Sobre meus arrepios e sussurros

Ela não se arrepende de ter ido, mas sinceramente preferiu ter voltado. O fato de ter ido a fez corajosa, a fez bonita. O fato de ter voltado, entretanto, a fez sensata e a fez madura.

Foi sem nenhuma pretensão, sem nenhum plano previamente calculado. Ela foi sem saber o que a esperava, ela foi sabendo jogar-se numa bruma fechada, neblina severa, ela foi sem a certeza do chão pra pisar, mas que susto levou ao dar passos em rochas sólidas e escadas com inúmeros degraus que as levaram até o topo onde ela nunca, talvez uma única vez, quis chegar. E chegou. “A vista aqui do alto é bela”, ela disse, “o vento aqui sopra mais forte, e o sol brilha sobre as nuvens, e os pássaros batem suas asas quase parando no ar, e tudo aqui de cima parece muito pequeno e muito irrelevante. É bonito, é muito bonito”. Ela não queria subir – nem imaginava que subiria – mas depois de fazê-lo admirou a paisagem com humildade.

Quis descer num átimo. Porque o que valeu foi ter subido e não ter chegado ao topo. Porque o que lhe importou foi o esforço ao longo da escada e não o vento, nem o sol, nem as nuvens, nem os pássaros, nem a sensação de que lá pouco, ou quase nada, lhe importava. Nem a beleza se fazia pesar. Ela quis descer simplesmente porque já havia chegado. E o que viu de cima lhe pareceu belo, mas lhe pareceu frugal. Lá no chão, antes da bruma fechada e da neblina severa, para lá ela voltaria mais feliz do que tinha partido outrora. Porque o que lhe dá esse verniz brilhoso de sedução não são as máximas conquistas, mas as recorrentes tentativas. O que faz dela ela própria, o que lhe dá o poder de dizer com o efeito de ter dito de fato, o que lhe dá a habilidade de desaparecer com as dúvidas a cada uma de suas afirmações é a beleza das guerreiras que não conquistam nenhum reino, não formam nenhum império, não recrutam nenhuma horda, mas que apenas peleiam.

E é na peleia que ela encanta. E foi então que ela voltou do topo. E desceu as escadarias, e passou pela neblina e pela bruma, e chegou de onde saíra. Sentiu-se diferente, sentiu-se outra. Sentiu que está mais segura – e mais feliz, bem mais feliz – longe dos primeiros degraus destas escadarias sinistras que nos levam a topos que são belos, sim, porém inúteis.

Cartas a uma Jovem Bicha - Para a bicha morta

Querido Morto;

Desculpe-me por todos esses longos quatro anos que me impediram de te escrever minhas cartas fúnebres. Sei que não há desculpas, todavia; aí onde estás elas não existem. Mesmo assim te peço para fazeres um esforço e lembrar como é difícil estar sob a Terra entre os humanos, lembrar sobre como somos displicentes uns com os outros e sobre como erramos com uma insistência exasperante quase todo o tempo. Eu sigo sendo um humano, Morto, por mais que haja momentos em que eu recuse esta classificação. E sigo errando, sou errante. Errei contigo, deveria ter mandado notícias mais seguidamente. Perdoa teu amigo mais novo, ele ainda aprende aos poucos a arte da gentileza.

Muito se passou desde minha última missiva. Terminados os estudos básicos, me detenho agora a prospectar motivos secretos e razões subterrâneas do porquê somos tão apegados ao sexo e ao corpo. É divertida essa minha tarefa, mas incrivelmente não me afastei do tema da morte tanto quanto eu poderia, nem tanto quanto eu gostaria. Estou ainda às voltas com doenças e enfermidades físicas e simbólicas. Trabalho para adiar sempre um pouco mais o dia da morte de alguns, mas há momentos em que não tenho sucesso. Eles se vão mesmo assim. Mais ou menos do mesmo jeito que aconteceu entre nós. É minha sina, será?, viver para tentar opor-me à morte e invariavelmente fracassar?

Não estou triste, porém, com essa situação de desvantagem. Meu trabalho também inclui arte, também inclui escrita, o que significa que posso criar coisas belas. Há sucessos no meu caminho. Não vejo grandes holofotes ou adornos do chão até o alto nesse meu percurso profissional, mas posso te assegurar que os estudos sobre os mistérios das contradições humanas me fascinam. Quando em contradição, um alguém pode fazer de tudo, não é, Morto? Por falar nisso, cuide de seu coração. Sabemos que há momentos em que ele bate descompassado, vítima das tuas próprias ciladas.

