Amanheceu

[...]ia de sol, quando pensava que choveria. Amanheceu, e eu era uma outra pessoa: um sopro de vida nos pulmões, um sorriso que vinha dos intestinos – selvagem e honesto. Aqueles últimos dias tinham sido intensos. Mas te escrevo agora pra pedir um favor: publique todas as cartas e e-mails que já te mandei. Dou autorização pra tu procurares alguma editora que avalie a viabilidade disto. Se nenhuma quiser, procure uma gráfica simples. Não quero muitos exemplares, nem muito coloridos. Se nem a gráfica quiser imprimir tudo o que te escrevi, compre umas tintas pra impressora e imprima umas três cópias de todo o material. Depois encaderne. Não precisa vender. Deixe uma cópia na zona sul, outra no centro e uma última na zona norte: sugiro paradas de ônibus. Espalhe o que eu já escrevi pela cidade, talvez aquilo tudo possa ajudar alguém. De minha parte, a partir de agora passo a precisar de outras palavras para falar de mim: “amanheceu um dia de sol”, “surgiu quando não esperava”, “jamais supôs que seria tão bom quanto foi, “a vida tomou-lhe o corpo”... Dobrei uma das minhas esquinas e já sigo lá adiante. Imprima tudo e espalhe[...]

Suicídio, eutanásia, aborto, pena de morte: cadê a vida?

