Cartas a uma jovem bicha - impeachment

“[...]dopio como vodu, e eu fui pego de surpresa. Eu estava mentindo, estava sendo enganado. Tu me acusas, como se acusação fosse, de eu estar completamente apaixonado. Pois estou. Siga em frente no processo de impeachment do meu posto de amargo, de frio, de solene e de seco. No momento mesmo em que apontas o dedo em riste para mim sob essas alegações, eu já estou num outro ponto da espiral. E dessa espiral tu nunca vais fazer parte. Na minha espiral eu beijo, beijo muito, beijo quem eu quero e quem me quer. O “eu” conjuga seu verbo no plural “nós”: eu estou com ele porque queremos. Sinto vontade de tê-lo em mim, para mim e comigo, vontade de antropofagia. Pois não é isso o beijo, isso que tu nunca aproveitaste? Não é isso o beijo, senão um ensaio de devoração? Então de agora em diante me deponha do cargo, casse meu direito de legislar em favor da causa dos solitários e deprimidos porque este posto só pode ser teu [...]”

Um mundo sobre rodas.

Uma arqueologia é isso: é eleger ou de repente ver o que nunca antes pôde ser eleito ou visto, escavar o que lhe sobrepõe, achar outras coisinhas em volta, relacionar essas coisinhas àquilo que foi eleito, verificar as conexões que podem ser estabelecidas entre elas, produzir sentido ao que se vê ou ao que foi escolhido. Não há ponto de origem, marco inicial, monumento de referência; nada sinaliza o local exato onde tudo começa. Já escrevi sobre isso antes, outros já escreveram de uma maneira melhor que essa minha. Não vou me deter explicando isoladamente a teoria na qual eu vivo minha vida – sim, toda vida tem uma teoria, uma filosofia, um pano de fundo conceitual.

Um dia um bom amigo me ensinou que não há sede sem água, nem fome sem pão. Nesse dia eu entendi que nada acontece a sós, mas sempre implicando outra coisa num outro nível, numa outra dimensão. Nada de sobrenatural, de extra humano. O que vivemos e sentimos é desse mundo mesmo, ao qual pertencemos, da nossa história de aqui e agora. Não vou cair na breguice de dizer que eu só sou eu porque há tu, tampouco vou afirmar que agora minha sede está saciada da tua água e tua fome, do meu pão. É possível dizê-lo, mas isso seria não escavar, não explorar, não cortar em lâminas a superfície disso que eu elegi ou disso que eu de repente vi: tu.

Tu: um mundo sobre rodas. Isso já dá um livro de contos, horas navegando no Google, semanas de análise lacaniana, anos de interpretação junguiana, já é o suficiente para meu deleite. Pensar num mundo sobre rodas não é só pensar num mundo em movimento, ou num mundo dinâmico, mutável, leviano. Teu mundo não é leviano. Um mundo sobre rodas também não é um mundo à deriva, sem rumo, nem um mundo que escapa ou que foge. Tu não és um fugitivo. Um mundo sobre rodas não é rápido nem veloz. Portanto, um mundo sobre rodas – o teu mundo sobre rodas, tu – não significa velocidade, leveza, nem covardia.

Meu mundo era cor de rosas. Isso já deu semanas de análise lacaniana, anos de interpretação junguiana. Meu mundo era cor de rosas, mas nunca foi sempre feliz – digamos que os momentos de felicidade estavam salpicados, como gotas, nas pétalas. Também não foi sempre cheiroso, perfumado; meu mundo cor de rosas não foi sempre macio e aveludado. Meu mundo cor de rosas nem sempre foi rosa: foi, em sua maioria, da cor de um amanhecer de inverno. Meu mundo cor de rosas soube aproveitar bem seus espinhos.

