Contracorriente, Plata Quemada & Brokeback Mountain: Os Seis Homens que Não Amavam as Mulheres - ou Os Homens que Amavam Alguns Homens


A matriz homoerótica

Esse subtítulo em corruptela é um arremedo um pouco mal feito. Toma uma parte do título do primeiro volume da trilogia de livros “Millennium” – que do sueco para o português de Portugal foi traduzido literalmente para “os homens que odiavam as mulheres” – e o coloca a serviço de um desejo meu bastante específico: passear por entre algumas digressões a partir dos três filmes que encabeçam este texto. É um arremedo mal feito porque na trilogia “Millennium” não se dá centralidade às relações eróticas e afetivas entre homens como se dá em Contracorriente, Plata Quemada e Brokeback Mountain. É um arremedo mal feito porque “não amar as mulheres”, em “Millennium”, não é um outro modo de dizer “amar os homens”. É um arremedo mal feito porque “odiar as mulheres”, como explicita o título original em sueco do livro, não é o mesmo que “não amar as mulheres”, como é a tradução brasileira do romance. Mesmo sendo um arremedo mal feito, ainda aposto no seguinte: a matriz homoerótica e homossocial operante em Contracorriente, Plata Quemada e Brokeback Mountain pode ser expressa do avesso, em uma negação ou como em um filme negativo de uma fotografia, por meio da descrição “os homens que não amavam as mulheres”. Aposto, contudo, que os homens que não amavam as mulheres em Contracorriente, Plata Quemada e Brokeback Mountain não necessariamente odiavam as mulheres – apenas algumas delas. Nesses filmes, é possível sugerir que de fato os homens não amavam as mulheres, o que pode implicar na hipótese vigorosa de que, sim, “não amar as mulheres” corresponde a “amar os homens” – mas não todos, nem quaisquer homens. Talvez o subtítulo mais adequado a esta pequena digressão muito pessoal poderia ser: “os homens que amavam alguns homens”. Veremos. “Alguns homens” expressa bastante bem o que entendo ser a matriz homoerótica comum aos três filmes: tratam-se de três duplas de homens (Ennis e Jack, em Brokeback Mountain; Angel e Nene, em Plata Quemada; Santiago e Miguel, em Contracorriente) nas quais ao menos três deles encarnam especialmente certas masculinidades clássicas. Pescador casado, quase-pai (Miguel); homem do campo, seco e ríspido (Ennis); bandido ex-presidiário, fugitivo (Nene). Os correspondentes parceiros ou aderem à paternidade familiar e à relação monogâmica heterossexual de modo opaco (Jack), ou habitam um mundo esquizo, mentalmente esfumaçado por drogas e vozes inauditas (Angel), ou são artistas-pintores exilados, solitários, cujos laços com a urbanidade ocidental foram rompidos (Santiago). Nas três duplas, um polo encarna regras tradicionais do ser-homem, com toda sua disciplina espartana, linguagem árida e econômica, peles casca-grossa; o outro polo orbita aí como um resíduo deste homem-tradição, como um produto desencaixado, como um pedaço de terra à deriva, e às vezes em estado de revolta, deste imenso continente-homem. As três duplas negam o tropos da inversão, que faz novena ao mito de que um homem, quando ama outro homem, só pode ser uma mulher por dentro; que em uma relação entre dois homens, haverá sempre um mais feminino, que dará o cu para e que chupará rola do outro, que por sua vez ocupará o lugar mais masculino. Não há sinais aparentes de tributo ao tropos da inversão nessas três histórias, nessas três duplas. Talvez o mais desafiador das histórias envolvendo esses seis homens é que são “homens que amam alguns outros homens” enquanto homens, sem recorrer tão facilmente à feminilidade para dar inteligibilidade às relações estabelecidas, aos desejos, às práticas sexuais e afetivas que ligam, articulam, implicam e aproximam esses seis homens em suas duplas. Precisamente por isso, há uma ode à masculinidade viril, à hombridade supostamente honrosa, que apagam quaisquer marcas de feminilidade dos seus corpos, de seus desejos, de suas histórias. Tratam-se de três histórias que emergem e se desenvolvem de maneiras masculinas, másculas: nas montanhas frias, em cabanas no campo, durante o pastoreio de inverno ou durante pescarias fortuitas; em séries de práticas ilegais e de contravenção, na fuga baratinada da força da Lei do Estado, na frequentação de cinemas pornôs e banheiros de pegação, no uso e no abuso de drogas; na lida cotidiana e diária da pescaria em alto mar, em um vilarejo cuja ordem dos gêneros estabelece que os homens se lançam ao mar e as mulheres guardam a terra. As três duplas vivem às turras com a heterossexualidade e com a heternorma. Mas também delas se ocupam e a elas servem: Ennis e Jack usam como desculpa para suas esposas a pescaria anual na montanha Brokeback para viverem dias de paixão intensa; Miguel encontra Santiago somente em praias desertas ou em casas abandonadas, e regozija quando consegue passear pelo vilarejo de mãos dadas com o parceiro, ou quando assiste à novela acompanhado da sua mulher grávida e do parceiro – mas apenas quando este se torna uma alma penada e invisível. Só Angel e Nene, os criminosos que já transgrediram tantas regras, parecem dar pouco valor à heteronorma: Letícia, apaixonada por Nene, oferece-lhe uma oportunidade de fugir de Montevidéo para o Brasil passando-se por sua namorada; os policiais aduaneiros estariam procurando por dois homens juntos e não por um casal heterossexual, seria fácil cruzar a fronteira de modo seguro e invisível. Nene expulsa Letícia e escolhe ficar com Angel, resistir ao cerco da polícia uruguaia, morrer ao lado do seu resgatador espiritual. Quanto mais criminoso e ilegal é o casal, mais profundamente éticos são os homens. A matriz homoerótica que liga essas histórias, contudo, institui um princípio de invisibilidade e discrição entre as duplas que negocia, em muito, com a virilidade masculina, conjurando o fantasma feminino. A virilidade desses homens é elemento constituinte da matriz homoerótica que dá consistência, sabor e cheiro, aos corpos e aos rostos dos “homens que amam alguns outros homens”. São seis homens másculos, fortes, magros, brancos. Que desejo nosso as histórias desses homens realizam? Que estranha força tem a matriz homoerótica dessas histórias, desses corpos, a ponto de nos tirar noites de sono?

