[..]rro, seu pai dirigia e sua mãe no banco do passageiro. ele estava atrás. falavam sobre um ramo da família que era do interior de pernambuco. o nome de um tio distante foi citado. sua mãe diz "ele é um ________, como toda essa gente que ele é". ele ruboriza, sua frio; sente vergonha; chora em silêncio olhando pela janela do carro, a estrada que passa; pensa que deveria abrir a porta e se jogar pra fora do carro em movimento, deixar-se no asfalto pra ser atropelado por um caminhão. ele me diz que até hoje não consegue lembrar daquela palavra enunciada pela mãe. é essa palavra esquecida que nomeia o que ele vê no espelho. é essa palavra esquecida que adjetiva o amor que ele sente pelo namorado. um substantivo que é a sombra de todos os verbos que ele pronuncia, gaguejando, sobre si mesmo. é um substantivo itinerante.

nenhuma carta seria suficiente. não há cep no inferno. "_______" será o princípio organizador da carta de sua vida, carta pra sempre escrita e nunca enviada.

 [...]ija sentado. bem interessante. mas quando ele levanta do vaso sanitário, ainda há gotas que pingam na sua cueca. e eu quero essa cueca.

a cueca em si é tudo e é nada. ontem à noite sonhei que eu andava por um corredor e eu sabia que ao lado havia outro corredor onde uma ex-colega professora andava junto comigo. eu gritava "não adianta se esconder, eu vejo teus cabelos novos!" a cueca não é algo que me impede de ver, ou de fantasiar ver, os cabelos.

o nariz e o poder. o olhar que retém a explosão do ódio. eu estou de pé na minha sala, de onde eu posso ver, pela janela cujos vidros eu não limpo, um rapaz andando na calçada. e ele se torna tudo: meu amigo, meu namorado, o pai do meu filho adotivo que ele tem com uma mulher, o ex-namorado da minha atual namorada. ele é alto, muito corpulento, eu o apelido de "zelensky" em homenagem ao presidente da Ucrânia porque ele é uma versão do "zelensky" aumentada, mais robusta, é um homem vantajoso. ele treina na mesma academia que eu. ele levanta a camiseta para secar o suor da sua testa. e deixa ver a barriga flácida e gorda onde eu quero me deitar, que eu quero lamber; a panturrilha grossa a partir da qual eu imagino seu pinto; os olhos azuis; o nariz.

tudo se completa de uma forma que me assusta. não é só o "zelensky" que me excita. na academia onde eu treino há uma variedade de pessoas que eu noto, que eu reconheço. tem o "pimenta", que é garçon num boteco aqui perto de casa. tem a "mara", que trabalha uma empresa de telefonia celular. tem o "santista", que é um cara que eu vi duas vezes e que me faz ficar de pau duro imediatamente por causa da sua camiseta de time. tem a "manhosa", apelido que dei pela forma como ela fala ao celular, que é toda tatuada. diferentemente do que dizem de mim, eu desejo muitos e muitas.

não sou comum ao ponto de saber pouco. quisera eu ser o amante de Michael Corleone. mas só entrei nessa trama porque o pai me interessa mais que o filho. e o filho, na medida em que encarna o pai, se dilui. eu quero a casa, e o corpo, e o dinheiro. Michael Corleone nunca aparece sem camisa. só vemos alguns pelos de seu peito no final do segundo filme da trilogia. é isso que me interessa. nessa trama, eu acabaria assassinado - e não é essa a fantasia que os viados têm de si mesmos? que algo da realidade vai rasgar seu corpo e os matar? uma inesperada, ou incalculada, revolta do corpo contra eles próprios? nem que seja microscopicamente?

