Eu não suporto mais a minha própria voz dizendo que não dá = coisas de neurótico. A bunda assentada na cadeira Tok&Stok, bem confortável, bem murcha. Eu não consigo prever o que eles querem = eles, essa legião que me consome. O exército que me suga. Desisto do nome, dessa "              " que me vem. Não adianta recheá-la com músicas acústicas ou com fatias de filé mignon = que armadilha terrível. Não adianta baixar a cortina, não adianta fingir que não vê, não adianta molhar as plantas na sacadas fingindo estar despretensiosamente ali bonito. A beleza jamais te visitou. A que isso vai esconder: qualquer ferida ou rasgo? Desfaz-se neste momento a cadeia nacional de ódio e vergonha. De que adianta, me diz, pra onde vamos? Pra onde vai a superfície da pele que gruda nos músculos, transparente? Pra onde vão os músculos? Esta é uma pergunta minha, mas que também pode ser tua e nossa. Nossa pergunta, algo que compartilhamos: o que fazemos quando somos recusados? Minha história inteira, a dobra lisa de minha pele, e todos os pelos e os dentes, a história dos meus dentes, das coisas feias entrementes, o pelo nascido e inocente de qualquer esporro, o próprio pênis inocente. Haverá pênis inocente de qualquer coisa neste mundo? Não dá = há coisas que voltam. A pele descascando. A escolha errada no xingamento = um xingamento errado, eticamente deslocado. Pele mole, dobras cutâneas. Flacidez. O destino, meu destino, que não desvia um milímetro de todo o erro que ele me guardou. O fundo do copo me guardou uma frase ou sentença, uma oração = nos dois sentidos. Parte de mim me anima, e quer ver aquilo que realmente há borbulhando na pele e nos pelos, por entre as placas do crânio. Nada é reluzente. Os desenhos, as imagens, os movimentos inibem tudo o que exite por entre pintas marrons, as veias saltadas. Nunca haverá VOCÊ. VOCÊ é uma farsa, nunca se teve notícia boa ou má, ou regojizante de VOCÊ. VOCÊ não veio, não virá, não passou em pretas nuvens. VOCÊ não fez tempestade na minha vida. E ainda sim cava um buraco em mim, em espiral, buraco cretino. VOCÊ = cretino. VOCÊ = que labirinto há cuja saída é íntegra? V               Ê. Saudade.
São, na verdade, as palavras em guerra. Aquilo que qualquer um de nós reconheceria como um insulto, uma agressão. Um dedo apontado em riste para o teu rosto. O dedo em riste para o rosto pode ser também o pênis ereto para a boca. É por isso que soa tão ultrajante; é por isso que soa tão potente. Gritos ecoando da boca. Sons estremecendo nos lábios. De onde toda a beirada das palavras guerreia: minha nova diretriz é manter-me firme na palavra. Não naquilo que a palavra diz, mas naquilo que pode dizer, no efeito da sílaba, no eco. Há debochados chamando-me de Nossa Senhora das Flores. É esta a beirada: de ser um insulto e também uma obra, uma arte, uma experiência literária. Uma guerra da qual sempre se sai perdendo, mesmo sendo o melhor no front. A palavra sempre vai embora da guerra, depois de iniciada. E ficamos nós implicados em saber sobre quem a palavra dizia. A palavra nunca tem compromisso com a guerra. Mas o que fica, então, depois de dita a palavra em guerra? Ficamos nós inteiros, nossa coisa mole interna, a parte de dentro da nossa pele, e também sua superfície. O corpo fica em guerra, os lábios, mesmo depois de proferir a palavra. "O dia do fracasso geral" dito no espelho: eu nunca fui tão fundo no caráter sanguíneo da guerra. Nunca fui tão consciente naquilo que cada uma delas poderia dizer, grudado na sua beirada no front de batalha. O espelho respondeu: "Mais um dia do fracasso", na voz de uma mulher. O limiar, a franja da guerra: eu invertido. Palavras morrem no front, nas trincheiras. O corpo continua agonizando, à espera de outra palavra. E sempre vem outra para recomeçar, para relançar um pouco mais adiante a granada que explodirá na próxima palavra, dita pelo outro. Passo os dedos pela pele, sinto os pelos, a camada morta. A pele morta é mais densa. Reconheço-me na busca pela morte, no desejo de ir embora do mundo - algo banal, já-dito - "reconheço que quero morrer". As palavras saem trépidas dos lábios, com granadas, as palavras ditas no espelho. Mas lá na superfície do espelho tocam e reverberam, sem nenhuma reflexão: guerreiam, as palavras recém ditas, e como todos que se postam frente ao espelho, atravessam-no e tornam-se o seu avesso, a sua inversão, a sua antítese.
o problema do meu escritório é o meu vizinho.

Desculpe, eu não entendi.

o problema do meu escritório é o meu vizinho. o vizinho do sétimo andar do bloco h. é horrível pra mim, não consigo me concentrar no meu trabalho, nos meus estudos, nas coisas que tenho para fazer. simplesmente não consigo.