[...]urdo, um total absurdo. Porque não é a vida de qualquer um que pode ser tirada, nem a vida de qualquer bebê que será salva. Quem morre pela pena de morte já foi condenado muito antes de ter cometido o crime: toda a situação de vulnerabilidade dos “delinquentes” já os coloca no banco dos réus. Pelo menos aqui no Brasil isso é evidente. A gravidez que os igrejeiros querem preservar proibindo o aborto é a vida dos bebês de classe média pra cima. Porque a vida dos bebês de classe média pra baixo já vem sendo excluída da possibilidade de ser considerada “vida” há muito tempo, e o corpo das mulheres da classe média pra baixo já vem sendo abusado violentamente desde que elas nascem – isso se elas chegam a nascer, se a gravidez que as porá no mundo lograr sucesso, tendo em vista a qualidade do serviço público de saúde. É, não adianta franzir as sobrancelhas assim: já falaste com alguma mulher que fez aborto? Não é simplesmente uma questão de “não quero ter o filho”. É muito além e muito aquém disso. Já falaste com alguém que está condenado à morte por algum crime? Não é simplesmente “quis matar e matei com requinte de crueldade” – não adianta citar exemplos de filmes norte-americanos porque isso não vale! Mas por outro lado tem o suicídio, que só virou um tema de relevância sociológica, um “problema de gestão pública da população” quando a vida – a minha vida, a tua, a deles, supostamente todas as vidas – foi efetivamente tomada como “algo”, como um “bem” a ser gerido. Ou tu pensa que a minha vida, ou a tua, é muito mais que um objeto? Pra nós talvez seja mais, sim. Quando estamos na iminência da morte encontramos esse “algo mais”, essa preciosidade que diferencia nossa vidaobjeto da nossa vidapotência. Quanta coisa a gente pode fazer quando estamos vivos! E só o que fazemos e solapar essas potencialidades todas, trabalhando como uns camelos, nos enfiando em relacionamentos infrutíferos, discutindo com todo mundo por razões risíveis, malhando horas na academia pra ter barriga tanquinho. A gente pode mais, sempre mais e sempre melhor. Mas também no momento em que nossa vida perde as potências, as possibilidades de criar mais e mais vida pra nós mesmos e pros outros que nos rodeiam... Que mal há no suicídio sem drama? Que mal há na eutanásia “esclarecida”? Eu não quero vegetar, eu não quero dar trabalho e despesa, eu não quero andar de fraldas, com uma sonda enfiada no meu pinto e no meu intestino, eu não quero. Eu não quero acabar com Alzheimer e longe da minha casa, das minhas coisas, do lugar que eu construí pra mim. Eu não quero ser mais um corpo cuja “vida” precisa ser preservada a todo custo, seja em nome de alguma religião que trabalhe com as noções de céu-inferno-umbral, seja por causa da pensão, da aposentadoria, ou o diabo. Até lá eu vou ter acumulado um patrimônio razoável, vou ter um seguro de vida – se é que isso vai existir quando eu estiver próximo da morte. E eu vou dividir isso tudo pr’aquelas pessoas que forem importantes pra mim e, sobretudo, pr’aquelas que tiverem muita potência de vida! E se eu não tiver nada pra deixar como legado, seja dinheiro, bens ou afetos, então será mais fácil morrer (será?). E eu vou providenciar na minha morte. Na primeira suspeita que eu tiver da impossibilidade de viver produzindo e sendo útil social e politicamente, eu providencio a minha morte. Só espero ter a lucidez de saber o momento certo. Se bem que... Essa minha noção de vida, vidaútil, vidaqueproduz, vidarrelevante: essa noção não deixa de ser vidaproduto, vidaobjeto. Talvez eu precise superar essa ideia e pensar numa outra concepção de vida que dê conta de tudo aquilo que excede a “produção”, a “utilidade”, a “docilidade” da vida. É só vidaútil que vale? Quais são as vidasúteis? A minha certamente é uma: muito trabalho, pouca recompensa, nenhum prazer, nenhum gozo... e os desejos que sinto são todos colonizados pelo dinheiro e pelo poder. Cadê a vida...? Tá aí no teu bolso? [risos] Será? Acho que não... talvez, não sei. Só me recuso a pensar que vou morrer sozinho. Acho que é o pior medo que tenho: morrer sozinho. Só, sem ninguém por perto. Posso morrer torturado, mas que tenha alguém por perto. Não precisa pegar na minha mão, nem dizer “vai em paz”. Mas eu não quero estar só. De resto, tudo tá valendo. [...]
[...]dade! É mesmo! Não dê risada: é isso. Porque às vezes sou um verdadeiro humanista, às vezes eu creio que as pessoas têm potencial e que é bom me imiscuir das suas presenças. Mas outras vezes eu as recuso, não quero saber delas, elas me cansam com facilidade. Às vezes vou embora, assim, num ímpeto, do meio da pista da boate. Como quem diz, ‘cansei desse showzinho coletivo de wannabes’. Mas em outros momentos eu to lá junto de todo mundo, adorando dançar Macarena às quatro da manhã. Não é algo de ruim. Eu só tenho horas em que sou mais ou menos parecido com as pessoas, e às vezes eu sou outra coisa separada, mais distante, mais estranha. Há quem não entenda, e isso me preocupa constantemente. Perco oportunidades e pareço ridículo por causa dessa minha inclinação sazonal para os seres em geral. Teve uma vez que alg[...]

Uma nova estação

[...]cisar ter aquela inundação de álcool nas minhas veias. Não era necessário. E fui me deitar, cheio de desodorante e um livro de muitas páginas, bem pesado, para ler. Aos poucos, aquela realidade de ressacas torrenciais, de batalhas hepáticas; aos poucos a dor de cabeça, a dor de estômago, a náusea terrível que colocava pra fora apenas suco gástrico, esses dias de ressaca vão ficando distantes. A única coisa que detestei da noite de ontem pro dia de hoje foi o fim do horário de verão. Fiz um minuto de silêncio pelo horário de verão antes de atrasar em uma hora meus relógios: uma parte do meu bom humor ficará também atrasado em uma hora. A partir de agora os dias vão se arrastar, e o sol vai mudar seu eixo, e vai se por mais cedo. Verdade, detesto calor, detesto aqueles dias em que a luz chega a doer nos olhos e a sensação é de que o sol será eterno sobre as nossas cabeças. Enfim, é preciso se preparar para as delícias do outono e, em seguida, as agruras e aconchegos do inverno. Da cerveja migro pro vinho; a água do banho vai progressivamente ficando mais quente; um cobertor a mais sobre a cama; um casaco a mais sobre o corpo. Este será um inverno rigoroso: não tanto pelas baixas temperaturas, mas pelas tarefas que terei de arcar, pelas discórdias que terei de desfazer – e não somente entre mim e os outros, mas, sobretudo, entre mim e mim mesmo. Novas estações pedem por isso, e o inverno, tu sabes, é aquela estação em que nos trancamos em casa e ficamos ali sozinhos nas nossas pequenas e belas ilhas desertas. Sim... É... No verão eu já faço isso, sobretudo depois que comprei o ar condicionado. Mas no por do sol, que no verão é sempre atrasado, passa uma eletricidade no corpo, e vem um desejo de sentar na rua, no burburinho, pedir uma cerveja gelada. No inverno eu prefiro vinho tinto e grandes silêncios interrompidos apenas pela voz da Billie. Então, é preciso preparar-se para uma nova estação. E vou começar a pensar no meu guarda roupas porque meus casac[...]