 [..]redo é não dar-se conta de que se está sonhando. nesse momento eu me dou conta de que tenho uma amiga muito querida e que ela está grávida. visito o lugar pra onde ela se mudou recentemente: uma pequeníssima vila de casas onde só há a dela e uma outra. observo bem as janelas da entrada, feitas de pequenos quadrados de vidro emoldurados por madeira marrom. uma casa estreita. pergunto a alguém, não sei quem, o porquê de ela ter se mudado pra essa casa. "ela vai morrer daqui a pouco, e o governo quis auxiliá-la. a criança vai continuar morando aqui." acho estranho a vila ser no campo, quase numa fazenda; penso que é muito longe de são paulo. saímos da vila e tentamos entrar em um bar, que parece fechado para quem o vê da calçada. eu chego mais perto, olho através do vidro da porta e vejo, na escuridão da parte de dentro, que há movimentações. penso que é possível tomarmos uma cerveja ali. me pergunto como vou conseguir financiamento pra um projeto cuja coordenadora, minha amiga, está morrendo.

volto pra cidade. encontro meu irmão, que é um personagem da série "Succession" - aquele que é o pai ausente de duas crianças, que está sempre se vingando do próprio pai, que é usuário de drogas, que tenta aliciar os irmãos. conversamos algo sobre permanecer na rua ou ir pra casa tomar um vinho. eu digo que vou pra casa e que o espero com o vinho. ele concorda. saio caminhando e, quando olho pra trás, ele está numa mesa de bar cheia de amigos meus. "ele estava mentindo, ele e todos os demais. não queriam minha companhia."

às vezes quero um cão, às vezes quero um gato. às vezes até penso em querer um namorado. não daria conta de nenhum dos três, mas gosto de pensar nessa santíssima trindade: eu, ele e um animal de estimação. gosto de pensar nesse triângulo porque um dos pontos vai falhar, vai faltar, e será substituído por outro ou por outros, formando imagens ou peças em terceira dimensão. relacionamentos produzidos por impressoras 3D. o gato pode fugir, o cão pode adoecer, meu namorado pode me deixar, e eu posso seguir buscando fazer linhas com outros pontos. às vezes eu quero um irmão que seja apaixonado por mim, mas que não seja meu namorado. (será que foi isso o que eu disse um dia e que provocou uma violenta reação em cadeia, em família?)

minha geladeira parece um robô do star wars.

e eu estou com dor na coluna. resultado de milênios. não quero.

eu quero morrer em paz. vocês não entendem? com minha cervejinha do lado, vcs entendem? zeca pagodinho. 

não tem mais nada pra mim aqui, alguém ouve?

obrigado meu orixá por me dizer que estou errado,

se essa palpitação de viver nunca for embora, haverá eu de explodir?

eu quero você, mas VOCÊ é bem diferente. saiba saber a diferença. há uma sutileza, além da diferença.

branco se retira do mundo. ainda bem.

ás vezes é simples assim: saia.


 [...]a rua. às vezes eu uso fones de ouvido. tenho muita coisa pra atualizar sobre política. às vezes eu ando sem fones pra saber da cidade. gosto de escutar o que está acontecendo, as pessoas, os carros, os ralos. hoje, pela primeira vez em 2 anos e meio de são paulo, passou por mim um caminhão dos bombeiros. vinha gritando há quadras antes de mim, me incomodou, foi muito estridente. mas entendo. é preciso avisar a cidade que pessoas estão morrendo queimadas pra todo mundo ter pesadelos.

eu saí do sacolão campos elíseos e tinha um homem tentando entrar ali. ele estava na porta e gritava que estava com fome, que precisava comer. nos meus próximos passos eu fantasiei duas cenas: a primeira, na qual eu era morto por uma bala perdida - que é a fantasia comum da classe média intelectualmente empobrecida, "as pessoas em situação de rua vão te matar" -, e a segunda, na qual eu dava minhas comprar pra'quele homem e saciava sua fome - que é a fantasia comum da classe média esquerda-cirandista, "eu posso fazer um gesto sincero de reparação". me envergonhei das duas. burguês safado, eu.

não há nada pior que ser um homem gay, cis, branco e solteiro, em são paulo no ano de 2023. é muita culpa.

minha geladeira tem que ficar na minha sala de estar porque não entra na minha cozinha. hoje eu virei esse eletrodoméstico fantástico levemente pra diagonal da parede. ficou perfeito. ah, hoje eu também higienizei a geladeira inteirinha. lembrei da minha mãe contando que, na sua infância, a comida era armazenada em baldes e potes com banha de porco. o avô da minha mãe, que era o prefeito da cidade, comprou a primeira geladeira da cidade, era pequena e precisava ser abastecida de gelo. e o avô da minha mãe também comprou o primeiro rádio da cidade e a primeira tevê. hoje minha mãe participa de grupos de whatsapp bolsonaristas no seu celular.