Por quê?

todos os vazamentos do apartamento dele dão pra janela do meu escritório. todas as entradas do apartamento dele estão viradas para minha janela, menos a porta principal, que obviamente comunica com o corredor interno do prédio.

Vazamentos?

sim. a sacada, a imensa janela da sacada, a porta da área de serviço, a janela de um quarto, de outro quarto e do banheiro. todas as aberturas, as linhas pontilhadas que conectam onde ele mora com o resto do mundo dão direto pra minha janela! [as mãos, em forma de garra, agarram os joelhos.] qualquer movimento que vem de lá, qualquer coisa me assusta, captura meu olhar, me chicoteia e dói em mim.

E por que isso te deixa tão nervoso?

porque ele é lindo. eu já o vi na academia do condomínio, já o vi circulando sem camisa na sacada. lindo.

[Silêncio.]

ontem eu ouvi a voz dele. foi desesperador. [apoia a testa em uma das mãos, fecha os olhos.] ele pediu ao vizinho de baixo que deixasse para outro momento do dia a serragem de canos, pois tentava estudar e não conseguia por causa do barulho. puxou mais alguma conversa sobre o tempo, falaram alguma coisa sobre uma ambulância. [abre os olhos e mira pela janela pássaros que voam.] isso me debilitou. fiquei atordoado. a voz dele não saía dos meus ouvidos. o cabelo pendendo sobre o rosto. o corpo alto e esguio que cabe em qualquer calça, em qualquer cueca, com a mesma graça.

É a beleza dele que te perturba?

é a minha falta de beleza que me perturba. ele só é a coisa mais cintilante próxima de mim que me mostra que eu jamais serei assim, nem nunca fui.

[Silêncio.]

eu já desisti, nessa vida.

Eu discordo.

Ahn?

Eu discordo. Eu não acho que tu já desistiu. Pelo contrário, eu acho que tu continua tentando. Por isso que teu vizinho te perturba tanto.

não. acabou. o vizinho é a prova de que não há esperança pra mim.

O vizinho é a prova de que tu tá vivo e continua tentando.

eu nunca vou ser bonito, nunca vou ter aquele corpo.

Eu não estou falando de beleza, nem de corpo.

Tá falando de que, então?

De vida, de esperança. Foram as palavras que tu mesmo acabou de usar.

[silêncio.]

Talvez fosse o caso de des-insistir em vez de desistir.
Olá.

oi.

Como está?

incomodado. com um monte de coisa, com um monte de gente.

Começa por alguma coisa, por alguma gente.

hoje saí de casa pra ir pro trabalho e vi que minha vizinha deixa os sapatos do lado de fora da porta, no corredor. é revoltante.

Na área comum do prédio, tu quer dizer?

é. vê se pode.

Não dá pra conversar sobre isso com ela ou com a pessoa que é síndica no teu condomínio?

e dizer o quê? "olha, essa mulher aí é louca, põe pra fora o que deveria por pra dentro." as normas do condomínio não dizem nada sobre sapatos no batente da porta.

Entendo. Então a questão é que há algo pra fora que deveria estar pra dentro.

claro. pra mim é a mesma coisa que cagar de porta aberta com visita em casa.

[Silêncio]

[olha pela janela] são pessoas feias, fascistas, eu to cansando. em um programa de tv, um alto empresário disse que um grande sonho da vida dele é chegar aos cem anos de idade, o imbecil. milionário, lindo, com um pau imenso, realmente essa vida e esse mundo devem ser uma experiência e um lugar do qual não se quer ir embora, que não se quer perder. eu quero morrer aos sessenta.

[Silêncio]

há um sentimento recorrente em mim.

Qual?

quando eu saio do trabalho, eu geralmente avisto a parada do ônibus desde muito longe. e vou caminhando até lá. desde muito longe eu vejo lá parado meu ônibus, o ônibus que passa na minha casa. eu fico ansioso, tento caminhar mais rápido, às vezes chego a correr pra poder chegar a tempo de pegá-lo. nunca dá. é esse o sentimento que volta, sempre: de enxergar, esforçar-me e perder.

Não há outro ônibus em um horário em seguida?

mas não interessa o horário do ônibus. interessa que eu o perco.

Não interessa perder o ônibus se este não é o único.
[olha para as unhas, em silêncio]

No que tu tá pensando?


[pousa uma mão sobre a outra] vi um trecho de um filme hoje, logo quando acordei. eu estava um pouco sonolento, talvez ainda sonhando. mas fiquei bastante impressionado com o que eu vi, ou com o que eu pensei ter visto na cena. fiquei perturbado.

Como era a cena?

uma mãe precisa abandonar o filho porque assassinos querem matá-lo. ela precisa escondê-lo dos assassinos. ela deixa o filho, que é pouco mais que um bebê, dentro de uma cesta, em uma carroça. na cena, dá pra ver a criança refletida na íris, na pupila da mãe. eu, espectador do filme, vi a criança por meio do reflexo dos olhos da mãe. a mãe olhava diretamente pra mim, na tv. mas não era eu refletido nos olhos dela: era a criança prestes a ser abandonada. em seguida, a mãe sai correndo e chama a atenção dos assassinos para si. é um modo de despitá-los.