O resgate de si e do outro

O primeiro desses filmes a que assisti foi Plata Quemada, na Casa de Cultura Mario Quintana, pelos idos de 2000. O filme me mobilizou a ponto de assisti-lo 3 vezes, em dias consecutivos, exigindo que eu faltasse aulas para ir às sessões. Eu tinha 17 anos. A intervenção do filme em mim não foi amadurecida muito além da lembrança bastante firme das cenas de sexo e carícias entre Angel e Nene. Quando comprei meu primeiro aparelho DVD, uma das minhas primeiras aquisições foi justamente o filme Plata Quemada. Desde então me ponho a vê-lo sempre que quero, e com o passar dos anos o meu querer diminuiu consideravelmente. É um filme longo, e eu já conheço as falas de antemão. É um filme explícito em violência, uso de drogas, ilegalidade, roubo, traição, marginalidade, contravenção. Não é sempre que estou disponível a rever essa história que articula tão fortemente uma determinada experiência homoerótica àquilo que se considera ilegal e criminoso, moralmente reprovável. No entanto, essa articulação guarda em si aspectos éticos, quiçá de amor, que são opulentos. A cumplicidade entre Nene (frio e racional) e Angel (psicótico e impulsivo) é profundamente ética. Na sua fuga da polícia argentina por serem os autores do “assalto ao caminhão pagador”, ficam reclusos em um apartamento em ruínas de Montevidéo. Ao longo da fuga, Nene resgata Angel de ferimentos de bala, de overdoses de heroína, de tentativas de suicídio por afogamento; Angel, por sua vez, resgata Nene apenas nas últimas cenas do filme, quando este é baleado mortalmente durante o cerco ao apartamento onde se escondiam da polícia uruguaia. E trata-se de um resgate absolutamente espiritual, quando ambos sabem que suas vidas estão no fim. O nome deste homem, Angel, é um anúncio literal não só da sua função como resgatador de Nene perto do fim da vida como também um emblema de remissão mediante o amor, ou mediante o cumprimento do compromisso ético que liga esses dois homens. Em pouco difere a relação que Miguel estabelece com Santiago depois de sua morte. Miguel celebra funerais aos mortos, dedicando seus corpos ao mar por meio de um ritual que inclui carregar os mortos em seus ombros, deitados em uma esteira de taquaras e enrolados em panos simples, leva-los até um barco, dizer palavras de encomendação e lançá-los em alto mar. É precisamente desse ritual que a alma de Santiago precisa para ir embora da terra. Santiago “assombra” Miguel, que se satisfaz inclusive sexualmente do espírito vagante e invisível do parceiro, desejando que assim fosse até o final dos dias. É estarrecedor o egocentrismo de Miguel, que deseja que a alma invisível de Santiago permaneça presa à terra unicamente porque assim Miguel (pescador, marido, pai-de-família) despreocupar-se-ia em ser pego em romance com outro homem. É também deste egocentrismo macabro do qual Santiago precisa resgatar Miguel, ou melhor, do qual o próprio Miguel precisa resgatar-se por meio da prática do ritual fúnebre de entrega, dedicação e oferecimento do corpo de Santiago ao mar. Mesmo tendo encontrado o corpo morto de Santiago, Miguel amarra-o às pedras embaixo d’água para aproveitar um pouco mais sua assombração, a companhia do parceiro morto. As correntes, ou contracorrentes, marinhas traem Miguel e deslocam o corpo morto de Santiago, que é achado pelos outros pescadores do vilarejo e é escondido de Miguel. Afinal, Santiago manchara (punha em dúvida) o pescador-marido-pai-de-família, e de Miguel até mesmo o corpo em avançado estado de decomposição precisava ser afastado. Miguel descobre o corpo e aceita ritualizá-lo publicamente. Uma das consequências disso é a perda da mulher e do filho, que o deixam. Mas outra consequência da tomada de responsabilidade pelo ritual fúnebre do parceiro morto é a superação do seu egocentrismo macabro, liberando a alma de Santiago, além da assunção do resgate da sua honra ética para com Santiago – honra de sua relação, de suas pinturas, dos dias de sexo na praia, dos beijos, dos desejos. É-me difícil, contudo, pensar em resgate de qualquer ordem quando se trata de Brokeback Mountain. Talvez seja esta uma das razões pelas quais me pareça que esse é a mais triste e sombria das três histórias, mais ainda que Plata Quemada. Também não amadureci os motivos que me levaram a assistir ao filme oito (8 = o-i-t-o) vezes no cinema, duas vezes num só dia. É provável que eu tenha me fascinado, e me torturado, com a impossibilidade do resgate de Ennis e de Jack – a impossibilidade de resgatar aquela relação, aquele desejo, aquele laço ético que os unia. Quando Ennis tenta reclamar a presença de Jack e liga para sua casa, sua mulher lhe dá a notícia de que Jack morreu. A sequência de cenas nesse trecho do filme é intrigante e misteriosa: enquanto a viúva narra, emocionada, uma simples troca de pneu de carro que acabou com a borracha estourando no rosto de Jack, o que teria provocado sua morte, alternam-se imagens de outro possível desfecho para a vida de Jack, que sugere explicitamente o assassinato por crime de ódio. Não se sabe se as cenas do assassinato são uma alucinação de Ennis, ou são aquilo que a viúva tenta esconder ao contar a história oficial da morte do marido. Talvez, e somente talvez, haveria a possibilidade de pensar em um resgate – em um arremedo de resgate – para Ennis no movimento que ele faz de ir à casa dos pais de Jack e apresentar-se. O pai de Jack estranha Ennis, lhe torce o nariz e o bigode; a mãe, por outro lado, mostra-lhe o quarto do filho morto, onde Ennis encontra a camisa xadrez ensanguentada que o ex-parceiro guardou até morrer e que era o emblema do laço entre esses dois homens que se amavam. O filme termina com a imagem da camisa xadrez de Jack dentro do roupeiro de Ennis, que acaba vivendo em um trailler, nômade, sem mulher e sem suas filhas. Para Ennis, a única âncora, o único resgate é a camisa xadrez ensanguentada do parceiro morto. Há resgate, de si e do outro, sem a morte?

