[...]ool. pude sentir o dia todo vibrando na casa, inclusive depois de o sol se por, quando a luz das lâmpadas de led atraíram pequenos insetos esvoaçantes que contrastaram com as paredes branco-aluguel do meu imenso apartamento de dois dormitórios com aberturas para o norte e para o leste em cujo piso os raios de sol se deitam no inverno e também o pó da construção de edifícios ao redor e os pelos que caem do meu corpo e renascem, renascem, renascem. eu senti o sol, a luz das lâmpadas de led, o redemoinho do bater das asas dos pequenos insetos, percebi os tons de branco das paredes, o peso do valor do aluguel, a amplitude dos quartos, senti o norte e o leste como se fosse bússola, beijei o piso, arrepiei de frio no inverno, juntei com os dedos o pó, acompanhei o crescimento dos meus pelos - no dia em que completei uma semana de regeneração hepática. descobri que posso cozinhar bebendo água. descobri que posso enfrentar o domingo encarando-o, desafiando-o, sem a covardia de maquiar alegria onde não há olho para colar um cílio postiço. penteei meu cabelo todo pra trás, contra a raiz, e me senti como elvis, ou cruella de vil. visitei ruas onde ergueram-se prédios nos quais eu gostaria de morar e que sei que jamais morarei porque não terei condições financeiras ou porque sequer estarei morando aqui ou porque morrerei semanas depois de assinado o contrato de compra daquele apartamento que reformei inteiro depois de admirá-lo da calçada. sem um pingo de vinho. não tive medo do domingo. descobri que, talvez, meu ranço seja mesmo com a terça-feira, a enjeitada, enjeitadinha, que não é nem tão pesada quanto a segunda-feira e nem tão arrastada quanto a quarta-feira: é só um intervalo insosso de vinte e quatro horas entre a impotência de ter de assumir o início da semana e a demora em atravessar a sua já metade rumo ao final de semana. nenhuma saudade da minha juventude, quando eu era bonito e não sabia. hoje sou feio e sei, e me prefiro hoje. até tenho uma garrafa de vinho, mas ali está para servir de tempero enquanto cozinho - não penso nela com furor, com desejo, com intenções escusas de bebê-la até cair sem memória ou, um pouco antes disso, até conseguir dizer algo ou pensar algo que me faça chorar. não penso em descontar na garrafa de vinho, em responsabilizá-la. fui comedido e parcimonioso, um pouco preguiçoso porque não fiz faxina, mas lavei roupa, lavei louça, cozinhei maravilhas, e trabalhei!, e produzi intelectualmente!, e fiz exercícios e tentei higienizar minha mente contra os mofos do coração. bebi muita água, água mineral e na forma de chimarrão com chá de boldo - um agrado e um estímulo à regeneração hepática. em minha defesa: fiz de tudo com harmonia, prazer, e pouca relutância. e pouca culpa. pouca culpa por não amar, pouca culpa por ter dispensado quem dizia que um dia me amou, pouca culpa por não me ver amando e sendo amado no futuro. pouca culpa por ter perdido oportunidades de morar no estrangeiro e por ter gastado em dezembro $179,90 numa garrafa de espumante que veio sem nenhum perlage. só sinto rastejar dentro de mim a lacraia da culpa, pequena, por eu ter tomado muito café gelado da prensa francesa, com pedras de gelo, e umas três colheres de sopa de açúcar. muito açúcar. shame on me. terminei o domingo sem medo dele, com pouca culpa e com uma maçã e debussy aos berros. sem um pingo de álc[...]