Há vezes em que chego próximo do telefone e só tiro o pó por cima das teclas. Há vezes em que caminho longas jornadas pelo carpete da minha sala, que vem até meu quarto, e abro a geladeira para pensar sobre o que será de mim na próxima semana. Tenho muitos amigos, mas nenhum deles pode saber de nada disso que estou te contando. Há vezes em que falo alto, em que rio e comento as notícias que vejo na televisão, há vezes em que choro ao assistir uma propaganda ou ao ouvir uma música. Há vezes em que repito recorrentemente um discurso inflamado sobre ética, sobre sexo, sobre amor; passo e repasso meus argumentos e minhas expressões faciais, o tom da minha voz, para parecer dramático e convincente. Por favor, queime esta carta logo depois de lê-la. Há vezes em que ando nu pela casa, ora fazendo de conta que estou vestido como a realeza, ora assumindo minha nudez concupiscente. Há vezes em que chamo por ti, para vires me buscar, e há vezes em que apenas lembro que ainda sou capaz de sentir saudades tuas. E faço tudo isso, tudo e muito mais, na completa absoluta solidão. Falo sozinho, mas não porque acredito haver sentado no sofá ou de pé no batente da porta um amigo e um inimigo imaginários. Falo sozinho para eu me escutar melhor, para eu me analisar, para eu ouvir minhas idéias e ordenar meus pensamentos. Falo sozinho para descansar dos outros, para fingir que os outros não existem e que só eu sou o protagonista deste filme. Os demais são peças de jogos de computador.

Hoje eu fui correr no parque e pensei sobre como deve ser a morte e seus momentos iniciais. Ou os últimos momentos de vida. Pensei nisso porque, na corrida, meu corpo estava sendo movimentado ao máximo, requisitado ao máximo, estava vivo na sua maior medida possível. Eu gosto de sentir meu corpo vivo, gosto de mexer com ele, gosto de sentir dor e desmaiar. Tenho uma vaidade discreta, mas pesada; me importo com meu corpo e com o dos outros. E como será, meu deus, como será desprender-se dele? Por que lado saímos? Ou não saímos? Ou imediatamente entramos num próximo?

No fim das contas, acredito que faço bem em falar sozinho. Porque penso que talvez a única certeza de que nos damos conta quando morremos é que estivemos, o tempo inteiro, sozinhos.

Tu que já morreste poderias me confirmar se estou certo?

Preciso passar aspirador de pó no meu carpete agora. Ainda tenho uma palestra para dar para mim mesmo ali na sala. Termino meu texto aqui por enquanto.

Prometo que te escrevo com mais freqüência.

Ah, esqueci teu endereço: é Céu, Inferno ou Purgatório? Eras cristão, não eras? Desculpe-me (dessa vez por todas), mas eu não sei para onde vão os demais tementes.

Horário de Verão

Me entristece o fim do horário de verão porque tenho a sensação de que tudo volta ao normal. E são raras as vezes em que o normal é sinônimo de bom, não é?

É um domingo com muitas nuvens esse pós-fim-do-horário-de-verão. E o sol, se ele aparece, vai-se embora bastante cedo lá por detrás das nuvens. Coincidentemente, é claro, as pessoas não se encontram mais para caminhar e correr no parque lá pelas 18 horas de qualquer dia entre outubro e fevereiro de qualquer lugar do Brasil entre o paralelo 30 e a Linha do Equador. As pessoas são “cidadãos de bem”, têm de trabalhar, fica muito tarde sair pra se exercitar depois das 18 horas... E só saem pra correr ou caminhar no parque pós-fim-do-horário-de-verão lá pelas 19 horas os cidadãos que não são tão do bem assim, tá, pessoal?

A segunda-feira pós-fim-do-horário-de-verão é sempre tediosa. Anda arrastada, pesada, quente demais. É sempre mais escura que antes e as 20 horas do dia já se debruçam como cortina, pondo um ponto final nas atividades corriqueiras. “Vão pra casa tomar banho, assistir a novela e dormir”, nos diz a normalidade pós-fim-do-horário-de-verão.

Gosto do horário de verão porque tenho a sensação de que sempre há um algo a mais a me acontecer até o dia acabar. Tenho a impressão – e gosto de cultivá-la – de que sempre há tempo para mais uma surpresa, para mais uma ousadia. O pós-fim-do-horário-de-verão não me promete nada; ao contrário, ele ameaça me engolir com sua monotonia.

Só há um anúncio que me agrada com o fim do horário de verão: a sinalização de que, em breve, as folhas vão cair e o inverno vai chegar com dias ensolarados de baixíssimas temperaturas. E mesmo que o sol se retire cedo demais, a noite – tão fria quanto o dia – guarda na sua elegância taças e taças de vinho tinto.

Meu testemunho pessimista

Todas as pessoas que eu conheço e que eu conheci são e foram más. Algumas delas são e foram também boas, além de más. Sobretudo, todas más. Não quero estender essa característica para todos os humanos do mundo, os que vieram antes, os que aí estão e os que virão a seguir. Estou apenas dando meu testemunho em que, infelizmente e mais que todas as pessoas, eu me encaixo.

