Das 1001 tentativas

Não há idéia do amargo gosto no dia seguinte, do resquício azedo impregnante.
Não há idéia de como é ruim, não há.

Cadê a bóia? II

Cadê a bóia? Salva-vidas, socorro, estou a me afogar.

Tudo muito comportado, tudo muito educado, tudo muito polido. Tudo muito asséptico.

Todos os macacos estão em seus galhos: o macaco pesa, o galho quebra, o macaco cai, o macaco cai de cabeça, o macaco morre.

Tá todo mundo muito parado em seus devidos lugares. Tudo muito mesmo, tudo muito mono (cromático, tono, lítico), tudo muto respeitoso.

Me afogo em bom-mocismo.

Gisele Bündchen quer viver feliz “no meio do mato” em 10 anos

Vamos começar dissecando os termos: quem é Gisele? Paradigma de beleza, curvas do peito e concavidade do abdome tornam-se horizonte para muitas (e para muitos). Moça simples de Horizontina, era desmilingüida quando era adolecente (eu a conheci em 1996/7 quando fui disputar um campeonato de vôlei de escolas evangélicas, ela era deplorável – e eu também). Gisele significa hoje não apenas um modelo estético; isto também. Mas, sobretudo, significa esse complexo de borboleta, lagarta que adquire lindas cores e voa com graça – e com muito dinheiro – pelo mundo. Ela significa a transformação do corpo abjeto em corpo de sucesso.

Viver feliz: se aparecem duas palavras aqui, uma é “viver” e outra é “feliz”, e “feliz” surge como uma qualificação de “viver”, isso significa que existem muitas formas de viver. E que apenas uma delas é “feliz”. Se vida e felicidade estivessem associadas, não seria necessária essa distinção. Já que se faz presente, cabe a pergunta: por que será?

“No meio do mato”: isso é mentira. Nem Horizontina fica no meio do mato. Eu sei muito bem que vendem Ellus e Rosa Chá por lá.

Em 10 anos: segundo o calendário Maia, o mundo acaba em 2012.

So deeply sorry, Gisele. Tu nunca serás feliz.

Os homens que passam por mim

Já escrevi por aí que quando ando pela rua eu gosto de olhar o rosto das pessoas para inventar uma estória para elas em minha mente. Isso me ocupa muito tempo, me deixa absorto, compromissado com o que penso, de modo que me perco nas sinaleiras e dobro nas ruas erradas. Pareço um bêbado ou um turista desorientado, mas o prazer de atribuir estórias – só minhas – às pessoas que por mim passam é sem igual.

Hoje eu estava sentado na praça de alimentação de um shopping da cidade. Final de semana, muitas pessoas pra eu inventar estórias e nelas colar, tal qual etiqueta, minhas próprias narrativas. Mas dei-me por conta que separo bastante bem a qualidade e o percurso dessas narrativas de acordo com o gênero dos transeuntes. Para mulheres, quase sempre reservo cenas de tafetá, capitonês e organzas. Para homens... Para os homens eu não invento estórias. Para os homens eu reservo a minha própria vida, na qual eu os insiro sem modéstia.

Os homens que passam por mim – eles não percebem, mas é isso que acontece – são subtraídos de alguma fagulha que deles eu roubo. Vou andando com olhar baixo pela rua, levanto lentamente meus olhos até conectar com os rostos ou com os olhos destes outros homens. E quando eles passam, tão perto que nossas mangas roçam, eu roubo o cheiro do pós-barba, do desodorante recém colocado na axila ainda no vestiário da academia, roubo o cheiro do cigarro ou do cimento ou da tinta que mancha suas roupas. Como um bricoleur, pego retalhos de um homem aqui, de outro mais adiante, de outros tantos que já passaram por mim, e vou montando um grande espantalho – ou um Frankenstein – de um uomo que me habita, que me faz companhia. De alguns homens que passam por mim eu não furto cheiros, mas prospecto características físicas para dar cara ao meu uomo pessoal: numa tecnologia recorta-cola, tiro uma cicatriz na bochecha esquerda de um, uma barba ruiva de outro, uma mancha avermelhada no pescoço de um qualquer e vou montando um rosto caleidoscópico para meu uomo. Nesses homens observo os movimentos do maxilar ao mastigar a comida e vou tocando seu ombro, braço, antebraço e mão até me deter na mancha branca da unha do seu dedo indicador, dedo robusto de homem, vizinho de uma aliança escrota. Copio e colo o cabelo negro que balança no vento, os pêlos fartos, grisalhos e grossos que saem pela gola da camiseta, o olhar diagonal – oblíquo, de cigano dissimulado – e cheio de luz verde, o pênis avantajado que desliza pelo lado esquerdo da calça, a cueca branca, a bunda dura; copio tudo e colo tudo no meu uomo próprio. Quando chega a noite eu brinco com ele, movimentando-o no meu passado e no meu futuro, contando para ele a estória da minha vida, como ela foi e como ela será quando nós nos conhecermos, narro o primeiro momento em que nos vimos, a roupa que ele vestia e o perfume que ele usava... E todas essas qualificações generosas, cheias de detalhes bastante realistas, eu colho destes homens que passam por mim.