Tu te sentes abandonado?

eu me sinto abandonando. é isso, um movimento contínuo, um fazer perpétuo do abandono. eu abandonando as pessoas, o mundo. é como se o meu reflexo nos olhos dos outros fosse sempre aquele, de quem está sendo deixado.

[Silêncio.] Qual era o filme?

kung fu panda.

[Risos.] Eu imaginava que fosse um filme de guerra, ou algo assim...

não. é um desenho animado, bastante frugal, bastante simplório. mas as coisas aderem na gente, grudam de alguma maneira. podem vir da coisa mais idiota, mas entram. é quase como a agulha do soro, intravenosa.

Uma agulha?

sim. há cenas, há palavras que são intravenosas. eu, que estava diante da mãe, não estava refletido no olhar dela. ou deveria estar?

Talv[...]

é a mesma coisa quando assisto a um filme pornô. [silêncio.] me excito assistindo a filmes pornôs em que há uma mulher e dois, ou mais homens. me excito quando eles se encostam, se tocam, na ânsia de penetrar a mulher. me excito quando o olhar dos homens desliza e, mesmo que por um segundo e mesmo que o alvo seja o rosto da mulher, encontra o pau ou a bunda do outro.

Onde tu está nesse jogo de olhares, então?

em nenhuma parte. [volta a olhar as unhas.] em lugar nenhum. há corpos que não são olhados, não têm o direito de ser olhados. ninguém olha pra mim. e quando olham, como a mãe do filme, não sou eu lá no olho dela.

Tu acha que ninguém te olha?

acho. eu lembro que tinha uma época em que eu ficava muito em casa. dias sem sair de casa, três ou quatro dias sem falar com ninguém. daí chegava o momento em que eu precisava de pão, água. eu ia ao supermercado e jogava o carrinho de compras contra as pessoas, contra os carrinhos delas. forçava uma colisão. pra eu ter certeza de existir, de que eu não tinha morrido ainda. pra mostrar pras pessoas que eu estava ali.

E alguém te olhava?

não lembro. não me recordo de alguém ter me olhado. só lembro do gesto, da atitude, da técnica. colidir com os outros.

Hoje tu continua colidindo com as pessoas pra ter certeza de existir?

não. hoje eu falo palavras intravenosas pras pessoas. palavras que grudam, que entram na jugular. falo coisas feias, coisas podres, que rasgam as artérias dos outros. ou assim eu desejo.

Talvez seja por isso que tu sente que está sempre sendo deixado.

por quê? porque eu sou insuportável?

Sim. Se tu diz coisas feias e podres pros outros com o intuito de rasgar suas artérias, é possível que ninguém queira ficar perto de ti.

de um modo ou de outro, eu consigo confirmar minha existência. existo tanto, tanto, mas tanto, que ninguém me suporta.
O céu do sul é menor que o céu do centro.


Do centro?


É. Do planalto central.


Em que sentido?


Lá é maior, mas largo. A embocadura, o gargalo... mais amplo. Sabes? Vemos grandes distâncias de qualquer ponto. Tudo muito plano, tudo muito alto. Vemos longe.


Aqui tu vês curto, vês pouco?


Vejo muito, mas tudo muito fragmentado, de uma forma entrecortada. As montanhas, as pessoas, tudo muito reunido e agrupado. A vista não comporta ver tanto. A montanha impede que se veja o horizonte.

Mas a montanha pode ser, ela própria, um horizonte.


Sim, é verdade. Mas ela fica próxima demais da vista. É isto: lá no centro é plano, aqui não. Então, lá dá pra ver mais longe, e o céu encontra a terra sempre bem longe da vista. Aqui não: o céu encontra a terra quase em todo lugar, bem no nosso nariz. No nariz de todas as pessoas, agrupadas, reunidas.


Tu desejas separar as pessoas?


Não. Cada uma tem o céu e o nariz que merece.


[silêncio] E qual o céu que tu mereces?


[silêncio] Eu aprendi a amar o céu do centro. O sol do centro. O sol do centro demorava mais tempo para sair da terra e para encontrá-la novamente. Caminho difícil, de muita paciência. É lindo, lindo.


É o céu do centro que tu mereces?


Nenhum céu. Não havia nada, nenhum céu, nenhum sol. Nada lá no início, antes, bem antes. Não havia essa luz, esse brilho. Sabe? Era opaco, um pouco morno. Não tinha essa força.


Início de quê?


Da dor.


[Silêncio.] Qual dor?


De manter-se em pé. De andar. Não tinha essa dor, não tinha esse céu, nem o sol.


A dor veio junto com a força e com o brilho?


Veio, claro. A dor trouxe a força. Banhou de brilho. Um sol radiante percorrendo um céu glorioso.


Tu não conseguia te manter de pé nem andar por causa da dor.


Sim. Era uma dor paralisante.