São e foram todas más as pessoas que por mim passaram porque acredito que existiu e existe para elas uma cisão entre dois domínios de seu modo de ser: de um lado o domínio daquilo que dizem e daquilo que fazem, atos que são da ordem da materialidade, da transparência, do visível e do compreensível. De outro, há o domínio daquilo que pensam e daquilo que sentem, que estão invariavelmente inscritos na ordem do indizível, do oculto, do misterioso e do caótico. Nesse domínio contraditório, onde a elegância se choca com raiva, surge a maldade.

Neste último, alimentamos monstros, fantasmas, fantasias, medos e contradições que nem sempre – raramente – transpõem a fronteira bem marcada que separa o que deve ser dito do que deve permanecer em silêncio. Por diversas vezes, pensamos e sentimos um bloco de idéias e sentimentos sobre alguém ou sobre alguma situação, mas mantemos essas idéias ou esses pensamentos conosco, bem guardados, porque há crueldade, perversidade, contradição naquilo que pensamos, naquilo que sentimos. Há aqueles que expressam suas controvérsias através da arte, há outros que bebem suas controvérsias com álcool, há muitos que as cheiram com cocaína, outros tantos que as fumam com maconha, há o grupo dos que se deprimem com elas e também o grupo dos eufóricos mentirosos que com elas se alegram, mas que ao mesmo tempo as omitem. Todos têm medo de dizer o que pensam e o que sentem porque suas idéias e seus pensamentos não obedecem as regras de etiqueta, as regras de boa educação, as normas religiosas ou os acordos éticos pactuados um com os outros.

Mas todos sentem. E alguns pensam. E poucos materializam seus sentimentos e suas idéias formulando-os de forma clara, trazendo-os do vão escuro do não-dizer para a claridade incômoda daquilo que é enunciado. Poucos dizem e poucos fazem. Porque é difícil ordenar o caos, porque é difícil classificar e hierarquizar o que sentimos. Porque o que sentimos e o que pensamos não são sentimentos nem idéias dóceis que se deixam facilmente domar, ou que se permitem acomodar sem esforço nas inúmeras gavetas e compartimentos que construímos para eles.

É pessimista, dualista, binário e pobre esse meu testemunho. Repito que não quero torná-lo, além disso, também generalista a ponto de fazê-lo regra para todos. Mas é o único até agora que me serve de explicação, que dá uma resposta a mim satisfatória para aquilo sobre o que me questiono. Não podemos viver de perguntas, não é mesmo? Precisamos também de respostas – por favor! – para existir alguma concretude em que podemos nos agarrar. Senão a vida se torna muito ameaçadora, e corremos o risco de não suportar, de não compreender, de enlouquecer, de morrer sem notar.

O brilho eterno de uma mente sem lembranças

No que devemos acreditar para sermos capazes de amar? Se nos motivos primeiros que nos fizeram apaixonar? Se na construção de uma vida em comum? Se naquilo que pensamos um do outro sem jamais dizê-lo?
Será que vale a pena – ou será que adianta? – apagar vestígios do outro em nós? Será que são os rastros deixados um no outro que, quando apagados, fazem desaparecer também o sentido daquilo que sentimos um pelo outro?
Temos meios – aparelhos, maquinarias, raios laser, scanners, cirurgias, lavagens cerebrais – de apagar as pessoas das nossas histórias?
Por último, a pergunta que mais me incomoda, que mais me emociona, que mais me interessa: temos o direito de apagá-las?

Cartas a uma Jovem Bicha - Além do corpo

Eu vou começar a escrever e não quero ser interrompido até eu terminar a minha argumentação. Cala-te, ponha os óculos e leia.

Eu não pensei que eu chegaria esse ponto nem que eu pudesse atingir esse espaço. Não, eu não pensei. Eu não penso quando faço algo ou quando digo algo; eu só faço e digo porque quero, porque acho pertinente. Eu faço e digo porque penso que me é de direito fazer e dizer.

Se em algum momento minha maneira intempestiva e voluntariosa de ser te representou algo, me desculpe. Sim, desculpa, porque eu não concordo com a máxima dos covardes: “tu és eternamente responsável por aquele que cativas”. Eu não sou responsável por aquilo que posso significar para os outros. Não posso ser responsável por esses sentimentos confusos e difusos que se avolumam aí dentro da tua cabeça. Eles não estão na tua alma, estão na tua cabeça. Se tu nunca ouviste falar em sentimentos da cabeça, pois te apresento os teus nesse momento.