Será assustador o dia em que meu espantalho, meu Frankenstein, meu uomo me surgir! Porque por mais que eu já tenha narrado de trás pra frente milhares de vezes esse instante, me parece fantasmagórico que ele de fato exista.

Cadê a bóia?

Aí ontem aconteceu de eu ir a uma casa noturna para homens homoeroticamente inclinados. Viados mesmo.

Os motivos da minha exasperação não dizem respeito exatamente às roupas, apesar de serem paupérrimas. Até gosto da assimetria de estilos, gosto da junção bebelesca de modos de jogar a mesma camiseta branca sobre a mesma calça jeans cintura baixa, com as mesmas e indefectíveis calças capri. Também não me incomodo com a variedade assustadora de corpos; esse inclusive é um dos pontos fortes do local. As bunitas colocadas no pó, bíceps e deltóide bem trabalhados e “limpos” de gordura; as monas fashion com seus cachecóis imensos e cabelos desgranhados, lápis de olho e base na cara; os militares enrustidos ainda pensando que o DOPS vai tortura-los assim que sua fúria anal for acalmada depois de um rápido blow job no banheiro (disso não estamos tão distantes, vide o caso dos milicos que assumiram sua condição homoerótica em cadeia nacional de TV e em seguida foram presos); as rachas metidas a moderninhas que se assustam com uma dose de whisky bem servida, com uma cueca bem à mostra, com um beijo bem dado e com uma pegada mais forte. Nem a diáspora das barbas, dos pentelhos encaracolados e das vozes de barítono (às vezes de soprano, de castrati) chega a me dar no saco. Nada disso me irrita, nada disso me incomoda.

O que me causa arrepios é o fetichismo com que o corpo é produzido e celebrado. Minha implicância é com o fetiche, e não com os corpos. Minha implicância é com a cara faz-de-conta, o famoso carão; minha indignação é com a assepsia dos gestos e o comportamento da fala, com os atos da fala, com aquilo que é dito e da maneira com que é dito; meu incômodo diz respeito à produção exacerbada de performances cult, de performances top, à americanização do flerte; meu choque é por causa da transformação do sexo em fitness, e da conversão do aeróbico em orgasmo.

E fiquei por ali um tempo, próximo da escada, com um copo de plástico cheio de cerveja e com a mão tapando a boca para que meus pensamentos não fugissem por ela. Fiquei por ali encostado no pilar, assistindo com tristeza a esquete teatral que montaram ontem à noite, esperando que alguém do barco salva-vidas me jogasse uma bóia. Alguém, por favor!, me joga uma bóia?

Dois esportes e duas medidas

Por que motivo a derrota da seleção masculina de futebol é mais importante que as vitórias da seleção feminina de basquete e da seleção masculinda de vôlei?
Por causa da estupidez e idiotice brasileira em torno de futebol, ok.
É sempre bom lembrar como a gente é palhaço nesse país.
Agora vamos lembrar mais vezes disso durante a semana, já que os trouxas vão pagar a CSS.
"Funduras, ó Brasil, porão da América."

Cartas a uma jovem bicha - Uma possível resposta a uma inesperada pergunta

Tu me perguntas: o quanto da vida humana se perde na espera? Eu te respondo: na espera nada se perde, na espera tudo se transforma.

Veja meu exemplo. Esperei anos para poder tocar e ser tocado, e quando finalmente pude fazer e deixar que fizessem o toque não era nada daquilo que eu acreditava ser. Houve momentos em que foi melhor, houve outros em que foi pior, mas te digo que na minha espera eu construí e reconstruí tantos significados, tantos, para isso a que esperava, montei cenas e esquetes teatrais para poder dar sentido ao toque, para poder dar contexto ao toque... E nada saiu como eu imaginava. O tempo que gastei esperando não foi gasto exatamente na espera; foi gasto na constante invenção daquilo que eu esperava.