Sujar e lavar louças

[...]inha de dentro, de algum lugar bem aqui dentro, não sei se do meio da cabeça ou do meio do peito. Ele me perguntou de novo: 'não dói aí dentro quando tu vê uma coisa dessas? não é daí que vem o que tu escreve?'. Fiquei confuso por uns instantes. Respondi que não, que não vinha dali. Respondi que faço na hora, sinto na hora, de improviso. Respondi que não havia nada aqui dentro, nada pronto de antemão. Não tem nada aqui dentro: o que tem é só uma pele que, quem vê de fora, chama de corpo. Respondi que aquilo tudo tomava existência enquanto eu fazia, enquanto eu escrevia. É como lavar a louça: lavar é um processo, assim como suj[...]

Belo e estranho domingo pra se ter alegria

[...]rdei bem, super bem. Havia meses que eu não acordava tão bem num domingo. Nem saí de casa – e quando eu não saio de casa por um dia inteiro é sinal de que estou realmente bem. Porque daí gosto de estar comigo, sozinho no meu apartamento, com meus ácaros no carpete e baratinhas por entre os azulejos do banheiro, os mosquitos do meu quarto. Há muita vida aqui dentro. E também me dá uma alegria ver meus livros, minhas literaturas, essas centenas de páginas ainda por ler. É um pedido que faço a elas sempre que começo a ler um livro: me arranquem deste mundo onde tudo o que importa é o relevo do meu abdome, onde tudo o que resta são as rugas mais ou menos esticadas, onde é risível a honestidade. Hoje nem vi o sol, mas não me incomodo com isso. Já fui deportado para longe dessas pessoas óbvias, sem criatividade, “oxigenadas debaixo do sol”. Agora tomei um banho e troquei os lenç[...]