Não entendo como essa dor paralisante trouxe brilho, força... e céu... e sol...?


Nem eu. Mas eu fui descobrindo o quanto tudo brilhava justamente porque engatinhei, andei de quatro. Tudo brilha rente ao chão. A força que a dor trouxe veio para me distanciar do chão, pra me erguer, pra colocar um pé depois do outro e pra equilibrar. Todos os dedos dos pés, os músculos e os nervos precisam de orquestra, de regência, de maestro. É uma verdadeira sinfonia, uma ópera em vários atos. Se eu hoje consigo me pôr de pé e andar, como eu não conseguia antes, eu sou o sol. Eu, sendo sol, percorro o céu, eu abraço o céu.


Mas então a dor não era tão paralisante assim.


Era inabilitante. Roubava minhas habilidades.


[Silêncio.] Então tu mereces um céu glorioso, já que és um sol radiante.


Sim, mereço. Porque toda abóboda celeste um dia cai e se estilhaça.


E o sol?


O sol é justamente o furo, o espaço vazio. Um buraco esplendoroso.


O sol não é um elemento do céu?


Não. O sol é uma passagem, uma conexão.


Com o quê?


[silêncio.] Eu não sei. Porque quem vai para além do céu só passa por mim sem deixar nada. Não manda lembranças, nem recados. Só passa, atravessa o céu, desaparece. Eu sou essa lacuna, esse vacúolo. Eu sou o sol que brilha o vácuo, que irradia o oco.
falando em repetição, há uma música na minha cabeça faz meses. "o homem caminha só na estação / vindo de todo trem, de todo o lugar". ela repete toda entrecortada, versos aqui e ali. vem toda quebrada: em alguns momentos uns trechos sobrepõem-se aos outros, ou ganham mais rouquidão. repete-se também a campainha de um telefone. "chega em casa e senta ao lado de um cara que não diz nada". repete-se: um alguém ao lado, vazio, esvaziado. só eu sei que ninguém fala comigo, ninguém mais. não digo nada. sou eu o cara que não diz nada, sou eu quem não responde. "e pergunta pra ele / e pergunta sem parar: que lugar é esse?". pura feiúra. nenhum lugar é mais vazio que o meu. coisinhas feias deste mundo vieram me sugar ontem à noite. drenaram-me. tem um telefone tocando, mas eu não respondo. não há repetição quando não há fala, quando não há o que falar para repetir.
é verdade, repito sempre "coisas imensas", "vácuos imóveis e permanentes", "faltas cujas bordas avançam, fazendo faltar a falta", "ulceração nômade". sim, eu repito tudo isso e outras coisas mais. repito também que o corpo avoluma-se demasiado no olhar, na mão, e que há de ir embora em algum momento. ainda bem que esta porra toda há de acabar. não adianta, portanto, desviar-se. já ali mais adiante estará o "vácuo imóvel" a me fitar. então repito, repito mesmo, como um refrão: não custa lembrar-me do corpo que não é novo nem belo mas que é a medida do meu ser. custa. custa montantes "imensos" de energia lembrar-me. vasculhar tudo e trazer à tona o que há de mais reincidente. custa. demora para conseguir um êxito por dia. abrir os olhos não conta; custa.
Eu me mato por todos os silêncios. Sim, haveria a condolência e a vergonha, a vergonha alheia, o desprezo, e a inocência de não saber que te requisitam. Mas nenhum seria tão pesado quanto o olhar que tu de mim desvias, que tu de mim bifurcas, que tu de mim separas. Escansão. O olhar articulado ao silêncio é a pior experiência, a pior prospecção. Um negar que envolve o corpo todo: a boca, os braços, os pés que vão embora. Até chegar aí, que estrada longa não trilhou? Não sou só eu, é um bando de gente. Não me mato por eles e elas, pois não sou mártir. Mato-me pelo silêncio, que é imbatível e coletivo.
“As dobras do corpo já não são mais as mesmas”, ele pensou. Estão mais curvas, mais arredondadas, mas flácidas. “Algum dia forma diferentes?” Viu com certa resignação a impossibilidade de alcançar com a mão e o sabonete porções das suas costas. “Permanecerão sujas.” Os pés mais secos, a pele do rosto mais esburacada. “Estou inchado debaixo dos olhos, e as pálpebras estão caindo.” Quando criança, ouvira sua mãe uma vez dizer a uma tia que, de acordo com o mais recente sermão do padre, era um pecado soterrar talentos. Um pecado. Havia quanto tempo que ele não entrava numa igreja? “Há pouco mais de um mês!” Surpreendeu-se. E não fora um momento de pânico no qual precisara pedir, requisitar, demandar. Fora apenas para agradecer. “Os bancos frios e duros da igreja, quando eu era criança... Eu ajoelhado; os joelhos doíam.” Solicitações e regozijos. Tudo mais ou menos enterrado naquele corpo. A lucidez à míngua, o ocaso de qualquer prega com o real, com o concreto. Desajoelhando-se do mundo. “Vou-me perdendo e me separando, escorregando para fora.” A água ainda caia, quente. Perguntou-se acerca dos dias inteiros e ininterruptos que simplesmente não saía de casa: era justo consigo? Acasulando-se, enovelando-se, rodopiando-se como um pião nos fios longos da recusa a qualquer contato. “Acabo estranhando gente, a gente toda, quando elas falam e quando elas caminham; me perturbam.” O mais perto que chegava das fronteiras rente à gente toda era na sua sacada, imensa, cortada por um horizonte impressionante a perder de vista. Da sacada via a tempestade chegar em nuvens de chumbo, e o sol, e o vento, e a abóboda celeste inteira alegrando-se com o coaxar dos sapos. “As noites são ao menos felizes.” E escuras. Nunca dormira em um quarto mais escuro antes. Com medo da escuridão – não o medo infantil, mas o medo adulto, o medo de não acordar nunca mais –, experimentou deixar a porta do quarto e a cortina da janela da sacada abertas durante a noite. Já não haveria o perigo de dormir para sempre. “Hei de me despertar com a luz do dia.” Passou, então, a