Também esperei pelo medo. E esse chegou bem como eu o previra, gelado e certeiro. Na minha espera pelo medo, ele veio em meu encalço e me alcançou sem contratempos. O terror e o desespero também chegaram. Na minha espera eu me preparei e me tranqüilizei, de modo que quando ela acabasse eu tivesse como lidar com tudo aquilo que estava por vir – e que veio, de fato.

É bem verdade que a espera pode não ter um fim. O esperado pode nunca chegar, de modo que sua chegada se converta em adiamento e cancelamento. O segredo da espera, nesse caso e em outros, acredito ser a diligência com que lidamos com ela. Se com paciência questionamo-nos sobre os motivos pelos quais esperamos um sentimento, uma pessoa, um ônibus ou um evento, somos capazes de abandoná-los. Ou de persistir esperando-os. A espera, se assim a compreendemos, tem menos a ver com aquilo ou com aqueles que esperamos, e mais a ver com o que desejamos fazer quando aquela “coisa”, situação ou pessoa nos chegar. O que tu esperas, meu amigo, daquele que tu estás à espera? O que de ti está colocado nisso que aguardas?

De antemão, eu já destruí qualquer condição que me faça esperar, por exemplo, pela simpatia dos outros. Não espero mais por isso. Também deixei de esperar, muito recentemente aliás, qualquer rapaz de cuecas limpas, olhos penetrantes e barba no rosto. Na minha agenda não há mais horários para eu esperar por reconhecimento, ou admiração. Simplesmente não faz sentido eu esperar por eles. Algumas esperas são maneiras bastante efetivas de aprisionamento e culpabilização. O que nas tuas esperas te imobiliza a conquistar outras coisas? O que nas tuas esperas te impede abandoná-las?

Esperas e aguardos não têm necessariamente a ver com tempo, imagino que tu bem saibas. Eles não têm a ver com a quantidade de horas e minutos que se passam até aquilo ou aquele nos chegar. Por outro lado, penso que esperas e aguardos têm a ver com trajetórias, com afetos, com sensibilidades. Não esperamos aquilo ou aqueles que não podemos esperar. E nossos aguardos só se apresentam e só se desfazem quando nossas trajetórias nos permitem fazê-los. Quantas e quantas esperas tu ainda não podes fazer? Quantas e quantas esperas tua trajetória ainda vai te colocar? Será que essas que vives agora serão as únicas ou as mais importantes?

De um modo geral, não tenho uma resposta definitiva àquilo que me perguntas. Ainda bem que não tenho. Penso ser importante que tu aches tuas próprias respostas. Mas também acho importante que tu mesmo formule tuas próprias perguntas dentro daquilo que podes te perguntar. Sobretudo, te provoco em três sentidos: a espera é uma ferramenta para a transformação; a espera tem mais a ver com nós mesmos do que propriamente com aquilo ou aquele que esperamos; a espera não deve nos aprisionar.

Como te sentes agora?

Cartas a uma jovem bicha - por uma vida imensa

Venha, sente aqui do meu lado e contemple daqui todos meus inimigos.
"Quem ama mata mais com bala que com flecha", e no furo se fez um rastro infinito que me percorre, que me atravessa. Há momentos em que me arrependo, mas imediatamente me ocupo em ler notícias, ou escutar músicas, ou conversar com amigos. Nunca fui dado à simpatias tranqüilas e sempre preferi a atrocidade dos sentimentos mais ferozes. Sentado em espaços de silêncio absoluto, nunca fechei meus olhos: mantive-os atentos à espera do meu predador. Bebi a última gota do vinho, do hi-fi, do gozo; gastei o último centavo da minha conta, da conta do meu pai, do limite de todos os cartões de crédito que tive; vomitei o último grão de arroz e o último pedaço de alho; lavei com escova e desinfetante o box do meu banheiro até o último mofo. Em raros momentos reservei com cautela os limites do meu corpo. Até o medo, até o nojo, até o desprezo e até o terror eu senti com força e consumi com energia. Não fui santo, nem bom amigo. Não fui o melhor aluno, nem escrevi as melhores redações. Não falei com graça, não falei coisas interessantes, não beijei bem e meu pau foi apenas médio. Nasci gordo, emagraci, depois engordei, e nasci careca, depois me enchi de cabelo para em seguida perdê-lo todo. Com meus dentes a história foi a mesma. Nunca fui objeto de desejo, de admiração ou de paixões ardentes. Nunca fui o personagem de algum sonho, nunca fui ator em fantasias sexuais de terceiros, nunca fui o responsável por sessões contínuas de masturbação grupal. Fui nativo, fui estrangeiro e fui nômade. Fiquei dormindo em casa, sobretudo nas manhãs de inverno, quando eu deveria ter ido trabalhar ou assistir à aula. Quando solicitado sobre minhas ausências, dizia de doenças, de compromissos, de viagens. Menti, omiti e inventei. Nas situações de traição, eu ri da lágrima alheia. Guardei os melhores perfumes comigo, as melhores músicas, os melhores carinhos, de modo que ao sentir-me só - e foram tantas vezes! - sempre recorri a eles. Nunca me adiantaram muito, mas nunca se negaram a me consolar. Encostei minha cabeça na parede e chorei muito por saudade.

