Continuação da entrevista III

- Eu gostaria de esclarecer o seguinte: o que seria isso que tu chamas de reinvenção de si?

- Essa é uma pergunta fundamental, importantíssima. Reinvenção de si, para mim ou para nós, significa estar sempre atento ou atentos àquilo que poderíamos ser diferentes de antes. Reinvenção de si, para mim ou para nós, é entrar no fluxo do processo de não ser sempre O Mesmo, não ser sempre idêntico. É dobrar sempre mais uma esquina, entrar sempre por mais uma porta ou sair sempre por mais uma janela. É olhar-se e nunca reconhecer-se como outrora, é como ser um constante retrato cubista. Sobretudo, significa transformar a questão “quantos leões terei de matar hoje?” para “quais os leões que posso domar hoje?”. Reinventar-se é a possibilidade de mudar a todo momento as relações que nos assujeitam. Isso tem importantes implicações, por exemplo, para a função autor a partir da qual começamos essa nossa conversa. O autor ou a autora, ou os autores ou as autoras, não é ou não são proprietários e proprietárias, sequer inventores ou inventoras, de seus textos. Colocando-me ou colocando-nos contra a vontade da maioria, que nem de longe é democrática, não admito ou não admitimos ser punido ou punidos por aquilo que escrevo ou escrevemos. Sou ou somos porta-vozes dessa nossa polifonia. Admito ou admitimos, então, que posso ou podemos ser boca-maldita ou boca-do-inferno, mas tão-somente se a maldição e o inferno forem aqueles compartilhados por todos nós.

- Mas o autor não é capaz de criar? Nós não somos capazes de originalidades?

Continuação da entrevista II

- (...) Parece-me que tu tens uma certa aversão à noção de identidade...

- (silêncio)... Jamais disse ou dissemos que a noção de identidade me ou nos causava aversão. (silêncio). Veja, esse problema, o da identidade, não é apenas uma questão teórico-conceitual, não é apenas um modo de expor ou de descrever as maneiras com que o mundo hoje se produz e as maneiras com que ele é vivido. Dizer “o mundo é assim hoje por causa disso e daquilo”, ou dizer “o que estrutura o mundo hoje é isto e aquilo” são formulações que empobrecem isso mesmo que têm pretensão de explicar: o mundo. Não me ou nos interessa tanto o mundo quanto as pessoas que dele fazem parte, que o sustentam e que fazem do jeito que aí está. (silêncio). Seria possível de levantar a questão do mesmo, da identidade, do idêntico, enquanto função que cruza o domínio da produção das subjetividades de modo contundente. Com isso, sugiro ou sugerimos que O Mesmo, assim escrito, com letras maiúsculas, implanta não exatamente um lugar confortável a se habitar, mas faz aparecer um jogo a partir do qual ele será produzido e re-produzido constantemente. Tenho ou temos um casal de amigos que estão juntos há quase quinze anos e em todo aniversário da relação eles vão ao Mesmo restaurante, comem a Mesma comida, depois vão para o Mesmo ponto da cidade admirar a vista – que não é a Mesma de quinze anos atrás, e por isso eles reclamam – e depois fazem sexo e gozam na Mesma posição. Para este ano, eles planejam renovar ou reafirmar o voto de matrimônio. Perguntamo-nos: é necessário? Respondemos: Sim! Porque O Mesmo precisa, requer, demanda, pede, grita pela reafirmação, pela repetição. (silêncio). O problema da mediocridade me parece ou nos parece que tem a ver diretamente com o jogo do Mesmo, da identidade. É a repetição à exaustão daquilo que é idêntico ao anterior: casamento, família, amor romântico... Mas não só isso! Temos o costume de enxergar com desprezo todos esses valores pequeno-burgueses, assim mesmo, com esse nome, por causa de nossa genealogia marxista. Outrora acreditamos que a revolução da classe oprimida nos libertaria da coisa mais odiosa que pode haver: a própria opressão. E foi então que, depois de investir fortemente na produção desta revolução, nos demos por conta que a classe oprimida também faz uso da opressão. Mais uma vez, nos deparamos com o jogo da identidade: a opressão não está intrínseca à classe e àqueles que a compõem, mas na relação que a classe estabelece com as demais. Há também repetição e mediocridade nesse culto à putaria, à cocaína, à prostituição. Acredito ou acreditamos, contudo, que há muito mais possibilidades de reinvenção de si para aqueles que habitam tais margens, como as da putaria, da cocaína e da prostituição do que para aqueles que insistem na família e no amor romântico como modelos de vida a serem perseguidos, como é o caso desse casal que acabei ou acabamos de mencionar. Eles detestam o fato de a paisagem da cidade ter mudado em quinze anos, ou seja, detestam o movimento que o diferente imprime ao idêntico. As ditas classes oprimidas exerceram opressão idêntica àquela que sofreram, e o jogo do Mesmo se atualizou. Não houve reinvenção nem para as classes oprimidas, nem para meu ou nosso casal de amigos. (silêncio). Haveria rompimento da repetição, talvez, se esses dois amigos que estão juntos há quinze anos cheirassem cocaína no dia de aniversário da sua relação, e pagassem pelos serviços de um profissional do sexo para trepar com eles, e se mesmo depois disso eles estivessem juntos no seu aniversário de dezesseis anos de relação para, então, ir ao Mesmo restaurante e pedir a Mesma comida e perceberem que o tal restaurante tem uma cozinha horrorosa. O que quero ou queremos dizer é que a diferença provoca e desafia a identidade, não no sentido de superá-la para dar-lhe outra identidade, mais reforçada que a anterior, mas no sentido de fazê-la reorganizar seu sentido. (silêncio). Isso porque a diferença não tem um lugar, não tem uma marca, ela não compactua com nenhuma regra do jogo da identidade. (silêncio) E quando falamos em “o autor”, quando lhe atribuímos um nome próprio ou uma coerência à obra por ele ou por ela produzida, estamos endossando o jogo da identidade, o jogo do Mesmo. Seja pela sua caligrafia, seja pela sua estilística. Desculpe-me ou desculpe-nos pelos inúmeros momentos de silêncio. É que essa problemática da identidade é algo que me comove ou nos comove.