Olha pra mim, bem atentamente: o que tu vês? Não é só uma bela carinha da juventude, como diriam alguns desavisados, ou um corpo envergado pela ansiedade, como diriam os mais perspicazes. É um todo um pouco disforme, não “sem forma”, mas “com formas não tão ajustadas”. Vês? Meu corpo não é ajustável. Mais que um corpo, te sôo como um brinquedo, talvez. É um retorno à infância esses teus sentimentos, tu me vês como um boneco? Se sim, que ótimo. Para mim é mais fácil apenas representar um papel. Se não, tu me colocas numa situação de extrema gravidade. Tudo o que transcende o meu corpo foge completamente do meu controle, e justamente é a parte de mim que é mais fascinante. Tu podes ser atropelado por aquilo que sou além do meu corpo.

Muito me intrigam teus mistérios. Fico surpreso em saber daquilo que tu sentes sobre mim, me perco, me confundo, me choco. Vira-me as idéias de ponta-cabeça esse teu interesse pelo meu mundo das idéias. Não sei o que fazer com minhas idéias e, como te disse, não controlo aquilo que sou além do meu corpo. Mas te garanto que tudo aquilo que sou além do meu corpo é da ordem do fantástico. Não quero mais discutir o que é meu corpo porque ele é uma peça não tão fundamental na nossa relação: ele pode se transformar, metamorfosear, vir a ser o que não é e em seguida deixar de ser para tornar-se algo completamente diferente. O corpo é algo que morre, que flui, que se vai sem poder conter. É tolice controlar o corpo. Quero discutir tudo aquilo que vai além do corpo. Onde nascem os sentimentos além da carne? Confundem-me, ou melhor, desorientam-me os sentimentos que surgem a partir de alguma coisa não tangível. Sob eles não recai nenhum tipo de lei. Eles transitam por ruas onde não existem sinaleiras.

Eu não sei o que fazer com o que tu sentes pelo simples fato de que não sou eu a sentir. Não me peça para ter a tutela da tua paixão, pois não tenho a tutela nem da minha própria. Volto a dizer que não sou responsável por nada que transcenda meu corpo. Não posso abrigar em minha responsabilidade os sentimentos que evoco em cada espírito. Eu, entretanto, preciso avaliar o que sinto em relação a ti. É algo difícil de fazer porque assim tu me obrigas a olhar para um lugar sob o qual, até então, não incidia nenhuma luz. Por isso, não posso te dizer que existiu desde sempre algo ali. Tampouco posso te dizer que jamais houve, mas te garanto que não sei. Deixe-me olhar, deixe-me avaliar, deixe-me sentir. É-me cruel este exercício. Não me imponha regras ou datas para te entregar minha avaliação. O sentimento é um trem que desconhece a estação onde deve chegar. Se ele nunca apontar na curva, é porque minha dúvida já é certeza. Se ele parar na estação, também. Seja minha certeza qual for, só te peço para que eu a sinta sem remorso.

Cartas a uma Jovem Bicha - O sono

Por quantas e quantas vezes teu corpo pesou sobre essa banqueta simples de madeira, com o estofado forrado de couro. Teu corpo jogava-se aqui em cima e dialogava com o meu, pouco mais próximo. Teu corpo sobre a banqueta esperava pelo meu, que pouco tempo depois já estava pesando sobre o teu. E agora o meu corpo pesa sozinho sobre a banqueta a espera de um dia seguido de uma noite, e outro dia, e outra noite. E assim até alcançar a incrível marca do quase total esquecimento do teu corpo. O meu corpo, enquanto isso, vai se jogando de um precipício, depois de outro, depois de outro, um precipício de cada vez para que toda a noite haja um precipício diferente em que eu possa chegar à beirada e deixar meu corpo cair, primeiro suave, depois desesperadamente até estilhaçar-se no chão para dormir. Dormir como quem morre. É meu entretenimento de cada noite me jogar de um precipício, nada me dói tanto, mas é tudo que me mantém afastado do teu corpo.
Durma bem com teu corpo.

Auto-retrato

Talvez eu não queira que ele passe por tudo aquilo que eu passei, do jeito que eu passei.

E talvez seja muito humano isso que sinto.
Eu não sou um cão raivoso.

O princípio da ruína - Prólogo

O que eu vou contar a seguir ainda não aconteceu. Mas eu sei que vai acontecer porque posso sentir. Não é feitiçaria, não é premonição ou algum dom extra-sensitivo. Sinto que acontecerá porque posso fazê-lo, e vou fazê-lo. E não farei pelo bem dos envolvidos, nem pelo meu compromisso assumido na pia do batismo de amar ao próximo. Sei que as conseqüências disso que estou prestes a fazer (na verdade, eu já comecei a fazer) serão, sem dúvida alguma, interpretadas pelos outros como algo maravilhoso, algo saudável e bonito, bastante de acordo com o compromisso da pia de batismo aliás. Se assim o quiserem, eu não os proíbo, tampouco os desmentirei. Minha idéia inicial, entretanto, não é tão nobre.