Desejos

[...]péis amassados, umas coisas sobre as outras, sem importância, sem brilho, sem luz. Por quê? Tu achas que sou assim? Não, não te enganes. Sou mais que um tropeço ou que um escorregão. É claro que dói, que envergonha, mas o que é um escorregão pra quem já está lá no final da escada? É só um jeito de chegar mais rápido! Mijei na rua, recusei drogas ilícitas, olhei pro fundo do chão pisoteado só pensando em ti. Não, não é uma cobrança, é só uma homenagem. Porque se tu soubesses... Talvez nem gostaria, né? Mas olha, é tudo muito bom, viste? O que vem de mim é bom! Não é nada para se envergonhar, como eu caindo da escada, nem nada para esquecer. É aconchegante e tranquilo. É suave. Quem me conhece sabe como isso é raro. Mas não te prendas por isso: vai viver tuas coisas, cair nas tuas escadas. Eu caio nas minhas. Não te cobro, não coloco impostos, não crio culpas. É só meu corpo que te quer, e como tal deve ser tratado como isso que é: um corpo. Sim, e é mais que isso, como já te disse, mas não te preocupes porque não precisas me decifrar. Nada pior que um mistério atrás do outro para viver em paz com alguém. Caí, sim. Mas fui levantado por mim mesmo, e por duas outras pessoas que jamais supus aptas a me levantar. Foi até bonito. Foi caridoso, foi sensível. E meu cotovelo dói, dói... Na parede volumosa do teu precipício, há alguma chance de eu me safar? Na escada longa da tua casa, tem como eu chegar ao quarto? Me machuquei, sim, mas não me importo: eu sei o que é a dor e não é isso que me assusta. Os soluços, os silêncios, isso me desespera. Não vá embora sem antes passar a mão pelos meus cabelos. Não quero nem um beijo, somente uma passada de mão pelos cabelos. Beijo damos em qualquer coisa, mas uma bela passada de mão nos cabelos... E se eu te chamasse pra dormir aqui comigo? O corpo vomitaria? Tudo bem, pode vomitar, eu entendo que não é nada pessoal: mas sorria pra mim com um olhar sincero, queira de mim um abraço, queira de mim uma passada de mão no teu cabelo. Porque tenho mágica nas mãos e mágica na mente, tenho mágica no beijo. Podes não gostar, podes achar muito líquido, muito meloso. Mas é um beijo simpático e sincero. É um beijo que soluça, que é ingênuo e que também sabe ser sedutor. Não desconfies. Não duvides. A dor de cotovelo que sinto pode não ser tua, e se for, eu entendo! Porque não tens a obrigação de me gostar, de me querer. Só quero que tu dance essa dança safada com o olhar cru sobre meu cotovelo. Vou apreciar teu empenho! Mas não tire essa bermuda jeans que contrasta com essa meia, obrigando teus pelos a espremerem-se nessa guerra de masculinidade. Se soubesses o quanto te quero, e o quanto és bonito, não estarias aqui. Se chover, lembra de mim, e se fizer calor saiba que eu tenho ar condi[...]

Limonada com limões; venenos com antídotos

[...]eiro tá meio que vazando, sei lá. Pinga, pinga, pinga. Não quero chamar alguém que entenda de instalação hidráulica porque pra essas coisas de manutenção de casa, de canos, de azulejos, de pintura, de eletricidade, pra essas coisas eu sou um preguiçoso. Essa coisa de gerenciar a casa eu até me viro, faço planilhas de gastos, sei perfeitamente quanto vai dar a fatura dos cartões, quanto eu gasto no supermercado. Tenho uma verdadeira coleção de desinfetantes, de sapólios, de esponjas, de panos de chão. Água sanitária tenho duas: uma pra cozinha e área de serviço e outra pro banheiro. Passo todas as minhas calças jeans, depois penduro elas em cabides individuais, com caimento bem reto, sempre na mesma altura, e as distribuo em tons degradê do mais claro ao mais escuro. Mas instalação elétrica, colocação de azulejos, reparação de vazamentos... Isso me cansa muito. Eu lido apenas com uma parte da vida prática, da vida real, apenas uma parte dessa vivência cotidiana me interessa: a limpeza e a organização. Mas a reparação do que já está dado... Se queima o HD do meu notebook, eu já quero comprar outro. Se tem vazamento no chuveiro, vou na loja e compro um novo. E assim eu sou com as pessoas. Beijo ruim? Mentira? Falsidade? Songamonguice? Egocentrismo? Não mando pro conserto: eu termino tudo e procuro uma nova amizade, um novo namorado, um novo emprego. Mas não te engana: eu também sou rejeitado. Comigo também acontece essa intolerância, essa resistência a me consertar. Mas a própria rejeição é uma maneira de me consertar. Sim, rejeição, sim. Tem vezes que eu fico bobo, criando um personagem na minha cabeça que eu vou colando em corpos, quaisquer corpos, e vou exigindo que esses corpos correspondam ao meu personagem. Foi o que fiz com ele. E daí, quando me dou conta que não sou desejado, ou que simplesmente a pessoa está em outra, ou que quer ficar sozinha, ou que não se interessou, aí considero rejeição. Bom, o importante é que a rejeição me faz pensar. Essa estratégia – porque é uma estratégia, um planejamento, uma tática de sobrevivência – essa estratégia é aquela de transformar limões em limonadas. De transformar o veneno em antídoto. Em vacina. O problema é que nunca me vacino, de fato, contra essas paixões intempestivas. Ele era um corpo a se tocar, um corpo a se manipular. De maneira sórdida, tudo bem! Ou de maneira suave. Mas não houve como preservar, não houve como manter, não houve como fazer a manutenção disso. Me pegou bem naquilo que detesto fazer! E pelo jeito ele também não gosta. Durou uma semana, contadinha, a minha profunda admiração por aquele pedaço de carne que tem tudo pra ser muito mais que isso. Um pedaço de carne desafiante, intrigante, misterioso. Adoro isso. Atitude blasé, segura e descompromissada. Inteligência brilhante e singela. Silêncios oportunos, olhares certeiros. Um corpo nada dócil, vacinado contra tudo aquilo que me seduz, vacinado contra toda minha sedução. Meu veneno não faz efeito nesse pedaço de carne – que é tudo isso e mais que carne. É claro que me interessei pela carne, pelas cores e densidades da carne. Mas o que me escapa e o que me fascina é justamente aquilo que excede a carne! E que não consigo alcançar! Jamais vou alcançar, e tudo bem. “Vou viajar, lá longe tem o coração de mais alguém”. Tás escutando isso? Esse “plic.... plic.... plic”, som metálico? São os pingos de água do chuveiro sobre o piso do box. Vazamento nesta porra! E agora? Eu to sem dinheiro e sem vontade de ligar pro encanador porque ele vai marcar um dia pra vir aqui que certamente eu não poder estar, é sempre assim. Detesto essa vida prática de dono de casa. Talvez se eu tirasse esse chuv[...]

