encontrei-te-nos-emos. pura carne sem o vinco irreparável daquilo que deve vir a ser. é uma camiseta a ser passada a ferro quente: prega de calça que, se muito insistirem, ficará marcada pra sempre. a hora qualquer, em todo o tempo possível, em que tu quiser desistir, eu sofrerei, mas entenderei e não subsidiarei com instrumentos ou estratégias. é a única ajuda que te nego desde agora. porém, se tu quiser fugir, com medo, eu te darei guarida. e se tu quiser insurgir, com raiva, eu te darei o álcool. e se tu quiser revolucionar, com força, eu me unirei a ti.
e se tu quiser mudar para outra casa, para outra cidade ou país, para recomeçar tal como eu te conheci - começando uma vida -, eu desde já apoio e peço que cuide bem dos detalhes. não vá para longe antes de ter certeza de que a latitude não remove o insatisfeito. aquilo que se deve fazer se impõe, aconteça o que acontecer, com cada vez mais força se negado. portanto, faça de primeira: vá embora, conteste, chore, grite, pergunte, acuse. do contrário, vão te deixar, vão se opor a ti, vão sofrer por ti, vão te questionar, vão te responsabilizar por crimes cujo responsável é o tempo. faça de primeira, senão o tempo te culpará pelos erros dos outros.
encontrei-te-nos-emos. que linda a tarde em que tu nasceu. não havia nuvem no céu, como se o infinito, para ti, estivesse circunscrito por uma membrana fina, longínqua, de cor azul radiante, que tu pudesse em qualquer momento, com trabalho árduo, perfurar. o sol tão imenso quanto o céu. e tua pequinês tão leve quanto uma semente. o peso da tua vida está na tua potência. o dia seguinte àquele em que tu veio ao mundo foi de pura chuva, raios e trovões, e coisas estranhas das mais múltiplas. inexplicáveis. por exemplo, pedras deslizantes e oblíquas nas quais precisei caminhar para te ver. drogas (tua mãe estava chapadíssima). acidentes de carro. por-de-sol amarelo no rio. calor e umidade atravancavam a tarde. o vento soprou forte e a temperatura amena deu lugar ao frio, anunciado pelas nuvens cinza-claro que se destacavam contra o céu escuro da noite. o mundo se revolvia pela tua chegada, te estranhando. as árvores dançaram. a água encrespou. o sino dobrou brabo. alguém estava entre nós para fazer algo diferente.
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entristeci na escrita e vou parar aqui, embora eu tivesse coisas mais bonitas para dizer sobre ele.
"Todo ser que viveu a aventura humana sou eu" (YOURCENAR, 2003, p. 267).

a da mais plástica solidão. da condição permanente de precariedade, estado de vulnerabilidade cujo volume ora aumenta, ora diminui. "todo" ser não é "todos" os seres. eu sou um ser inteiro a quem aconteceu o acidente de viver a aventura humana. nem tudo do meu ser a viveu. mas as partes minhas que viveram habitaram a humanidade esvaziada de companhia como um grito na noite chuvosa que não tem eco. a vida é um grito no vazio, sem eco. nem todo ser que vive sabe da aventura humana. há quem viva e não se aventure pelo humano. não se pode conferir qualquer precariedade humana a qualquer aventura que os seres eventualmente tenham em vida; há critérios. ser precário é condição de todo ser em vida, mas a precariedade é distribuída de maneira desigual entre aqueles que vivem. a aventura consiste em espreitar os gradientes mais intensos da precária condição de viver. a condição precária de viver sou eu. tornei-me a própria aventura, a própria e intensa precariedade. eu não sou todos os seres, mas somente aqueles que viveram a aventura humana: sou um só. como eu, outros podem tê-la vivido, mas suas condições precárias os impedem de conversar comigo. que outro tipo de aventura existe além da humana? o triste testemunho de quem só ouve a narrativa de sua própria vida por meio de rumores mal articulados pelas bocas dos outros. a flácida imagem de si mesmo que só emerge na superfície míope dos olhares dos outros. a decepcionante memória deslegitimada que não conta com nenhum companheiro para compartilhar a verdade aventureira que é ser humano. todo ser que viveu a aventura humana sou eu: sozinho.
o que esperar dos encontros, não é mesmo?, se não o choque que trepida a expectativa que temos um do outro e, dos estilhaços, fazemos um cadinho de ressentimento daquilo que esperávamos ter sido e ter tido, do quinhão que nos habilita ser humanos nem um décimo ter podido preencher, com as posturas secas e sorridentes que mandam as etiquetas para fotografias e redes sociais, a lacuna básica que nos faz seres (humanos) que sorriem para quem os despreza em busca de uma resposta, reconhecimento, se nenhuma das posturas-palavras-gestos-faces-garrafas-de-vinho-e-presentes serão suficientes para desfazer qualquer ferrugem, intoxicação ou miopia, sobre a relação mesma que está se pondo ao encontro porque precisa afirmar-se enquanto choque, estilhaço, vidro quebrado.