Morrer agora?

Eu sou uma pessoa que incha, que incha muito. E acordo de manhã com bolsas embaixo do meus olhos, e elas estão ali pela quantidade de sal no meu corpo, pelo meu descuido, pelo meu exagero. Acordo com um peso na minha cabeça, uma certa tontura que me pende a cabeça para um lado, e depois para outro, e em segudida para frente, é quando eu me dou conta que me pesa é meu tumor na hipófise, e daí ele pende pra trás. Eu acordo pela manhã e estalo meus dedos no ar, causando um câncer bastante avantajdo nas minhas articulações (dizem que o investimento na artrite é descontado no INSS no Brasil)... E, sem dúvida, o céu da minha boca está retraído até quase sua metade, deixando à mostra a raiz dos meus dentes da arcada superior porque tomo chimarrão escaldante desde os 16 anos de idade e como comida muito apimentada desde os 5 (a pimenta salva ou aniquila, alguém me explica?). E eu vou à academia, e levanto 5 kg no bíceps e 30 na flexão de joelhos, mas eu não sei se posso viver mais do que a bunita sarada e bronzeada aqui do lado, eu posso? Se eu não puder, posso pedir pra morrer agora? Já, imediatamente, posso? Porque senão eu vou ficar enchendo o saco, dando no cu, chupando pau... Ahhh, tá. É só eu comer cheddar o bastante pra eu entupir o intestino. Vou pro McDonald's! BeijoMeEsquece!

Labirinto

Não, o nariz não é de palhaço.

Não, a câmera não é do Big Brother.

Não, o corpo não é previsível.

Não imaginas que artimanhas ela lança mão pra dizer-se feliz!

O excesso e o vômito lhe são estranhos, mas a graça e a comunicabilidade lhe são simpáticas.

Não, ela não bebes tanto quanto imaginas.

Mas ela se apruma tanto quanto ela gosta.

Um rompante

O que fazemos do beijo? E se o beijo surge, rompendo os lábios, se impondo às duas (ou três ou quatro, ele não lembrava) bocas sem que elas planejassem ser tocadas?

Pra ele, aquilo foi um momento, um acontecimento: dependeu de acomodações para ser levado a efeito, mas demorou muito mais tempo para ser compreendido do que levou para ser executado. Um beijo, dois beijos, três beijos... E numa tentativa de compartimentalizar o toque dos lábios e o roçar das línguas, já não pôde dizer onde começava seu corpo e onde as fronteiras do outro se chocava com as do próximo. Sofreu com seu fracasso classificatório: culpou-se por ser promíscuo, por ser fácil, por ser bêbado: beijar a boca de outros homens só não era pior porque da culpa de ser homem ele não sofria – nem nenhum outro.

Mas depois de passada a dor de cabeça pela desidratação, depois de vomitar o almoço e janta que não tivera, depois de jurar que o destilado mexicano não faria mais parte de seu cardápio, ele voltou a assumir pra si a responsabilidade primeira – eu diria última – pelos beijos dados e pelos beijos não dados. Isso porque um beijo dado nunca corresponde, em volume e em intensidade, ao beijo não dado. O beijo não dado sempre é mais longo, sempre é mais molhado e sempre tem a língua mais macia e furiosa.

O beijo que não se deram prometeu as palavras que se calaram nos beijos dados.