Como disse, eu já comecei a fazer. Aos poucos vou pisando com cuidado nesse chão movediço e descobrindo por quais brechas eu posso infiltrar a lama viscosa ruína. Asa de Borboleta já experimentou mudanças desde que me empenhei em escanear suas fendas, num trabalho minucioso de procura pelas fraturas ao longo de sua extensão. Essa atividade não é difícil, é bom deixar claro. Asa de Borboleta é fino, delicado, tão sensível que um sopro meu nos seus ouvidos já o faz produzir fissuras nessa lisa camada superficial de consciência. Produzo fissuras e imediatamente após produzi-las eu injeto nelas uma densa solução de dúvida, o que estufa Asa de Borboleta com pesar e receio. Seu pesar e seu receio, porém, não são de minha responsabilidade. Eles surgem a partir das suas dúvidas, que eram minhas e que agora a ele pertencem, e só existem porque a incerteza as faz nascer. Mas Asa de Borboleta é bastante volúvel: tem essa capacidade extraordinária de reciclar as investidas externas, o que o impede de sucumbir. Engana-se ele, porém, se pensa que meu trabalho é inútil. Eu o estou vacinando como quem introduz no organismo um vírus letal numa acertada medida capaz de fazer com que a doença não o atinja e, por isso, adie pra mais além sua morte. Estou em franca campanha de vacinação para Asa de Borboleta, mas como eu disse, isso não tem a ver com o bem que desejo pra ele. Eu apenas quero desequilibrá-lo e destituí-lo do conforto de manter-se em segurança. Onde houver platôs constantes em Asa de Borboleta, ali eu também estarei e com fúria lançarei contra eles a flecha preta do “será?”.

É aqui que minha empreitada se torna mais dura, porém mais excitante. Porque um dos platôs de Asa de Borboleta é Dente de Tubarão. Dente é mãe, rainha e juíza no planalto descampado onde fixou domicílio. Ela governa as virtudes, reina sobre as atitudes e julga os caminhos. Dente de Tubarão é uma personagem diligente e discreta, mas pontiaguda, portadora de uma precisão maquiavélica quando se trata de destroços. Lâmina afiada, serrilha cortante, ela rasga tecidos muitos mais espessos que o veludo consciente de Asa de Borboleta, e justamente por isso ela o detém prisioneiro em suas celas cheias de luz, cheias de janelas com vistas para fora, celas bem feitas, bem acomodadas num dos platôs que compõem Asa de Borboleta. Dente de Tubarão é tão desenvolta no que diz respeito à escravização de espíritos que foi ardilosa o bastante para construir uma prisão dentro do próprio Asa de Borboleta, belíssima e diabólica prisão, onde o mantém de refém como se ele não soubesse de sua condição. Mas ele sabe. E ele se apraz disso. Sente prazer em ser acorrentado às formas seguras e estáveis que o permitem ser despreocupado e o impossibilitam de ser errante. É nas descontinuidades de Asa de Borboleta e no planalto de Dente de Tubarão que meu trabalho se ocupa: alargarei as rachaduras daquele a tal ponto que a cisão seja uma dobra profunda, um rasgo esfarrapado, um arrombo na sua superfície, e nesta introduzirei topografia brutal, criando vales imensos, abismos escuros e cânions secos.