tomar remédios para dormir. Pois não podia pegar no sono com tamanha claridade vinda da rua, dos postes, das outras casas – eventualmente, da lua. “Pois há luz ofuscante até nas minhas noites felizes!” Tomava dois comprimidos de relaxante muscular, quando meio era suficiente, dado seu peso. Era um modo de adensar as paredes, finas demais em sua opinião, que o separava dos vizinhos. Todas as manhãs a vizinha de cima acordava às oito e punha-se a tossir; não raro, o casal do apartamento ao lado fazia sexo com trilha sonora da cantora Enya. Ele sobressaltava na cama. Culpava-se pelo cigarro e culpava-se pela solidão. Fantasiava acabar seus dias em uma maca de hospital público esquecida em um corredor lotado, já velho e sem forças, sem dentes, pendurado a um soro pingando lentamente e a uma sonda cuja cânula jamais era trocada. Ninguém o tiraria dali, nem o visitaria. “Vou ficar pra sempre solteiro mesmo...” Culpava-se por não fazer sexo com trilha sonora da cantora Enya. Um pouco de tudo estava soterrado nele. Um imenso pecado, diria sua mãe.
Todas as coisas vão se perder.
Me perder.
Todas as coisas vão se perder de mim.
Perder.
As coisas minhas não são nada: minha calça, meu espelho, meu prato:
Nada meu.
Perdam-se.
Quero somente meu, minhas, eu.
Perdi.
Eu acho que sim.
Eu acho que decidirei ir embora - haverá tempo pra isso.
Sozinho consigo, ele pensou. Sozinho apenas com um sorriso, e o sorriso é sempre um companheiro. Sorrindo consigo, ele pensou, e sorrir é sempre uma dádiva. Pôde, enfim, dizer não a qualquer desatino do ego, a qualquer controle da martelada: o prego saliente é sempre alvo da primeira martelada: mas isso é pouco. Liga a geladeira. Ela refresca o que já haverá de comer e de dizer chega. Já diz, a geladeira, o que eu hei de comer e de recusar. O que eu posso ingerir. Voltando, então: é tudo belo. Tenho umas plantinhas crescendo na vertical da minha minha perede. Não consigo prever, agora, se elas resistirão: é preciso considerar que me sugam a vida, que me confiscam a vida. Uma piada mal feita, um riso, um olhar; um cigarro, uma long neck de Stella Artois; o tira-limo que uso em excesso e que que respiro profundamente quando limpo o box do banheiro: a vida que se extingue, que eu sei que vai embora ou que se diminui, que fica opaca, que vira a cara pro Sol e pra todo seu reflexo. É uma vida que esvai, que recusa e que renuncia. Não haveremos de dar ouvidos, em algum momento, para aqueles e aquelas que tiram suas próprias vidas? Que grito haverá de ter nas cordas vocais de quem esteve lá para ouvir e para resignar-se, para entender o motivo de quem não quer mais estar entre nós? Ir embora - da minha janta, da minha festa, do meu texto ou da minha palestra - jamais significa abandonar quem não quis estar conosco. Guardam um segredo, essas pessoas que recusaram o mundo tal como ele é: sua razão e seus motivos, sua lógica. Expresso simploriamente por meio de um ato (um tiro, um enforcamento, um carro jogado no poste, uma ingestão obtusa de medicamentos), há explícito em seu corpo e em sua feição tudo aquilo que escapa ao que consideramos justo: a beleza, a juventude, a alegria, a magreza e a riqueza. Jamais deixemos de explorar quem se mata. Não por razões necrófilas, mas por razões políticas. Quem se mata monta um quebra-cabeça, um código, uma chave, uma senha que nos diz da impossibilidade do mundo no qual vivemos. Escutemos seus gritos, ouçamos seus tiros, experimentemos suas químicas. O que temos, enfim, para aprender com quem vai embora por ofício, por decisão e por amor? Com quem recusa este mundo do modo como está? Com quem sente pena de nós por ficar?
Todas as coisas entre dois fiapos de nuvem ou entre dois tijolos: depende. O pote de café entre um pote de sal e outro de açúcar, que lugar é esse? Um mais pra lá do outro, assimétrico, me irrita, mas que lugar é esse? Entre um pote e outro, um lugar que me irrita. O lugar onde umas coisas entram mais que outras, umas pessoas cabem mais que outras: o lugar do cimento ou o lugar do céu. Irrita um espaço maior entre o pote de café e o pote de sal; um espaço menor entre o pote de café e o pote de açúcar. Todos cabem entre esses espaços, mas todos cabem mais entre uns que entre outros. Fim do dia de domingo, sol entre chuva, notícias de um suicídio. Houve aquele que não coube nem entre os potes de café e sal, tampouco entre os potes de café e açúcar. Houve aquele que achou um espaço acima, ou abaixo, dos potes. Houve aquele que recusou os potes e seus espaços entre um e outro. E foi embora. Cada início, cada começo: onde começam? Num piscar, num estalar, outra criança nasce no mundo. No mundo onde tudo cabe nos espaços entre três potes. A resposta à pergunta "que lugar é esse?" nunca acaba, nunca acha o ponto final que cada frase precisa ter para fazer sentido.  O início de uma criança no mundo nunca acaba: ela se pergunta "que lugar é esse?", e a resposta nunca termina. Ela seguirá se perguntando: "que lugar é esse entre os tijolos, entre os fiapos de nuvem?" Talvez haverá o sol brilhando entre os fiapos, ou talvez o cimento endurecido. Um sol brilhando assimétrico entre duas nuvens desproporcionais, que se movem. Talvez haverá dois tijolos simétricos, porém estancados no mundo, na coisa toda do mundo que gira e reverbera. Notícias de um suicídio não são animadoras, mas marcam o ponto final da resposta à pergunta "que lugar é esse?" Eu aposto em todas as crianças que nasceram durante esta escrita, aposto em todos os fiapos de nuvem e em todos os espaços entre eles: assimétricos, móveis e criativos.