O que há de novo num dia qualquer?

[...]empre aquela mesma ladainha sem fim, ‘por que eu sofro?’, ‘por que eu to solteiro?’, ‘eu sou feio?’, ‘tu te interessa por outros caras?’. Sabe? Cansa. Aí eu falei que talvez ele estivesse exigindo demais dos outros, que talvez ele tivesse muitos requisitos a serem preenchidos de antemão. Não é assim. Mas vai convencer. Eu, eu to mesmo é cansado desse troço. Não tenho mais paciência, não. Por exemplo: há anos eu desço as escadas do meu prédio, do apartamento até a portaria, e numa das janelas da escada tá lá um pedaço de papel dobrado, bem dobradinho, como se fosse um calço pra janela. E o papel tá lá dobrado, meio enrolado, pousado na janela há anos! Ninguém tira ele de lá, nem eu. Mas eu não tenho que fazer isso, quem tem que fazer é a zeladora que cuida da limpeza das áreas comuns do prédio. Há dias, semanas quase, eu ando na calçada aqui da rua, vou e volto do trabalho, da academia, e tem uma embalagem de camisinha jogada no chão. É uma embalagem metalizada com a marca da camisinha em vermelho, e tá rasgada numa das pontas. Quer dizer, pelo menos a camisinha não tá lá dentro. Não sei se foi usada, mas não tá lá dentro. E daí que a embalagem tá lá, entendeu? Ninguém tira, ninguém põe na lixeira, ninguém varre. Nem eu! Mas sou eu quem tem que fazer isso? Eu canso de ver pessoas caindo na rua. Canso! Às vezes parece que elas esperam eu chegar perto pra se jogar no asfalto, cair por cima de uma placa de rua, tropeçar no meio fio da calçada, algo assim. Aí eu saio correndo pra ajudar. Já levantei três pessoas nos últimos meses. Tem um grupo de moradores de rua que mora perto aqui de casa e eu sempre passo por eles quando vou trabalhar. Hoje eu passei por um deles que é cadeirante. Ele é bonito, muito bonito, tem pelos pelo tórax, é forte, tem uma barba por fazer que não é tão por fazer assim. Ele é morador de rua cadeirante de butique. Hoje eu passei por ele e ele disse ‘ô, dos meu! Tem uma moeda ae?’. Eu o levaria pra casa, daria banho, não faria a barba porque gostei da barba dele, mas cuidaria dele, compraria pra ele uma cadeira de rodas com motor. Mas naquele momento eu não tinha moedas pra dar. E eu deveria dar? Ou deveria dar um beijo no morador de rua cadeirante, passar a mão pelos seus cabelos e perguntar ‘fala aí, é uma matéria que tu tá fazendo? Pra qual jornal? Ou é uma pesquisa etnográfica?’. Ninguém acredita que um morador de rua, cadeirante ainda por cima, possa ser bonito. E muito mais difícil é aceitar que a gente pode sentir tesão por moradores de rua. Pra mim não é tão difícil assim, mas eu queria ter um pretexto. Ora... tenho todos os pretextos do mundo pra me aproximar dele. Muito contrário o que aconteceu hoje, por exemplo, quando eu acordei às oito horas da manhã pra esperar ‘os técnicos da tv por assinatura’. Tá bom, fui dormir super tarde, mas às oito eu tava de pé, e com a firme intenção de descontrair com ‘os técnicos da tv por assinatura’. Vesti só uma bermuda, sem cueca. Piriguete da NET. Tocou o interfone por volta das dez horas, e quando eu atendi: ‘é da NET’, uma voz feminina, porém masculinizada. Atenção: eu disse voz feminina masculinizada, e não voz masculina afeminada. Sim, era uma mulher! Uma mulher! Lésbica! Veio puxando papo comigo sobre futebol: hellooo?!? O que eu queria mesmo era o morador de rua cadeirante! E essas coisas todas, esse estranhamento, essa ousadia, esse escândalo que é afirmar que eu queria mesmo o morador de rua cadeirante, essa obscenidade que eu digo e que eu afirmo que eu esperei ‘os técnicos da tv por assinatura’ sem cueca, o papel na janela da escada, a embalagem de camisinha rasgada, a ladainha da solteirice rabugenta que eu detesto: isso tudo me separa das pessoas e faz as pessoas se separarem de mim. Elas me censuram, reprovam essa sujeirada toda. Essa lascívia, essa languidez: as pessoas têm medo disso. As pessoas reprovam isso. Pra muitos, eu deveria, sim, tirar o papel da janela, colocar a embalagem de camisinha na lixeira, jamais sentir tesão pelo morador de rua cadeirante e sempre usar cueca quando ‘os técnicos da tv por assinatura’ vierem na minha casa. E eu faço tudo do avesso. O pior de tudo é que eu tenho um pote cheio de moedas aqui em casa. Mas isso ainda pode me servir no futuro {gargalhadas!}. E a minha grade de canais, aí eu vou ter que ligar pra central de atendimento de novo, pela quarta vez, pra eles ajustarem a seleção de canais, já uma parte pegava no quarto e outra na sal[...]

