pesam demais, e eu estou com os ombros doídos. Talvez seja o caso de me apartar do que me pesa, mas a questão é que sem o peso – e sem esse namoro, esse casamento e eventual divórcio do peso –, sem ele não consigo dar sentido algum ao que faço. Tem que ser pesado pra eu poder lidar com isso e fazê-lo leve. E o gosto da tua pele... O cheiro. Preserve-os o máximo que tu puder porque são preciosos. É provável que teu rosto embace, mas o teu gosto não sairá nunca da minha boca. Ou, pelo menos, daquilo que eu acredito ser o teu gosto. Daqueles que eu acredito que foram as nossas mordidas, quando eu quis muito tirar partes da tua carne. Daquilo que eu penso que foi nosso desejo: de silenciosamente dar colo um ao outro, num romantismo e numa tranquilidade nunca antes vistos em mim, mas que tu proporcionou, que tu avalizou com um piscar de olhos e um carinho sutil na minha barba. ‘Ela é macia’, tu disse, ou assim eu queria que tu tivesse dito se tudo isso realmente fosse como eu venho descrevendo. Esse é um breve partir porque, em verdade, não há muito do que se despedir. Nunca houve nada disso, tu sabes. Mas mesmo assim já sinto saudades. Tou indo, tá? Até br[...]

as cartas às vezes mentem

[...]otei umas cartas, só pra ver o que poderia estar logo adiante no meu futuro. E elas mentiram pra mim. Elas quiseram me enganar. Porque elas me disseram que a toalha ficaria no varal pra sempre, intacta. Dura e sebosa. Mas não ficou. Ele esteve aqui ontem, foi embora há poucos minutos. E devolvi a toalha pro varal, bem lá onde ela passou as últimas duas semanas. E assim será enquanto eu e ele suportarmos essa migração pendulária entre a minha casa e a casa dele. As cartas mentiram; ou fui eu que menti ao lê-las[...]

e a toalha

[...]lha voltou? voltou!!! finalmente ela saiu do varal e se enrolou num corpo de verdade![...]

Burkas

[..]bia o que fazer com as mãos, com o olhar, com as pernas e com o cabelo. Acho até que eu tremia de leve. Se eu pudesse ir vestido com um sobretudo gigante, ou uma burka, eu iria. Ou então iria nu logo de uma vez, só de chinelos, com o pinto balangando no meio das pernas. Perderam-se a bússola, os relógios, as senhas dos cartões de crédito. Criou-se um outro lugar dentro dali mesmo, um outro espaço que flutuava sobre o chão. Habitávamos este, e não o que nos ofereciam. Eu pulava de rua em rua, de paralelepípedo em paralelepípedo, recusava o espelho cada vez que ia ao banheiro. Mas estávamos felizes, cada um de nós a seu modo. Havia costuras? Havia espinhas dorsais? Havia pontos de contato? Quiséramos. Talvez não. Pra ser feliz só dá quando estou me vendo no espelho do outro? Não sei, acho que não. E é possível que seja esta a razão de eu recusar o espelho quando eu estava no banheiro. Eu não queria, e não quero, me ver nele. Ele: um corpo silencioso. Corpos silenciosos não são sempre calmos. Ou melhor; ele: um corpo sinuoso. Corpos sinuosos são são sempre moles. Meus dedos estavam duros. Eu não sabia o que fazer com as mãos; logo, eu não sou um corpo calmo. Mas eu sou um corpo mole. E se eu arrancasse a burka? Não havia suspeita, mas eu estava completamente nu. Não havia bermuda nem camiseta que escondesse minha nudez – pelo menos não de mim mesmo. Havia pontos de contato? Não sei, não sei. Não sei se quero saber. Mas que me deu vontade de arrancar a camiseta, ahhh, iss[...]