Cartas a uma Jovem Bicha - Cansei de ser gente

Oi, Ariovaldo, como vais?
Olha, eu quero voltar pra casa, Ariô. Quero voltar, aqui não dá mais. A comida está me enjoando, o ar não me entra nos pulmões, eu estou sangrando muito. Está tudo doendo, todo meu corpo, eu sinto muito calor, não tenho onde me encostar. Minha campainha não toca há meses, sequer meu telefone. Não recebo emails, nem scraps... sempre olho no gmail, Yahoo, hotmail, orkut, todo o dia, mas não recebo mensagens. Aqui não está bom. Quero voltar pra casa. Quero acordar de novo na minha cama, quero voltar pro meu berço. Quero minha chupeta, minha mamadeira, meus brinquedos, minhas fraldas, Valdo. Não está nada bom. Estou me sentindo só, estou quase desistindo dessa vida. Não quero seguir adiante, não quero.
Não vai me adiantar crescer, ter emprego, ter meu dinheiro... Que dinheiro? Não tenho dinheiro agora, nem nunca terei. Não, pára tudo, quero descer, quero sair, não está mais bom, não está mais divertido. Não acho graça nenhuma, eu quero parar com essa brincadeira de ser gente. Não quero mais ser gente, quero ser cão. Quero ser gato, quero ser rato, quero ser uma nuvem, uma brisa. Cansei dos cheques especiais e dos cartões de crédito. Cansei das etiquetas penduradas nas pessoas, cansei dos preços dos seres humanos, eu não tenho dinheiro para pagar o que me cobram. Eu não tenho dinheiro, eu não tenho escrúpulos. Ou por meus escrúpulos serem demasiados é que não estou mais gostando disso tudo. Cansei da academia, cansei da musculação e do yoga. Meu corpo dói, dói, dói. Quero ser gordo, comer de tudo; melhor ainda: quero me livrar do meu corpo. Tudo é corpo, tudo é a extensão do corpo, tudo é feito para o corpo, tudo gira em torno do corpo. As pessoas só pensam em corpos, os mais belos, os mais fortes. E o meu corpo está cansado. Preste a atenção, Valdinho: não quero mais bíceps e tríceps trabalhados, eu não preciso deles.
Não quero mais ser gente, achei isso chato. E desagradável. E volúvel. E irritante. Quero ser uma estrela, um buraco negro. Quero ser o sol, a lua seria interessante também. Só sei que me cansei de ser gente. Pra quê? Pra pagar juros, pra pagar táxi, pra pagar cerveja e champagne? Pra pagar por sexo? Estou cansado de ficar sozinho, de ouvir música alta e ser repreendido pela síndica do prédio. Estou além das normas e aquém dos sentimentos. Não está mais legal ser gente, está ficando ruim, já está ruim há muito, não quero mais, desgostei. Quero voltar pra casa, prepare aquela mamadeira com leite gelado e achocolatado que eu adoro, Ariô! Quero minha infância de volta. A adolescência não precisa, essa eu pulo, mas eu quero minha infância. Tempo em que não havia preços, nem rótulos. Nem divagações sobre o que somos, nem dúvidas sobre sexo. Tempo em que a moeda era a tal que não existia; eu vivia num sistema de escambo. Dava-se um sorriso para ganhar um afago em troca. Assim, simples. Agora não é mais desse jeito, ninguém sorri, ninguém abraça. O que existe é escarro, tapa, soco, pontapé. Não quero mais ser gente, estou achando um saco.
Pra ser gente precisa ter uma boa dose de coragem e de abstração, Ariovaldo, que eu não tenho. Eu sou uma energia que existe para ser um lago, para ser uma árvore. Ser gente é complicado, é difícil, é chato e cansativo. Pra ser gente precisa ser cafajeste, precisa não ter caráter. Precisa esperar a hora certa, precisa saber quando e em quem dar o bote. Pra ser gente precisa ser ardiloso; em jogos e trapaças tudo tem que ser medido e bem calculado. Eu sou péssimo em cálculos. Pra ser gente precisa tomar banho todo o dia, precisa ser bonito, precisa ter dinheiro... Tá, pronto, estou fora do jogo, Valdinho, fo-ra! A não ser pela parte do banho, que eu adoro, mas que pouquíssimos dão valor, eu não tenho porque estar aqui. Esse negócio já me cansou, já me doeu, já me machucou, agora é hora de partir. Quero ser outra coisa. Eu estava pensando em ser um cometa, o que tu acha, Ariô? É simpático. Se bem que eu gosto dessa idéia de ser um cão, mas eu queria ser um São Bernardo, um Labrador. Cocker é muito agitado. Podia ser um gato também... um Angorá, bem gay, né, amigo? Siamês é feio, cansei de ser feio. Um golfinho! Golfinho é querido. Mas, pensando bem, acho que não quero ser nada que tenha um sistema nervoso desenvolvido... Tudo bem, para mim o fato de já não poder articular uma palavra é ótimo, mas ainda corro o risco de, sendo um cão, um gato, um golfinho, corro o risco de pensar, de me irritar, de chorar. Acho melhor ser uma estrela, uma lua, um sol, um cometa. Além de estar mergulhado no Cosmo, fico longe das pessoas, fico longe de gente. Não falo, não vejo, não sinto. E ainda por cima é bem capaz de eu ser bonitinho!
Cansei de ser gente, ta? Desculpe. Mas vou indo nessa, desse jogo eu desisto, passo adiante, não é pra mim, não nasci pra ser gente. Nasci pra ser um cometa.

Beijo, te adoro Ariovaldo!

Arqueologia de uma Relação

- ... porque na verdade eu sinto uma solene indiferença por ti, por tuas atitudes, pelo que tu falas e pelo que tu pensas representar pra mim. Honestamente é isso.