Os grandes continentes

A ilha vem sofrendo erosões: onde antes corria um rabo de água, agora se vê um sulco na terra capaz de promover uma divisão dentro da própria ilha de Tadzzio. É como se ela pudesse se pulverizar, graças à erosão, em milhares de pequenas ilhotas que não necessariamente seguiriam juntas. Pelo contrário, se espalhariam cada vez mais, sempre na direção contrária dos grandes continentes. Não se sabe se afundariam no mar ou se permaneceriam como ilhotas onde nem um corpo pudesse ficar em pé. Juntas jamais ficariam. Essa fragmentação impossibilita grande parte dos planos que Tadzzio tem para seu pequeno espaço deserto e belo de terra e rochas. Num momento de saudosismo, pensou inclusive em remar de volta ao grande continente, atracar num de seus imensos portos, elefantes brancos, pedindo asilo político como um filho pródigo que volta ao Pai. Tadzzio não pode mentir, dizer que o grande retorno nunca passou pela sua mente ou que o caminho de volta nunca foi cogitado. Também não pode omiti-lo, fingir que o desejo de reintegrar-se às grandes ordens, às grandes lógicas explicativas e justificativas, nunca o visitou; não pode dissimular o eventual desejo de querer ser reinserido e anexado, capturado novamente pelo conforto das grandes cidades nunca foi algo que o deixou sem dormir. Mas na suposta viagem de volta a ilha não deixaria de se desintegrar: a ilha poderá ser desintegrada no mar antes mesmo que Tadzzio possa ser reintegrado aos grandes continentes. Grandes terras coesas, sólidas e fixas, racionais: voltaria pra elas a nado? Nem mais aparecem no horizonte às suas costas! Só água e ele, sob essa terra e essas rochas, num nomadismo obsceno...