uma porta aberta do roupeiro, escancarada, me atira para dentro de redemoinho de bagunça, coloca em toda a superfície algo desorganizado, desigual e heterogêneo que treme a imagem que tenho do quarto. não me ocorre pensar em arrumar as camisetas, meias e casacos; quando o faço, extraio sangue da carne entre as unhas de tanto por em ordem. mortifico-me pela bola de pó que se acumula no canto do quarto, ou da sala, mas junto as pequenas bolas com as mãos sem cogitar varrer o chão, sem cogitar passar pano úmido; quando o faço, arranco partes do assoalho que se descolam do cimento graças ao excesso de desinfetante. um silêncio enganoso equilibra-se no ar frio do quarto: um cão latindo ao fundo, um carro acelerando várias quadras daqui, surpreendentemente a vizinha hoje não assiste tv no quarto ao lado; um engodo de silêncio que mais ou menos paira junto com o ar gelado. quais crueldades estão sendo maquinadas enquanto me aconchego no suposto silêncio do meu quarto? quais maldades nos aguardam para amanhã, "em mais um dia de tempo estável e temperatura amena"? ouço alguns passos andares acima, que cessam em seguida. uma porta bate. todos dormem, mas eu não. quero escavar os barulhos e quero atribuir histórias a eles. quero alocá-los no mundo, embutir sentidos nesses ruídos. quais maledicências estão sendo ditas sobre mim? qual mantra de incompetência me circunda e me eleva do chão, como névoa? o tecido da minha pele se esgarça aos poucos, instaurando vincos nas superfícies planas do meu rosto, esticando a pele grossa das mãos cuja textura se aproxima da dos papéis a4, os lábios craquelam e racham prendendo palavras que não podem sair, não agora. a boca sangra. uma desordem aparente no roupeiro, confusão de cores e tamanhos, com a porta toda aberta, escancarada. calças muito apertadas, mal costuradas, surradas do suor. camisas amarrotadas, desbotadas. não sei dizer quantos botões faltam nos suéter e nos pulôver - na verdade nem sei escrever essas palavras e ignoro a diferença entre as duas peças. ouço alguém tossindo no andar de cima: princípio de pneumonia, mulher solteira de quarenta anos, filha única de viúva, antibióticos não funcionam. sigo acordado tentando criar narrativas para aquilo que não tem ou que não merece história. crio-as mesmo assim, porque sem besuntar de memórias, de passados e de razões para existir qualquer coisa que seja eu não consigo viver neste mundo, um mundo que de mim confisca as memórias, os passados e as razões para eu existir. invisto a bola de pó de reivindicações políticas e o roupeiro esculhambado de crises existenciais. ponho significações no silêncio como etiquetas. vou desfigurando essa solidão dando nomes, profissão e signo astrológico para cada taco do piso de parquê da minha sala.
meu corpo tem estado diferente. as carnes estouram a pele. a pele tem sido rasgada e, no rasgo, tenho colocado tintas. estou bastante pintado. tenho pintas por dentro e por fora de mim. tenho rosas sangrando nos pulsos. meu corpo tem estado aguardando a morte de um jeito ansioso, e talvez alguma parte dessa tensão seja precisamente o que tem feito dele mais pujante, mais carnudo, mais polpudo. hoje, por exemplo, acreditei ser de outro a bela coxa peluda refletida no espelho, grossa e roliça. era a minha. é possível dizer, sem erro de engano grosseiro, que a precipitação em direção à morte incrementou-se. tanto mais próximo do sol, maior a claridade que incendeia o que dele se aproxima. talvez seja esse clarão, essa explosão de luz da qual meu corpo se serve agora. estou indo morrer em direção ao sol.
das razões pelas quais rastejantes reivindicações de glória fazem a pose e o viço de uma pulga à beira do ralo, precipício e abismo, despenhadeiro para um ser tão pequeno, das coisas que a pulga grita na beirada e cujos sons reverberam do fundo do desfiladeiro no qual ela inequivocamente cairá e que voltam, potentes, para o mundo todo saber que ela está prestes a cair, da palidez da pulga saltitante na beirada, borderline, esvaída de toda sua substância mas quicando como um ser cheio de vida, da mentira completa, fake news, que a pulga grita na beirada locupletando-se do eco falso que sobe de onde ela inescapavelmente descerá até o fim, já tudo sabido sobre a trapaça da pulga decidam-se afinal se a salvarão (sim, claro que o farão), se a manterão no topo do ralo (o mais baixo do banheiro), goela que engole o resquício da espuma que lava minha sujeira: pulga, tu serás salva por quem de ti precisa.