Eu pensei longamente sobre essas últimas palavras - as últimas sem dúvida, não há maneira de construir qualquer coisa sobre os escombros deixados por elas - e cheguei à conclusão de que estavam acertadas. Estavam acertadas com a situação na qual nos encontrávamos, se encaixavam como peça na grande engrenagem que nos permitia ainda viver juntos, se ajustavam, cabiam, aderiam, combinavam com o sucessivo mimetismo ao qual recorríamos para nos fazer parecer com Os Outros Quaisquer. Nossas capacidades miméticas, entretanto, não eram nosso forte. Longe de sermos camaleônicos e, então, sermos confundidos com Os Quaisquer; longe de conseguirmos disfarçar as diferenças que nos compunham, que subtraíam nossa beleza e potencializavam nossa estranheza; longe de posarmos ao lado de um pote de margarina a ponto de fazer as caras e as bocas, tais quais elas se mostravam, dos casais perfeitos que torram pães integrais e bebem leite desnatado no café da manhã; longe de tudo isso era onde ficava o leprosário em que repousava a tranqüila razão de estarmos juntos. Tentamos, sim, por muitas vezes, imbecilmente aliás, provar que éramos como os grandes amantes do nosso tempo. Quisemos nos adaptar, acreditamos na adaptação, julgamos que éramos capazes para tal, chegamos a jurar fidelidade às regras do jogo, as aceitamos e as celebramos, mas não houve maneira de mantermos ou de sustentarmos qualquer identidade com Os Outros Quaisquer. Assustamo-nos, de certo, quando percebemos que não éramos nada daquilo que nos desejavam ser, ou nada daquilo que nos pensavam ser, ou nada daquilo que lá desde o início todos combinaram ser. Quando nós estávamos juntos gritávamos oposições seqüenciais que nem sempre – raramente - eram complementares, fazendo de nós dois camaleões frustrados na tentativa de esconderem-se na paisagem suja, porém confortável.

Foi então que, sem perdoar um ao outro, optamos silenciosamente pelo desprezo. Escolhemos sacar do fundo das nossas habilidades – que eram muitas, inclusive estas – os ouvidos moucos e os olhos míopes para fazê-los de máscaras. Nossas máscaras públicas, mas também privadas. E aí houve o princípio da nossa cisão, no momento exato em que trouxemos para dentro dos nossos muros a mesquinharia generalizada na qual Os Outros Quaisquer estavam imersos. Para sermos como Eles além-muros, decidimos pactuar com a mediocridade e fingir não ver, fingir não escutar, decidimos fingir que estávamos fingindo ser o que éramos, aparentemente sem nos importar um com as diferenças em relação ao outro. Esse fingimento foi decantando no nosso dia-a-dia como terra misturada à água, e lá no fundo o fingimento decantado solidificou-se. Eis que chegaram momentos em que a terra separou-se por completo da água, e nosso teatro cotidiano de respeito às diversidades que nos compunham se confundiu com nossas regras éticas básicas: tolerávamos um ao outro com uma naturalidade perversa, costume esse que nos poupava o latim desperdiçado em discussões inúteis do fim do dia em que um tentava mudar o outro a seu bel prazer ao mesmo tempo em que afastava preocupações tolas sobre o virtual interesse de terceiros em nossos corpos, mentes ou espíritos. O ciúme já não esquentava nossa cama. E a história de nós dois virou ficção, e nossa ficção virou piada, e a piada virou mito. O mito da origem, do início, do começo ideal da nossa relação – esse sim – mimetizou-se com as lendas barrocas d’Os Outros Quaisquer, elas cheias de rococós sentimentais e presságios de vidas anteriores, cheias de sinais astrais e superstições sobre bouquets, vestidos brancos, arroz e rosas vermelhas. A história de nós dois, tão idiossincrática, virou objeto de uso e abuso públicos.

O mais cruel de tudo foi que tínhamos esquecido de onde viemos, de como ali chegamos; esquecemos por que ainda acreditávamos ou se algum tempo acreditamos que funcionaríamos bem juntos. Esquecemos, ficou perdida no passado a escolha que fizemos em sermos indiferentes um ao outro. E minha frase, aquela minha última frase, foi o último sopro de um arqueólogo cuidadoso sobre a ruína de um templo perdido, de uma cidade soterrada, de uma ossada jurássica para tirar-lhe a terra decantada: minha última frase desenterrou, mostrando-nos e provando-nos, que existiu uma decisão bastante particular na história de nós dois que nos economizou pequenas doses de sofrimentos constantes - que, tal qual vacina, poderia nos ter imunizado contra tudo o que apequena -, mas que justamente por isso nos reservou um veneno concentrado para o fim - que num bote certeiro matou o que ainda poderia restar.

Cartas a uma Jovem Bicha - (Sem assunto)

Passei o dia pensando se deveria te responder o recado que me deixaste. Depois decidi que iria responder, e em seguida me perguntei sobre o que eu te diria e sobre como eu te diria. Ainda não tenho certeza disso que estou fazendo, mas se já estou fazendo é porque preciso fazer (estando isso certo, errado ou nenhuma das alternativas anteriores).

