mais uma vez, longo período sem escrever. houve momentos em que pensei que pudesse colocar uma ou duas linhas a respeito de uma ou duas cenas ou diálogos ou sentimentos que me tivessem ocorrido em um dia ou tarde ou noite, mas eu não pude e eu não quis. mais uma vez, longo período sem rodar a engrenagem da linguagem, longo período sem mover a cadeia dos sentidos. às vezes o desejo pedia “escreva, escreva”, e eu negava. são tantas antessalas que precedem cada palavra, e tantas portas que a sucedem, que me atordoava (e fascinava) ter que abrir a página em branco e fazer a roda da linguagem girar. agora mesmo, escrevendo este breve prólogo, quantas escolhas tive de fazer para digitar uma palavra e não outra de quase mesmo sentido – quase mesmo, portanto, não o Mesmo –, de modo a abrir uma porta específica, estrategicamente escolhida, depois de tal palavra. debati-me em várias antessalas de várias palavras já aqui nessas poucas linhas, a ponto de escrever-apagar-elaborar-reescrever muito – ou pelo menos o suficiente para chegar ao fim da introdução. e cheguei.

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passei um longo período sem escrever, sem girar a roda, sem empurrar a engrenagem, sem movimentar a cadeia. de certa maneira censurei-me por isso, ou lamentei. até que resolvi escrever definitivamente, com sangue, em meu corpo. escolhi vinte e cinco palavras de um texto escrito por mim, de meu próprio punho e de minha própria imaginação, para deitarem na minha pele. vou tatuar nas minhas costas uma frase de um dos meus textos. quando tomei a decisão, excitei-me como se tivesse acabado de escrever um romance, um romance honesto. é que eu serei inteiramente as antessalas e as portas que precedem e que sucedem cada uma das vinte e cinco palavras que vou tatuar nas minhas costas. os caminhos que giram a roda, que empurram a engrenagem, que movimentam a cadeia estão em mim. meses sem escrever uma palavra que fosse, sobre mim ou sobre qualquer outro, e acabei por querer marcar meu corpo com minhas palavras. escolhi uma frase na qual eu não caibo inteiro: minha inteireza está na escolha estratégica dos sentidos de cada uma das vinte e cinco palavras tatuadas no meu corpo – nas antessalas que as precedem, nas portas que as sucedem. por ocasião da escrita de tal frase, senti a excitação de reconhecê-la como tatuável: um mapa labiríntico daquilo que eu sou. convido-os para entreter nos pequenos vinte e cinco espaços antecedentes e convido-os a avançar as portas dos fundos de cada palavra tatuada.

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há mais, porém. considerem aspas duplas antes e depois de uma palavra: o que resta dela? o que fazem a uma palavra aspas duplas antes e depois? há um aviso na antessala de cada palavra advertindo aqueles que ali entretêm para não abrirem a porta mais fácil – ou a já aberta. aspas duplas antes e depois de uma palavra suspendem seu sentido rápido ou fácil e convidam a escolher estrategicamente a porta dos fundos de tal palavra. (sim, as palavras têm portas dos fundos.) aspas duplas antes e depois de uma palavra avisam: não tomem o sentido como dado de antemão; escolham, forjem o sentido desta palavra; aqui está escrito algo que pode ser outra coisa, outra pessoa. aspas duplas, no jargão acadêmico, é também aquele decalque da palavra do Outro que empregamos na construção do sentido do nosso próprio texto. em um artigo acadêmico, tese, dissertação, monografia, ensaio, aspas duplas indicam um poro aberto do texto por meio do qual acontecem a respiração e a comunicação com aqueles e aquelas que já pensaram antes de nós. quando usamos aspas duplas em um texto acadêmico, fazemos da voz do Outro a nossa por um instante com o objetivo de avançarmos o sentido do texto em direção a uma porta estrategicamente escolhida. aí aspas duplas advertem que aquilo que está compreendido entre elas não é de nossa autoria; inobstante, tatuamos um sentido estratégico da voz do Outro no nosso texto para construir um argumento, para movimentar a cadeia da linguagem apoiando-nos naquilo que já foi dito. pois: tatuarei também um par de aspas duplas na parte frontal do ombro esquerdo e um par de aspas duplas na parte frontal do ombro direito. eu sou uma pessoa entre aspas: eu sou uma pessoa cujo sentido está suspenso: eu sou uma citação da voz do Outro.

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na fúria da escrita, acreditando-me entreaberto e já sabendo que para fazer avançar os meus sentidos eu dependo da citação daquilo que já foi dito por outrem, tatuarei mais uma frase na base da coluna, imediatamente acima das nádegas, da maneira exata como segue: “terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se a falha foi necessária.”

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