hoje eu lavei minha máquina de lavar roupas. é preciso lavar o que lava.

eu sinto cheiros. tenho vários perfumes. importados e nacionais. gosto de andar na rua e sentir os cheiros da cidade nas ondas do meu próprio perfume. tem um açougue aqui perto da estação marechal deodoro que me dá ânsia de vômito. é cheiro de carne perto de apodrecer. eu sinto náuseas em açougues. fui comprar uns quilos que carne pra minha dieta low carb no açougue Boi Legal e eu quase vomitei por causa do cheiro. a cidade tem cheiros que eu gosto de descobrir. tem um bueiro aqui perto de casa do qual sai cheiro de barata. barata tem cheiro, e eu sei reconhecer. os homens que amei têm cheiro, e eu sei reconhecer.

desodorante trés de marchand. frasco verde. no rótulo se veem duas adagas em x. é o símbolo para o gouinage, ou luta de espadas. prática sexual entre homens cis que não prevê penetração. era o desodorante que meu irmão usava. ele se matou no dia dos pais de 1988.

se eu fosse atingido por uma bala perdida, eu pediria para não chamar o SAMU.

 [...]aça como se não houve amanhã, mas o gosto me desce difícil. é só uma dose, digo eu pra mim mesmo. sabemos que não será, mas eu gosto de pensar que, sim, será. trata-se de uma bebida que marca um entroncamento, uma bifurcação interessante: no dia em que terminei com umdessesquaisquer a gente bebeu; no dia em que umdessesquaisquer levou as coisas da minha casa eu joguei uma garrafa inteira pelo ralo do tanque de lavar roupas. mas eu já bebia antes, quando eu descobri que a bebida tem 0% de carboidratos. substituí pela cerveja, que tem 100%. e emagreci. e fiquei com o abdome definido. e tive cirrose. mas depois que umdessesquaisquer saiu da minha vida, eu passei a beber vinho e cerveja, às vezes pendendo mais pro vinho, às vezes pendendo mais pra cerveja. sempre pendendo pra um ou pra outro. e foi um tempo ruim, superegoico, triste. vazio de pessoas, cheio de álcool, vazio de propósito, cheio de dívidas; vazio e cheio, ao mesmo tempo, numa desproporção. daí aprendi que, em geral, pessoas muito cheias - gritentas, efusivas, falantes, risonhas, falastronas - podem, talvez, ser bem desproporcionais. se a gente arranha o verniz, só encontra nelas salas onde não mora mais ninguém, e se um dia alguém morou ali dentro dessas pessoas já se foi embora sem deixar rastro. pessoas sem rastros de outras pessoas me assombram. umdessesquaisquer é pura superfície, nada afunda, ninguém mergulha; umdessesquaisquer só surfa. não sou surfista, sou mergulhador. prendo a respiração e exploro a parte do planeta Terra menos conhecida por seus próprios habitantes. a treva, a escuridão, a parte obscura que há na casa onde moramos: é ali que quero entrar e chafurdar as gavetas, a parte de trás dos armários, quero arredar móveis, tirar os quadros da parede. fiz uma promessa: fixar os quadros que comprei e emoldurei ao longo dos anos na parede do apartamento da cidade onde quero morrer. isso inclui quatro quadros pintados pelo meu pai. lá estarão, na casa onde hei de morrer. por causa dessa promessa, fiz uma aposta com meu pai - na verdade, não é uma aposta mas uma troca consensuada. eu disse "tu pinta um quadro pra mim, e eu escrevo um livro pra ti". eu não consigo desenhar, tampouco pintar. meu pai, artista que é, me inscreveu na aula de pintura muito cedo, eu tinha uns oito anos. de tão ruim que eu era, cheguei em casa com o primeiro quadro pintado; minha mãe gritou "que lindo esse palhaço!", ao que eu respondi "é o Cebolinha", da Turma da Mônica. eu desenho e pinto certas coisas com uma intenção, e essas imagens por mim produzidas sistematicamente falham em produzir o efeito que eu quero. mas o texto, as palavras que eu escrevo, dessas eu sei a ambiguidade e brinco com ela. escrevo por prazer. sei que o texto desliza. sei que há palhaços e Cebolinhas em cada frase. talvez eu retribua com beleza a arte que meu pai um dia me entregará. cada um experimentando a arte que lhe convém. meu pai, além do desenho e da pintura, sabe tocar instrumentos. teve uma banda quando era jovem. meu pai toca piano, violão e acordeón. eu só escrevo, mas escrevo pra academia e pra ficção. é, mais ou menos, como pintar e tocar - ou assim eu me apaziguo com os poucos dons que desenvolvi na vida. da destreza que meu pai tem em tocar instrumentos eu aprendi a escuta. pois pra tocar bem um instrumento eu sei que é necessário escutá-lo bem. minha escuta não se volta aos instrumentos, mas às pessoas. sou um jornalista que entrevista pessoas, sou um pesquisador que gosta de ouvir pessoas, faço perguntas às pessoas. peço que me relatem seu mundo - sua perspectiva a partir da qual veem e pintam, desenham seus próprios mundos. há, portanto, um entroncamento da pintura do meu pai (que só pinta o que consegue ver), a música do meu pai (que só toca o que consegue ouvir), com a minha escrita (que só escreve o que os outros relatam) e da minha escuta (que só ouve o que os outros querem dizer). não é à toa que estou estudando pra ser psicanalista. meu pai não bebe cachaça e nem é umdessesquaisquer. tampouco tem sido um super-herói. mas, à sua moda, driblou o seu próprio pai caminhoneiro, o irmão psicótico, a mãe superprotetora, um filho suicida, a esposa manipuladora, a filha rebelde e o outro filho. esse filho, o último, eu, que nasceu sem ser convidado a estar neste mundo. nasci com o DIU na mão. eu que bebo cachaça e sou viado. um filho umdessesquaisquer. mas que pelo menos lhe dará um livro.