Alucinando para viver

Dá-me pruridos pensar em “amor” nas três histórias. Prefiro “ética”, “amizade”, aliados a “laço homoerótico”. Sinto que “amor”, nessas três histórias, serve quase como que um álcool-gel antisséptico que purifica uma relação proibida, abjeta – a relação entre homens. “Amor” nessas três histórias também funciona na direção de ocultar o “tesão”, a “pica dura”, os corpos eletrizados pelo contato da derme e pelo esgarçamento dos orifícios. O “amor” que Ennis sente por Jack, que Miguel sente por Santiago e que Angel sente por Nene não significa a remissão de seus pecados. Angel, o anjo resgatador de Nene, não pode redimir os pecados do parceiro, nem os seus próprios, pois são muitos e demasiado pesados. Talvez não seja difícil imaginar, nessa direção, as razões que fazem com que Angel deixe de trepar com Nene para “guardar o leite, o leite sagrado”. O esperma guardado talvez fosse, para o psicótico Angel, a única pureza que lhe restava. Não há economia de esperma em Contracorriente nem em Brokeback Mountain: Miguel é pai; Ennis e Jack também. Aí o esperma tem dupla função política, a de reprodução e a de satisfação dos desejos. Por mais que Santiago, em Contracorriente, não tenha descendentes graças à utilização reprodutiva de seu sêmen, mesmo assim ele não o retém, nem o poupa: espalha-o pelas ondas do mar até mesmo depois de morto, trepando muito com Miguel. As alucinações desses seis “homens que amam alguns outros homens” sinalizam algo, que ainda me foge. Angel ouve vozes, que o torturam e o obrigam a economizar sua própria porra, e Nene também alucina graças ao uso de álcool e drogas; Ennis alucina, talvez, uma outra morte para Jack, diferente da oficial que a viúva lhe conta, além de entregar-se à paranoia persecutória da saída do armário ao longo de toda a narrativa – o medo de ser pego com outro homem. De igual paranoia sofre Miguel, além de ser o único que “vê” a alma de Santiago, o que pode facilmente ser descrito como uma forma de alucinação psicótica. Porém, Miguel talvez seja o único desses homens que amadurece sua própria psicose, aceitando-a e incorporando-a como um realismo fantástico em sua própria existência. Depois de ritualizar o corpo morto de Santiago, Miguel vai de barco para alto mar, abraça-o e lança-o na água, dedicando-o ao infinito. Neste momento a alma de Santiago faz uma carícia no rosto de Miguel e o beija, aceitando deixar o mundo dos vivos e o parceiro. Miguel, por sua vez, ao cumprir publicamente o ritual fúnebre daquele “homem que amou”, deixa de negar sua relação homoerótica, deixa de esconder o laço ético que o liga à memória de Santiago perante os demais pescadores e moradores/as do vilarejo. Santiago parte para o mundo dos mortos, mas é imediatamente reinserido no mundo dos vivos ao ocupar publicamente seu lugar na vida e na história de Miguel. As alucinações, nas três histórias, servem para algo. Não são necessariamente um obstáculo, pois para Miguel foi precisamente o trampolim para a responsabilização ética acerca do que sentia por Santiago. As alucinações podem dar densidade aos corpos, como acontece com Nene e Angel: corpos densos de drogas injetáveis e aspiráveis, deglutíveis, mergulhados em porra; as alucinações podem sugerir respostas que justificam a perda irremediável do parceiro, como acontece para Ennis. Sem alucinar, não lidamos com a concretude crua disso que chamamos vida e disso que chamamos amor – “amor”, aliás, que no mais das vezes é em si mesmo a psicose preferida de todos nós.