Pequeno, eu diria. Ou muito mais. As forças e as cores. E as teclas, eu acho que haveria muito mais teclas se os computadores realmente dissessem quem somos. Lembro que quando eu morava no Canadá um roomate me disse: "Digitamos de acordo com os sons." Ele era taiwanês. Mas que sons compartilhamos com ele nesse exíguo espaço? Pequeno, eu diria.
*
Oh, coisa lá em cima (ou abaixo), não me deixe preso à circunscrição pouca de ser apenas isto que sou..
*
Um monte de coisinhas pularam na minha cabeça, e preciso acalmá-las.
*
O corpo todo e mais um pouco. E isso que me interessa. A força e a virtude, a lisura: a reentrância. O que não é óbvio. O que não é o brilho do chão, o que é o gosto amargo que sinto na boca. Opa: é o cigarro. Mas e isto, o cigarro: não é uma forma de potência? Eu assopro e eu expiro!
*
Um monte de coisinhas pularam, e eu disse: "Agora é hora de dormir.".
*
Pois foi quando tudo desmoronou e doeu, as costas e o nariz, e a dificuldade de saber que cada tecla era exatamente o que eu queria dizer. Ingênuo que eu sou.
*
"Dói mesmo", eu diria pro primeiro pequeno. "Dói". A coluna e a garganta.
Reler é um ofício obrigatório para quem sabe que escreve mais do que pensa ou para quem sabe que as palavras contêm em si um excesso, um excedente, um plus, um grito de significância que foge à grafia ou à vocalização. Reler é um exercício, um abdominal. Reler é tortura, uma agulha entre a unha e a carne dos dedos. Reler é colocar-se em frente a um espelho que não é imagético: é imag-ético. Reler é recompor aquela figura, recolocar-se naquela paisagem, restituir-se naquele cenário. Reler é o ato de maior humildade para quem se põe a escrever.
*
Durante um momento de recreação no parque, colocamos toalhas sobre a grama para sentarmos. Comíamos e bebíamos com crianças brincando ao nosso redor. Apoiei-me no chão, colocando a mão sobre uma das tolhas. Um bicho qualquer me picou ou me mordeu, mas não o vi, pois estava debaixo da toalha, na grama. Não acho que tenha sido uma mordida - que bicho tem boca, maxilar e dentes para morder minha mão? Mordida não tem veneno: cães mordem. Penso que foi uma picada, uma incisão venenosa. Aposto em uma formiga, uma aranha ou um escorpião. Acordo à noite, às vezes, com o coração batendo forte por acreditar que há um escorpião na minha cama, debaixo dos lençóis. Aposto o escorpião entocado em alguma das dobras do tecido. Não sei se ele me ataca, se me pica, se me envenena. Aposto um escorpião dormindo comigo. O que me fascina no escorpião, assim como nas aranhas e nas cobras, em alguns tipos de peixe, moluscos, e em algumas lesmas, é a maravilha dos seus corpos vivos que carregam em si a dose da morte. O mais fascinante dos escorpiões é o fato de, quando percebem estar encurralados e com sua própria vida ameaçada, suicidarem-se. Sua cauda dobra sobre si próprios e picam a si mesmos, matando-se. É intrigante e muito, muito humano - com a diferença que os humanos podem, eventualmente, dar suas vidas em sacrifício de outros humanos. Algo que um escorpião jamais fará por outro, ou outros.
*
Sonhei que eu tinha companhia no quarto, que me observavam dormindo e que massageavam minhas costas. Tenho sempre alguém comigo. Sempre fantasio com acompanhantes, com parceiros. Há sempre alguém me olhando, me observando, pousando olhares de avaliação em mim. Há sempre uma fantasia de ser objeto do olhar e do escrutínio de outrem. Há sempre um medo, uma perseguição e uma crença no fracasso. Há sempre algum tipo de inquisição, de julgamento, de júri e de veredicto. "Vere-dicto" é o dizer verdadeiro - ou o olhar dizível. O que não é visto não é enunciável, nem verdadeiro. Há sempre um veneno.