- Entendo perfeitamente e louvo sua habilidade em falar de um assunto tão difícil; voltaremos a esse tema em breve. Eu gostaria de esclarecer o seguinte: o que seria isso que tu chamas de reinvenção de si?

Continuação da entrevista

- (...) Mas voltemos a um ponto: o da caligrafia. Tu achas que o fato de os textos, hoje em dia, serem digitados no computador faz com que a caligrafia se perca? A digitação desconstrói essa identidade da letra desenhada com o próprio punho?

- Essa pergunta me parece ou nos parece interessante. Penso ou pensamos que não faz sentido falar numa perda da caligrafia, ou numa perda da identidade da escrita de próprio punho. A princípio, tenho ou temos sempre a vontade ou o desejo de entrever a positividade dos acontecimentos: a caligrafia não se desfaz com os teclados dos computadores, ela é reinventada. Pensemos, por exemplo, no quão difícil era entender o que estava escrito numa receita médica. A total confusão das palavras ali escritas, do modo com que elas estavam escritas pelo punho do médico, era ela própria uma relação de poder: somente o médico ou a médica e o farmacêutico ou farmacêutica entendiam o que ali estava – e às vezes nem um nem outro (risos). O paciente, ou o cliente, ou o usuário dos serviços de saúde não decifrava o que estava escrito, apesar de saber sua saúde em estado de dependência daquele texto incompreensível. Se um médico ou uma médica hoje em dia pode escrever sua receita através de um programa de computador e apresentá-la impressa para seu paciente ou seu usuário, isso desfaz muitos mal-entendidos! Digamos que essa – abre aspas – perda da identidade – fecha aspas – da caligrafia médica tem a potencialidade de mudar a relação de poder entre médico e paciente. Pensemos, por outro lado, o quão difundidos eram algumas décadas atrás os tais cadernos de caligrafia. Eu cheguei a fazer muitos exercícios neste caderno, meus pais me estimulavam para isso. Minha mãe, que é professora primária, dizia que isso facilitava o trabalho das professoras e dos professores na correção dos textos dos alunos, sobretudo quando nas séries iniciais, de alfabetização. Ora, os cadernos de caligrafia não passam de uma técnica de disciplinamento dos corpos! Eles efetivamente se constituem numa estratégia de docilização dos corpos, no sentido de compor uma uniformização da letra escrita sob a alegação de prover maior e melhor clareza e compreensão do texto do aluno ou da aluna em processo de alfabetização – o que não passa de um incremento no controle exercido pelo professor ou pela professora sobre seus alunos e alunas. Mais que isso: os cadernos de caligrafia, atuando na uniformização da letra escrita, acabavam por apagar isso que hoje chamamos saudosamente de – abre aspas – identidade da caligrafia – porque visavam a um modo único de escrever. Em suma, essa mudança técnica, conceitual e política que hoje se coloca para o exercício da escrita usando computadores já está inserida na nossa sociedade há muito tempo, mas através de outros processos que historicamente são invisibilizados. O caderno de caligrafia é um deles. A máquina de escrever, a seu tempo, foi outro. Mas o que eu queria ou nós queríamos é sublinhar que, sim, talvez exista atualmente uma descontrução disso que se chama a identidade da caligrafia, mas também me parece ou nos parece importante assinalar o deslocamento dessa suposta identidade do desenho da letra para a forma com que se usa ou se brinca com as palavras, com as vírgulas, com os travessões, com as regras de gramática e uso de expressões coloquiais nos textos escritos e publicados. Da estética visível, que é a caligrafia, para a estética sensível, que é a da compreensão e habilidade para jogar com a linguagem. Isso, é claro, renunciando avidamente esse lugar vazio, o do autor.