Escapando pela tangente

[...]ês viram? Foi horrível. Simplesmente foi queimada viva por um grupo de rapazes na cidade do Porto. Eu não sabia disto, foi quando, sabem? Fiquei impactado. Essas humanidades extremas me atingem, me afetam: essas humanidades demasiadamente humanas, do tipo queimar alguém vivo, bater até matar, torturar, abrir com bisturi, costurar a pele, mexer lá dentro. Muita humanidade, coisa humana que me assusta. É por isso que me pergunto se às vezes isso tudo que está aí, que vivemos quando acordamos; me pergunto se isso tudo não é um sonho ruim. É por isso que às vezes não quero pessoas por perto. Se é um sonho, é o meu sonho, e no meu sonho só entram as pessoas que eu quiser. Quando eu desmaio, se vou tirar sangue ou se me corto, se me machuco, eu sinto que sou sugado por um túnel longo em espiral de várias imagens de memórias, imagens de lembranças da minha história, espiral que leva meu corpo no turbilhão até lá uma ponta, um vórtice onde não há mais memória nem lembrança: e lá eu acordo. Lá eu estou plenamente acordado. Quando eu volto a sonhar, eu sou como que jogado de volta, lá de cima: jogado de volta ao sonho, cheio das ficções das lembranças da minha vida que passou - que já não é mais vida, é uma outra coisa que nem minha é. Penso ‘que merda, queria ficar lá no topo da espiral, no olho do vórtice’. Porque lá era onde eu estava acordado. Pra justamente ter que ficar longe dessas humanidades, coisas humanas que apavoram. O corpo é muito humano pra mim, talvez por isso eu desmaie com tanta facilidade, por isso eu implico tanto com o corpo e com as coisas dele. To sempre saindo, escapando pela tangente das coisas do corpo: sexo, comida, álcool, doença. Mas bem quando eu to conseguindo sair de mansinho, o corpo vai lá e me pega de volta! Fui ver uma exposição de um artista plástico que pinta personagens recorrentes: os mascarados; atletas mascarados. Achei belíssima. E o mais interessante é que ele só atribui máscaras aos seus homens, homens atletas. Porque suas mulheres quase sempre estão seminuas. Me fez pensar, essa distribuição peculiar de disfarces... E a nudez pode também ser um disfarce? Eu conheço gente que se disfarça tirando a roupa, confiando ao corpo a habilidade de encaminhar os olhares e as expectativas pro centro do vórtice do nosso sonho. Já eu, eu sou um dos mascarados – nem sempre sou atleta. Mas não é por ser um mascarado que eu sou um mentiroso: eu não uso disfarces. Adiar dizer quem se é não pode ser considerada uma atitude mascarada; é que eu realmente não sei ainda. E é provável que justamente por não ser atleta que sinto os olhares escapando pela minha tangente: eles querem o sonho, e eu quero acordá-los. Assim como eu sou puxado por um vórtice quando desmaio ao tirar sangue, e me julgo acordar do sonho, às vezes sinto os olhares escorregando e desistindo de despertar. Todo mundo quer viver no sonho, na matrix? Eu também quero, mas às vezes sinto necessidade de acordar. Daí advém minha facilidade pra desmaiar, pra resetar o corpo como fazemos com os computadores quando eles travam. [curto silêncio] To sentindo nos olhos de vocês que estão me escapando pela tangente![...]

O que há de novo sob o sol desse carnaval?

[...]orpos. Muitos. Não dava nem pra saber onde começava um e terminava o outro. De todas as cores, de todos os volumes, pesos e medidas; de todos os sexos, de todas as idades. E se beijavam, se acariciavam, se lambiam. Tremiam. Mas foi só um sonho, e não foi um sonho erótico, apesar do apelo. É que fui dormir na noite seguinte pensando sobre o desejo de morder, de arrancar partes, de engolir o corpo do outro. Não dá essa vontade? Quando rola a “química” [que na verdade deveria ser “física”], a gente beija fundo com vontade de deglutir o outro. Eu beijo fundo. Coloquei uma música bem baixa, desliguei algumas luzes – mas não todas, porque gosto de olhar nos olhos quando faço sexo. A gente foi dos carinhos até às práticas mais pervertidas, passando pela malandragem, pelos tapas e pelos xingamentos. Acontece que um kit completo da sacanagem, como esse, assusta: e o susto já dura sete dias. Ontem, ao fechar o sétimo dia de silêncio [já dava pra ter criado um outro mundo!], me revoltei: como faz pra fazer sentido? Como faz pra ligar no outro dia? Sim: pega o número e liga, burra! [Risos!]. Acontece que não é só isso. Tudo está envolvido nesse jogo: é a roupa que a gente escolhe, é o tom da voz, é a bebida que a gente bebe, o bairro onde a gente mora, a profissão que a gente desempenha. Me dei de presente 15 dias de folga da academia e fui viver outras coisas: bebi com muitos amigos, conheci gente nova, falei sobre assuntos dos quais eu não sabia, enfrentei minha fobia de estúdios de TV. E gostei de mim fazendo tudo isso. Me senti bonito como foi o dia de hoje: céu bem azul, sol brilhando sem calor e um vento agradável, quase frio pra um carnaval de março. Carnaval em março é surpreendente! Vento frio em março é surpreendente. Porto Alegre é “demais” com vento frio e com a maioria dos portoalegrenses fora dela. Uma paz, uma tranquilidade, um desejo de me jogar nessa lava incandescente e devagar que vem descendo pelo chão[...]

A tua toalha

[...]em me ligou, nem mandou mensagem, nada. Mas eu esperava por isso, por esse silêncio, esse distanciamento. Ao mesmo tempo em que ele olha bem profundamente, ele sabe se afastar, se dividir daqueles que o querem bem. Mas mesmo assim eu deixei a toalha dele pendurada no varal, tal e qual ele deixou da primeira e última vez que ele esteve aqui. Não! Claro que não! Não esperava que ele voltasse. Na verdade, eu nem queria. Mas deixei a toalha ali, bem penduradinha, na medida em que ele próprio deixou, mais pra me servir como troféu já que todo o resto que ele me fez sentir já foi esquecido. E como a gente é acostumado a esquecer rápido, não? Temos memórias velozes. Mas esse prêmio da toalha no varal é o mesmo que eu faço com os lençóis. Às vezes, quando alguém comovente dorme comigo, eu deixo os lençóis em que aquele corpo dormiu por dias na minha cama! Só pra eu saber que foi ali que o corpo se deitou, que adormeceu. É a minha forma de manter as pessoas perto de mim, é a minha forma de preservar as lembranças. Eu poderia ter outras, concordo, mas o que eu quero mesmo é ter partes dos corpos deles comigo, mesmo que sejam níveis epiteliais que vão escamando. Não: nunca serei um assassino psicopata. Sou apenas alguém que gosta de guardar pedaços de corpos que me cativam. A toalha já está dura no varal, os vizinhos estão comen[...]