 [...]ão me recordo de ter escrito algo nessa direção, com esse intuito, objetivando produzir esse ou aquele efeito. pois neste exato momento em que te escrevo eu lembro de um outro assíduo leitor que já morreu. nos seus últimos anos já não convivíamos; ele havia se mudado pra Garopaba ou Guarda do Embaú (foda-se qual das duas) pra envelhecer quieto. quando eu soube disso achei digníssimo. altíssima dignidade, elegantíssima. retirar-se pra envelhecer; envelhecer consigo e com o mar; envelhecer na quietude. Garopaba é quieta?, acho que não (foda-se). buenas, ele era um leitor assíduo. uma vez ele me perguntou sobre os colchetes com os quais eu começo a escrever: "tu quer nos enlouquecer?". quero. pelo menos, quero que as pessoas intuam palavras, preencham palavras com as quais se pode começar um diálogo - ou, na pior das hipóteses, um monólogo, como o que acontece aqui. é um convite a começar o texto com aquilo que, pra quem lê, faz sentido. e não é sempre assim? às vezes. minhas leitoras e meus leitores são menos obedientes. que sejam pouco obedientes com meu texto. porque assim eu peço, ou convido, que insiram vida aqui. acho que ele se mudou pra Guarda (foda-se mesmo) e morreu lá. um dia, sem saber da sua morte, pensei tê-lo visto no parque da redenção, em Porto Alegre. em seguida, minutos depois, encontrei dois amigos nossos, em comum. foram eles quem me deram a notícia da sua morte. eu arrepiei: "mas vindo pra cá eu ainda achei ter visto ele ali no gramado!", ao que um dos amigos em comum retrucou: "e por que não haverá de ter visto?". muitas das minhas leitoras e parte dos meus leitores já morreram. elas, porque acham coisa melhor que fazer; eles, porque a) morrem de aids b) morrem em acidentes de carro c) morrem de câncer d) morrem assassinados por dívidas com drogas e) morrem de overdose de drogas f) morrem em quedas de aviões g) matam-se. me acostumei a escrever endereçando o texto a pessoas mortas. não escrevo pras pessoas vivas. e quando acontece de eu escrever pras vivas é quase sempre como se eu estivesse no limiar da morte, eu mesmo morrendo: eu bêbado, eu sob efeito de remédios, eu detestando a vida. escrevo narrativas mortas ou sou um escritor nos estertores da vida. sempre num limiar, num véu, numa transparência que divide a morte da vida. e se enlouqueço, se eu quero enlouquecer alguém, é pra disfarçar que logo ali, neste próximo segundo ou nesta próxima palavra, podemos estar vivos ou [...]