A ilha seca

A pequena e bela ilha deserta de Tadzzio está seca. Pararam de correr os rios e de cair as cachoeiras; nem chuva mais cai sobre este solo. É incrível, mas ele tem um medo horrível de água (o que faz com que às vezes diga “eu não gosto de água”, quando é um desespero para ele pensar no seu corpo à deriva), e justamente agora se decidiu que a ilha estaria seca de líquidos. Esta secura, entretanto, não estava suposta no deserto da ilha – a ilha é deserta de muitas, muitas coisas, mas nunca de líquidos. De hoje em diante a ilha está seca de líquidos. Um comichão na altura do estômago pede por líquidos, uma urgência louca e quase incontrolável coça sua boca por dentro, que pede por líquidos. Não há: a ilha está seca, além de estar deserta. Daí que Tadzzio se depara com essa imensidão ainda não habitada que é sua ilha. Há tanto o que ocupar nela, tanto o que correr e despir, idas e vindas pelas praias que margeiam esse alfinete de terra que está se separando dos continentes, se separando dos grandes continentes cheios de planícies e planaltos. A ilha de Tadzzio não está num delta; ela está movendo-se, indo lá adiante. Seca.

Erosões

“Olhos firmes”: nunca tinha me debruçado nesta expressão; “olhos firmes”. Olhos que não tremem, que não piscam? Grandes olhos sem rosto, sem pálpebras, sem cílios, que não param de ver o tempo todo? Olhos que nunca descansam, cujas pupilas dilatam ou expandem de acordo com a luz, mas que de todo modo captam todo o campo de visão?

***

A ilha deserta habitada por Tadzzio admite pequenos prazeres, como o espreguiçar dos dedos dos pés que se esticam à frente e à cima; o ar-condicionado; os filmes pornográficos na grade de canais pagos; a casa fechada pros vizinhos, trancafiada pra rua, cuja chave jamais fica pendurada no miolo da fechadura mas sempre dentro de uma gaveta, de um bolso ou de uma mochila; água mineral para o chimarrão de todo dia; os livros (pequenos mundos colecionados nas estantes); as músicas (pequenos corpos feitos de som). Apenas um espelho, que ora o seduz, ora o trai. É uma pequena ilha, bela ilha. Ela está se separando do continente, ou dos continentes, migra aos poucos num movimento centrífugo lá pras bordas do mundo onde moram os monstros (os nossos monstros que colocamos lá para que nos lembremos de que de lá não passamos).

***

A pequena e bela ilha deserta de Tadzzio está se destacando, como folha picotada, se descolando. Nos pequenos prazeres que ela lhe oferece, ela traz embutidas pequenas dores, arranhões e traições. Trair não é algo ruim ou censurável, assim como a dor também não tem esse matiz: quem entra na sua pequena e bela ilha deserta deve saber doer da mesma forma como deve saber gozar. A janela de seu quarto e a janela da sala estão quase sempre fechadas, a não ser nas tardes de verão que, devido ao posicionamento do sol, no quarto entra uma luz forte que age como bactericida nos seus travesseiros. No quarto há muita dor e muito prazer: a cama é seu navio à deriva, sem rumo, túmulo do corpo. E que corpo... O que esse corpo tem a contar não são muitos que ouvirão, ou que se interessarão em escutar. Aquilo do que ele é feito e aquilo o que ele faz, aquilo que o dobra e aquilo o que ele faz dobrar: história de erosões contínuas feitas da pele pra dentro, rio de lava comendo suas margens. É um corpo de olhos firmes. É por isso que toca música na pequena e bela ilha deserta de Tadzzio: porque as músicas são pequenos corpos feitos de som que ele estupra e violenta, extrai deles prazer e dor, os dá de comer e os tortura. Sem a música essa pequena e bela ilha deserta não seria bela, seria apenas uma pequena ilha deserta.