A água e os corpos

Os corpos dos seis homens são lancinantes: doem de tão belos. Provavelmente uma das fortes razões pelas quais as histórias ardem tanto mesmo depois dos filmes terem acabado. Entretanto, embora marcados a ferro e a fogo pela masculinidade viril que lhes dá consistência, sabor e cheiro, esses corpos de homens são também perfurados por seringas, por tiros a bala, por socos, por pênis, por álcool e outras drogas. São corpos densos, espessos, de prazer e de dor. São corpos que fascinam, a tal ponto de Santiago retratar o corpo nu de Miguel em várias, dezenas de ilustrações. São corpos que desejam, a ponto de Jack pegar a caminhonete e cruzar a fronteira dos EUA em direção ao México para embrenhar-se em um beco escuro junto de outro homem. São corpos que matam e que se matam, a tal ponto de Angel tentar suicídio duas vezes e matar dezenas de policiais. A água serve de contexto para esses corpos densos e espessos: Miguel e Santiago trepam na areia, banhados pelas ondas, bem como é a água que tira a vida de Santiago e que, igualmente, restitui a responsabilidade ética de Miguel; é durante uma tempestade de Angel é baleado, e que Nene o socorre, bem como é lançando-se ao mar que Angel tenta se matar, e Nene o resgata. Onde menos há água é em Brokeback Mountain, apesar de os parceiros pescarem anualmente em um rio próximo à tal montanha como pretexto para dias de intensa interpenetração passional. A relação entre os dois cowboys é feita de pedra, rocha e neve; porém, quis o destino, ou um roteirista pouco brilhante, que o sobrenome de Ennis fosse “Del Mar”. A água, no saber astrológico, é puro sentimento, intuição, entrega, mistério; é também um elemento fundamentalmente feminino. Estaríamos, então, diante de uma representação arquetípica do feminino como o pano de fundo para amores tão viris? Improdutivo responder. Há algo, entretanto, sobre o qual me fascina pensar: esses corpos tão lancinantemente belos, belos de doer, decompõem-se a galope na água. Toda a virilidade, beleza, densidade e espessura se desfazem no corpo morto debaixo d’água. A água reclama para si a beleza e virilidade desses corpos, e o emblema máximo disso é quando Miguel entra a sala onde jaz o corpo morto, e em avançado estado de decomposição, de Santiago. Ele quase não suporta o cheiro da carne morta do parceiro e põe um lenço no nariz. Aproxima-se. O corpo de Santiago está coberto por papéis de jornal. Ele levanta o papel que cobre o rosto de Santiago. Pelo seu olhar, é possível sugerir que aquele rosto que Miguel conheceu, que amou, que desejou e que beijou, não estava mais lá. No corpo morto de Santiago existia, então, um rosto-monstro, o rosto da morte, do corpo reclamado pela água. Gosto (na verdade, detesto) de pensar nisto: toda a beleza, virilidade, densidade e espessura das quais se vangloriam muitos homens másculos que amam alguns outros homens másculos terão um dia um só rosto: o da morte.