Eis que houve o dia, o momento, em que o chuveiro e o vapor, em que as toalhas e o suor serviram de pretexto para pôr lado a lado, totalmente nus, teu mundo sobre rodas e meu mundo cor de rosas. Não tomemos este como sendo nosso monumento: não levamos nossos corpos até lá calculadamente, mas sim fomos levados e arrastados para lá por forças sobre as quais em geral não pensamos. Havia um desejo lá no teu mundo e também um desejo aqui no meu; havia um pouquito de tristeza lá nas tuas rodas e um tanto de solidão nas minhas rosas; havia histórias de outros tempos que nos conduziram até lá (no teu mundo, histórias de lentidão, de pesar e de coragem, histórias de monotonia, de mentiras) [no meu mundo, histórias de morte e luto, de cegueira monocromática, histórias de asperezas e friezas, de fedores]. Não acho que foram nossos olhos, por primeiro, que se tocaram. Foram os joelhos: nos ajoelhamos. Se não há ponto de origem para nós dois (poderíamos ser nós três; na verdade éramos nós cinco lá no chuveiro e no vapor, e desses cinco subtraíram-se dois [nós dois], e desses dois multiplicaram-se tudo o que fizemos até agora), se não há esse ponto inicial, há pelo menos um ponto de engate, de enlace, de intersecção: os joelhos. “Como vocês se conheceram?”, nos perguntam. Respondamos: “Foi pelos joelhos”. E dos joelhos achamos outras coisinhas em volta, outras coisinhas no seu entorno, coisinhas que se avizinham dos joelhos, e fomos escavando essas relações todas entre nossos joelhos, achando rosas sobre rodas e rodas rosáceas, e quadrados, ângulos, verdes e laranjas e morangos, risadas, dias, entardeceres e noites. Coisinhas em volta, conexões entre nossos joelhos. Estamos construindo algo, é bem verdade, montando um rosto para este terceiro mundo, uma face a que se reconhecer e da qual se alegrar. Mas também estamos escavando um ao outro, como se ao fazer nossa arqueologia também estivéssemos fazendo o que queremos do nosso presente.

Sem chances, sem saídas e amando muito tudo isso

Fui encurralado. Lá num cantinho difícil de sair, também difícil de chegar, de fazer construir. Eram muitos meus cantos, meus ângulos. Fiquei preso num deles exatamente quando pensava estar destruindo essas linhas retas que o formavam. Linhas retas que me formavam. Fiquei ali um tempo me debatendo, fazendo um drama – drama Queen – fazendo uma ceninha básica. Deu certo por um tempo, por um certo tempo, mas é hora de mudar de estratégia: é hora de prescindir de qualquer estratégia. Não tenho mais chances, entre as muitas que tive. Ou deixo ir, laissez faire – laissez passer, let it be, que se foda; ou volto no tempo, insisto num certo erro [pessoa confusa essa que insiste num certo erro]. E meu canto – meu ângulo – virou meu canto – minha música. Canto em qualquer canto, já cantou o Ney. A menor distância entre dois pontos jamais foi uma linha reta. A menor distância entre mim e ele não comporta linhas retas, e a maior distância espero nunca mais haver. Nossa menor distância é medida em palavras, palavras que comportam silêncios, palavras ditas pela metade, palavras sussurradas, palavras incompreensíveis, gemidos. Nossa menor distância é também medida pelo toque, toque de um joelho no outro quando os corpos já se tinham descobertos – só mesmo dois românticos para se excitarem com o toque de um no joelho de outro quando os corpos já assinalavam a falta de qualquer coberta, cobertura, véu. Nossa menor distância é medida pelo toque que desliza na superfície, toque que corre, toque que aperta, toque que afaga, toque que puxa os cabelos, toque que beija: o beijo é um toque. Nossa maior distância, já disse, espero que nunca mais exista; e se existir, que para ela não haja medida.
Não tenho escrito muito por aqui, para ti, porque ando escrevendo de outras formas e para outros leitores. Às vezes nem escrevo mesmo, só durmo ou lavo roupas. Há coisas assim, poucas e pequenas, miúdas, que precisam ser feitas: aspirar o carpete, cortar o cabelo. Tenho perdido muito cabelo, mas de fato meus fios cresceram muito nos últimos meses. Tenho feito outras coisas, para outras pessoas. Tenho perdido o contato com alguns amigos, fabricando defeitos neles, me magoando e me consolando “todos tem seus poréns”, e de fato me chateio com o descaso alheio. Decidi adotar a lei de talião em relação a alguns, pedagogia do choque. Com outros, preferi aplicar a lei surda, pedagogia do silêncio. Não nego que sinto prazer em fazer alguns sofrer, me vingo e gosto de me vingar, mas gostaria de não ter que fazer isso. Tenho recobrado o contato com alguns que há muito não via. Rigorosamente iguais: mesmas piadas, mesmas expressões colocadas na mesma ordem em todas as frases que versam do modo exato sobre os mesmos assuntos há quase uma década. Dinheiro, mesada, sexo, aula, festinhas, shows, beijos e internet. Não quero dizer que assuntos de “adultos” falem de outras temáticas, às vezes sim, mas pelo menos são assuntos tratados de outros modos. Dinheiro não significa sempre mesada, apesar de continuar sendo importante; sexo e festinhas não subentendem sempre aulas e internet, apesar de eventualmente estarem correlacionados. Cortar em lâminas as superfícies disso que vivemos, ou não. E assim a gente vai bifurcando os caminhos, desencontrando de uns e misturando-se a outros.