Desterrei algo e alguém do fundo de tudo, graças a uma arma na cabeça e um pouco de medo no coração. Tudo poderia ser feito, menos o que eu gostaria. Lembrei do gatilho da arma, da largura do cano, do gelado do ferro e aço nas têmporas. Ameaçaram me matar uma vez. E havia um rapaz junto comigo, tão assustado quanto eu. Usava suspensórios. É precisamente esse vácuo e abismo que me separa dele que eu preciso desvendar. É necessário descobrir. É fundamental elucidar. Tudo se explica por este momento: eu estava esperando a fila do banco. Fui chamado pelo rapaz de suspensório. Ele gerenciava meu dinheiro. Ele era lindo, ruivo, com barba, olhos verdes, corpulento e musculoso. Uma gangue de assaltantes invadiu o banco, um deles apontou o revólver para minha cabeça. Eu vi a arma e o medo através dos olhos do rapaz de suspensório, pois no momento da invasão eu estava de costas. Os assaltantes levaram tudo. O rapaz de suspensório perguntou: "está tudo bem"? Eu respondi que sim, mentindo. Está tudo aí, toda as coisas e todas as cores (amarelo). Todos os corpos. Só em mim tudo houve: o bem e o mal, os juízos que separam e dividem. Toda a luta pelo convecimento está expressa no velório. Um velório para o qual eu precisei convencer as pessoas a participar porque ninguém queria estar lá. E houve pessoas que se atrasaram. Eu as encaminhava apressadamente para a van que as levaria para o enterro. Tudo haveria de recomeçar depois de eu ter morrido.
Sonhei que eu era dois. Mas não apenas duplos: dois opostos. Um estava com o pai, que me chamou a atenção: "estou com teu gêmeo". O outro era eu. Meu gêmeo deixava o copo de cerveja cair no chão e se estilhaçar; cantava e bebia; gritava. O outro era incontrolável. Gerir também significa gestar. Conter algo em si por um tempo até o algo virar alguém: prover vida à vida. Significa parir depois disso. Por no mundo, dar à luz, fazer vir à vida. Um gêmeo veio da minha mesma gestão, mas pôs-se no mundo e viu-se à luz de outra forma. É um eu radicalmente Outro, um Não-Eu. Um Não-Eu que posa para fotos e que bebe, que grita, que canta. Um Não-Eu que, ao não existir, sublinha minhas bordas e meus limites, minhas praias, meus inalcances. Lá onde eu não vou. É a borda do meu rosto onde há espinhas, cravos e pelos inflamados, a borda inflamada e dolorida do rosto. Que errado é mover-se dentro de um corpo desconhecido ou pesado, um fardo, um erro ou um engano. O corpo enganado; O corpo renunciado. Aquilo que veio a ser o corpo não me serve. O adiamento daquilo que o corpo já é resume-se a poucos procedimentos: ou é de corte, ou é de cavocação, ou é de provocação da morte. Daí já não é mais gestação - ou gestão. Já não é mais prever a vida no corpo, neste corpo que pode gerir outro corpo e que pode pôr à luz outro corpo. Não é mais um gêmeo. É uma gestação abortada, sem eira. Não é mais eu duplicado, nem oposto: NÃO É MAIS EU.
Mesmo que tenha sido um pouco, mesmo que tenha sido menos do terço ou do quarto. Um silêncio gigante, daqueles que precedem o parto. Um parto longo, dolorido, forçado: nasceu a fórceps. A mãe, que era eu, morreu. Moribundeei por ainda algumas horas apenas para dar o primeiro leite. Liberei-o, enfim, para um mundo sem mim. Não haveria de ficar descuidado, pois o pai segurava minha mão. Não o odiou, o pai: acolheu aquela coisinha pouca com toda a ternura sem-mãe. Um pai doce e sorridente, viúvo. Depois da morte da mãe, o pai contou com um marido, que era eu novamente, que retornou do exterior para criar o filho recém nascido, órfão. O guri cresceu sólido, alto e esguio. Repete-se essa mesma história mais uma vez, as mesmas peças em posições diferentes. É o enigma do parto que tento desvendar, que tento inferir. Há alguma pista que perdi. O personagem central não sou eu: eu sou a mãe que morre, sou o pai, sou o marido do pai - recalcado pela família, pela sociedade - que retorna, eu sou o filho que cresce. Eu estou diluído um pouco em cada um deles, mas devo admitir que morro e nasço, que me separo e me reconcilio, que vou e retorno, que cresço e morro mais uma vez na repetição de uma história que não só foi criada por mim mas que foi vivida por mim. Estou recriando, reelaborando, redesenhando e reescrevendo a minha história. Isso explica a paixão por Douglas (Seco, Dougie, Doguito, conforme os apelidos que eu mesmo criei para ele). Douglas sou eu. Mas a história não é justificada - ela é uma ficção, uma realidade fantástica, uma biofantásticagrafia; pelo contrário, a história justifica, ela endossa e legitima, ela aponta uma reconfiguração da minha própria. Criei um mundo repetido do qual não estou completamente ausente (eu sou o pai viúvo, o filho órfão, a mãe morta, o marido/padastro que retorna), um mundo no qual tampouco estou integralmente inserido (é um mundo que não existe, que não existirá, é uma ficção impossível, uma inrealidade). Estou um pouco, menos do terço ou do quarto. Silenciosamente renascendo a fórceps.