As mulheres que amavam os homens

Quem são as mulheres nessas histórias? São geralmente traídas, raivosas, cínicas, periféricas, reprodutoras, traidoras, delatoras, mentirosas. Mesmo quando íntegras, elas abandonam os homens que amavam, mas que amavam alguns outros homens. São mulheres que não participam da Terra de Marlboro. Quando participam, atrapalham. Salvo duas exceções: a filha de Ennis, em Brokeback Mountain, que na última sequência de cenas o visita em seu trailer e reivindica participação na sua vida, positivando uma relação que, se dependesse do pai, estava fadada ao fracasso (como todas suas escolhas envolvendo sua relação com Jack); e, em Contracorriente, uma moradora do vilarejo onde Miguel mora que, de fofoqueira, passa a ser sua aliada na recuperação ética de sua honra junto à memória de Santiago ao contar para o pescador que o corpo morto do parceiro fora encontrado e que era mantido escondido dele. A filha de Ennis mostra que é possível um recomeço afetivo; a moradora do vilarejo mostra que é possível um resgate ético. A história das mulheres que amavam homens que não as amavam está para ser contada.

A morte como coroa

[.... ainda por vir, com mais fôlego.]

A ação Indedicatóra

Verdejantes, 02 de janeiro de 2015.

Prezados Senhores,
Presas Mulheres,
Prendidas Crianças,

Que houvesse ao menos um, Senhores, porém não.
Que houvesse de dois a quatro.

Nunca houve dedicação antes por estas minhas terras. E agora escrevem meu nome já nas primeiras páginas de um romance. Enganosa impressão, essa que fica, na folha e entre os leitores, de que eu me espalharei pelas páginas. Não sou coisa que se dilua em 200 folhas frente-e-verso. Concentro-me nos dedos a digitar por dias e meses. Saio em palavras quando bem entendo. Ao contrário das Senhoras, presas, e dos Senhores de igual mente, não sou protagonista. Bovary, Karenina: não. Sou um leitor em ação, em dedicação.

Por entre a virada das folhas de papel havia um veneno. É por causa dele que Vos escrevo - especialmente Vós, Prendidas Crianças. O veneno corrói os olhos de quem o lê, a pele dos dedos de quem vira as páginas. Polui a mente de quem chega a saber do romance, do seu título, da sua coisa toda interna. Não deem a Vossas Crianças um ai que sirva em seus cadeados. Não lhes sirvam comida às asas, às coisas emigratórias. Observem bem e controlem, por onde o veneno escorre. Corre-se o risco de que Mulheres, Crianças e Senhores não saibam mais, sob o efeito do veneno, se são presos, prezas, prisioneiros. Cuidai de Vossas Crianças; elas sabem demasiado o que fazem.

Ademais, certifico-me de rubricar cada página frente-e-verso.

Certo de sua Ciência, e desejando dedicações futuras nas quais eu possa me espelhar, dedico dedos introdutórios para próstatas ingênuas, leitoras do romance.

Cordeiramente,
O Dedicado.