- Renunciar ao lugar do autor? Parece-me que tu tens uma certa aversão à noção de identidade...

- (silêncio)...

Entrevista com o, os, a, as autor, autora, autores

- Ouvi dizer que tu não és um, és vários. Isso é verdade?

- (risos) Veja que a pergunta traz em si suas próprias armadilhas. Em primeiro lugar, a expressão “ouvi dizer” já não combina com a palavra “verdade”, embora para alguns “a voz do povo é a voz de deus” (risos). Quando se ouve dizer, assim, num comentário ao pé do ouvido, num murmúrio longínquo, enfim, quando alguma informação sem autoria nos chega, é possível que nada dela se extraía a não ser calúnias com vontade de verdade. Acusações sérias e graves como essa normalmente não são feitas sem que seu autor, ou seus autores, tenham nome, endereço, cep, celular, email, perfil no orkut, tudo revelado. Isso porque muitos querem pra si o orgulho de que tal acusação seja verdadeira. Segundo, ser “um” é um sonho tão patético! Jamais somos “um! Na nossa masturbação diária em frente ao computador somos os mesmos daqueles que somos quando sentamos à mesa para almoçar com nossos pais, nossos filhos, nossos homens ou nossas mulheres? Por que motivo, então, me cobram ser um ou uma quando escrevo, ou quando escrevemos, para esse blog e outro ou outras quando saio ou quando saímos pra comprar pão? A questão de eu ser eu, ou não ser eu, ou de ser eu e mais outros tantos, entre outros tantos eus, é tão óbvia quanto irrelevante, porque tudo que aqui há também está nas novelas da televisão, nas letras das músicas do rádio e da internet, nas notícias dos jornais, em suma, as histórias que aqui se leem não são minhas ou dele, ou dela. São sobretudo nossas! São produtos de um tempo específico, do nosso tempo. E, perdoa-me, me parece muito antiquado perguntar “é verdade?” para um entrevistado, ou para vários entrevistados (risos).

- Por quê?

- Porque a questão da verdade não é formulada desse jeito, “isto que afirmo é verdadeiro ou falso”, não sem antes poder ser formulada no interior de um campo de possibilidades do verdadeiro.

- Podes explicar melhor?

- Sim, claro, sou generoso, ou generosa, ou somos generosos com as mentes menos brilhantes. Não faria sentido perguntar para um escriba da Mesopotâmia se ele era um ou vários autores dos pergaminhos escritos em seu colo, já que não havia muitos que soubessem ler e escrever. Não faria sentido perguntar para um remetente se ele ou ela era um ou vários autores da epístola que viajava de Veneza à Londres no século XVII. Isso porque, em ambas as épocas, as possibilidades técnicas de escrita dificultavam que houvesse mais de um autor para um mesmo texto, o que não significa que um escriba não pudesse continuar escrevendo um pergaminho inacabado, ou que algum impostor não pudesse falsificar a letra de um amante e escrevesse uma carta cuja autoria fosse uma – abre aspas – falsidade ideológica – fecha aspas. Com isso, quero ou queremos sublinhar que justamente numa época como a nossa, em que o teclado dos computadores digita letras sem caligrafia nas folhas em branco, em que existe um espaço como a internet em que os escritores de textos podem permanecer anônimos, nesta nossa época se faz possível um certo conjunto de dúvidas sobre a autoria de alguns textos que vemos circular. Nesta nossa época é possível duvidar que não exista apenas um autor ou uma autora para um ou vários textos. Duvida-se, de um lado, que um autor ou uma autora tenha escrito vários textos, e se duvida mais ainda que vários autores tenham escrito apenas um texto! Nessa nossa época é que se faz possível questionar-se sobre a verdade ou a falsidade de afirmações do tipo “você é um autor” ou “você são vários autores”.