Acho que tu não deves te sentir culpado pelo que aconteceu. Por não ter me dado atenção, por não ter me ajudado quando te chamei. Acho que a responsabilidade de haver essa, digamos, "falha de comunicação" é de nós dois, ela é nossa, tanto minha quanta tua. Assumo minha parte nesse mal entendido.
Tem uma frase de uma música do Caetano, "Americanos", que diz "... algo se perdeu, algo se quebrou, está se quebrando". É mais ou menos como eu venho me sentindo em relação a ti nos últimos meses. Não te culpo, apesar de ter ficado profundamente magoado, por não teres ido ao hospital, por não teres me atendido ao telefone, por não teres dado atenção ao fato de eu ter tido um acidente. Fiquei magoado, sim, mas não te culpo. Eu te entendo e acho que tu agiste da forma com que tu pôdes agir naquele momento. Eu acho que o nosso "problema" (várias aspas entre essa palavra), eu acho que o nosso descompasso, eu acho que o nosso vazio vem de muito antes. Depois pensando no que eu tinha feito, quero dizer, ter te ligado pra pedir ajuda quando eu estava no hospital, eu me senti ridículo. Porque era óbvio que tu não irias, óbvio. Era óbvio que tu não irias ao hospital me ajudar porque há meses eu e tu não nos falamos a sós – tem sempre alguém entre nós, tem sempre alguém conosco -, porque há meses eu não sei se tu estás bem, ou estás mal, ou estás indiferente, e tu também não sabe como eu tenho estado nos últimos tempos. Porque a gente não se fala mais, a gente não se liga, a gente não se importa mais um com o outro.
Eu não quero ter que te desculpar de uma situação constrangedora a cada vez que tu venhas pra cá. Até porque isso é muito arrogante, parece que eu sou perfeito e quem caga é sempre tu; isso é mentira, eu também faço minhas merdas. E justamente por isso, acho um saco que cada vez que a gente se encontre a gente tenha que se pedir desculpas pela forma com que a gente é, com que a gente existe, pela forma com que a gente age. Isso acontece porque estamos mudando, eu em relação a ti, tu em relação a mim, nós em relação aos outros. Não te acho, nunca, melhor ou pior que eu, e eu também não me acho melhor ou pior que tu. Sempre soubemos que éramos diferentes, desde o início, mas nos últimos meses as nossas diferenças têm me feito sofrer muito.
Não quero dar uma conclusão pra esse texto nem pra nossa amizade porque não acredito em conclusões. Mas quero deixar marcadas nossas diferenças.

Todas as fases do Fim - A Vingança, parte 7

“A gente se fala” ele disse. “Ainda bem que a gente é pós-moderno” eu falei “porque se a gente fosse moderno, tu nunca ia poder dizer ‘a gente se fala’ depois de ter dormido comigo pelado na mesma cama e depois de ter me dito as coisas que tu me disse hoje”, “hahahahaha, é verdade, e o que a gente deveria fazer se a gente fosse moderno” ele perguntou, “a gente teria de ficar pra sempre junto”. “Hahahahaha, ta bom. Viva a pós-modernidade. Abraço!”. “Viva. Viva a pós-modernidade” eu disse bem baixinho, ele nem escutou porque tinha muito movimento de trânsito na João Pessoa.

Eu me virei e fui voltando com passos calmos. Eu estava calmo, sabe, tranqüilo, um pouco tonto, mas eu sempre fico assim quando eu choro muito. ‘Viva a pós-modernidade’, aquela frase na minha cabeça, ‘viva, viva a pós-modernidade’. Aí eu me virei. Só deu pra escutar o barulho do corpo loiro de olhos verdes batendo contra o ônibus que ia do centro pra zona sul. Bah, voou longe, acho que uns dez metros, sei lá. Rolou pelo canteiro da rua, parou no chão e ele não se levantou. Um tumulto de gente em volta, carros e outros ônibus parando, pessoas nas janelas dos prédios ali em volta. Até os garçons do Van Gogh, sabe ali o Van Gogh? Na esquina da João Pessoa com a República? Pois é, até os garçons vieram correndo ali tentar ajudar, tentaram mexer nele e tal. Pensei “se eu correr, ainda consigo pegar alguns dentes no asfalto pra guardar de lembrança”. Mas não, eu tinha que entender o desapego às coisas – e às pessoas. Era melhor eu voltar pra casa pra limpar meu vaso sanitário, que estava um horror de tão sujo, diga-se. Ah, não, amiga, não me sinto culpado, não. Era a hora dele. Culpa é ele que deve estar sentindo agora, e remorso, porque eu to aqui, bonita, pronta pra pegar os carinhas sarados da Redenção. E ele? Pois é... Sabe-se lá onde, né...
FIM