- Obrigado, sua resposta foi bastante esclarecedora. Mas voltemos a um ponto: o da caligrafia. Tu achas que o fato de os textos, hoje em dia, serem digitados no computador faz com que a caligrafia se perca? A digitação desconstrói essa identidade da letra desenhada com o próprio punho?
Muitos substantivos, eles dizem, textos muito substantivados. O “eu” continua sendo o ator/autor da narrativa, continua sendo um personagem autônomo, autocentrado, cheio de poder para dar significado à vida. Usa demasiadas palavras para dizer o que pensa, e como pensa, quando na verdade o que existem são inúmeros vacúolos de silêncio no seio desse “eu” pensante que tenta disfarçar suas lacunas com palavras. Nada mais claudicante que palavras para dar conta do niilismo do “eu” – nem o corpo lhe serve como abrigo ou como substância.

Existe linguagem possível? Pra dizer que quando teus cabelos voaram sobre a testa, repartidos pelo meio da cabeça, e teu olhar me reconheceu e eu te reconheci? Pra dizer que te sabia por trás do interfone, subindo o elevador, caminhando pelo corredor? Pra quando senti teu dedo pressionando a campainha? Pra dizer que palpitou meu olhar e saltou minha mão, antes descansando sobre minhas pernas cruzadas, na direção da tua, pra dizer que teu peito passou demasiadamente próximo dos meus olhos e que não pude crer – nunca tinha percebido antes – o quão possante ele é? Eu sei que tu te insinuas, que tu baixas a cabeça quando não sabes o que dizer, mas mesmo aí nesses instantes teus olhos sobem e procuram os meus formando um ziguezague que nem desce ao chão e nem voa pelos ares. Eu sei que tu te enroscas nos postes, que tu deslizas pelas ruas na caça, na procura, na peregrinação solitária de mim. Eu estou aqui, estou aqui, e não em outro lugar.

De pé, em frente às portas abertas que dão para um imenso salão supostamente vazio e escuro, concordo que meu vazio és tu, que nunca será preenchido.

O que é um autor

Hoje me joguei na biblioteca. Me sentei e li durante alguns minutos várias páginas sobre o que foi, ou quem foi, um autor que gosto muito. Já morreu, faz tempo. Estranho exercício o de construir roupas, risos e rostos para atribuir as palavras que admiro tanto. Porque, na verdade, ele tinha muito de normal (justamente do ‘normal’, daquilo que ele passou boa parte de sua vida na inglória tarefa de desconstruir). Porque, na verdade, vejo muito de mim naquela figura esguia, cujos fundos das gavetas e das prateleiras pareciam guardar sempre mais caminhos interligados a cômodos impensáveis dentro de sua casa. E ontem me joguei no shopping. Comprei calcinhas finas, de pleno potencial para o rasgo, de modo que sejam facilmente sugadas pelo turbilhão do meu “meio”, do meu “entre”, do meu “meridiano” – tanto o frontal quanto o dorsal. Gostoso mesmo é sair da loja com a certeza de que não tenho como pagar pelas calcinhas, que não tenho muitos a quem mostrá-las, mas a delícia é usar algo que não é meu e, ao mesmo tempo, apoderar-se dele: sugá-lo para dentro, in-corpo-rá-lo. E anteontem me joguei na terapia. Fui tratar dessa compulsão pela verdade, pela retidão e acertos de escolhas, pela vontade de transparência. Não sou, não posso ser transparente, não quero exigir o mesmo dos outros. E como é difícil não poder intuir, ou fazê-lo minimamente, quase às cegas! Porque vontade de transparência e paixão pela verdade são formas de vigilância e de controle, tesão por governar o outro. Ora, que governo quero exercer? Já não me basta a calcinha enfiada no meio das pernas, ainda sinto desejo de vigiar a cueca alheia? Quem é esse autor?
Tardes cinzas que eu supunha esquecidas voltaram em tons degradê. No tobogã que se abriu em curvas, do branco ao preto, nenhum sulco colorido impediu meus movimentos. Não é somente um outro jeito de olhar, nem um outro jeito, talvez mais ingênuo, de se mostrar. A descrença e a desconfiança são modos de materializar a vida; tão concretas quanto as novas imagens que fazem e desfazem as telas onde lemos e escrevemos sobre nós mesmos.