Ao menos uma vez na semana me coloco esta empreitada, a de escrever. Pois aqui estou. Estou vazio, de pé somente porque um sopro de vento passa por dentro de mim, como se eu fosse um bonecão de posto de gasolina. Leitores menos brilhantes diriam que sofro de flatulência. É sempre assim: há de ter uma regra, um cânone ou um paradigma para escrever, para ser entendido e para ser celebrado como genial. Do contrário, as mentes menos audazes sobrepujam toda interpretação mais promissora, mais potente. Vence a versão mais mesquinha para todos os parágrafos. Não é verdade que todo escritor ou romancista deve escrever somente quando já sabe o final de sua história. Também não é verdade que essa história de final já conhecido deva ser escrita com o domínio de quem escreve a história da Chapeuzinho Vermelho. Por outro lado, acredito mesmo que a fluidez, o magnetismo, o espetáculo de uma história fulgurante é um produto ao qual se chega depois de muito, muito trabalho. Por isso que ao menos uma vez na semana eu me coloco este desafio: o de construir uma história fulgurante. Minhas histórias fulgurantes são apenas uma, entretanto. Muito se escreveu sobre a escrita psicótica e as pistas aí contidas, possíveis de se fazer uma abordagem do fenômeno. Pouco se pensa da escrita neurótica, tão comum nos jornais e televisões e na própria narrativa recorrente que temos sobre nós mesmos. Minhas histórias fulgurantes são neuróticas. Repetem o mesmo refrão. Agora mesmo fui atrapalhado por um elemento da minha história neurótica fulgurante: "tu és incompetente". Vira e mexe, sobe e desce latitudes, com mais ou menos cervejas, a história neurótica fulgurante acaba nisto: "tu és incompetente". Muito do sentimento de vazio diz respeito a isso. Em associações cretinas, fui levado da lembrança de uma reunião de servidores federais para a qual não fui chamado para participar (por razões óbvias: não sou servidor federal e, portanto, incompetente para passar num concurso público) à lembrança de um cão já velho e magro que rosnou para mim e quase me mordeu quando tentei ajudá-lo a sair de um carro (por razões óbvias: o cão mal me conhecia e estava estressado depois de 4 horas de viagem de carro, portanto, sou incompetente para manter qualquer vínculo de afeto com seres cujo sistema nervoso é minimamente desenvolvido). Leitores menos audaciosos diriam que é só uma questão de escolher outro tema para narrativa. Diriam que é só uma questão de criar outros personagens. Outros cenários. Mas a linguagem caminha sempre para esta espiral: a espiral do vento que passa por dentro de mim e que me mantém de pé. O vento, em si mesmo, não existe; o vento é o ar, o ar indo de um lugar para outro. Para eu escrever sobre esse vento, sobre o ar indo de um lugar a outro em mim, e que me sustenta, eu tenho regras, cânones e paradigmas a serem seguidos se eu quiser escrever para ser brilhante. E enquanto eu não for brilhante, eu sigo escrevendo histórias neuróticas fulgurantes para leitores menos vorazes, menos perspicazes, menos rebuscados. Nenhuma história neurótica tem um fim. Nenhuma história neurótica é simples como a da Chapeuzinho Vermelho. Ainda bem que eu posso escrever "eu quero ir embora do mundo" de milhões de maneiras repetitivas, reincidentes, de maneiras que as mentes menos vibrantes entenderão, simplesmente, "ele quer se matar". Pois aqui está: o desafio de hoje está concluído.
Sinto assim: sem grandes movimentos possíveis. Nem pequenos. Nem poucos. Um cruzar de pernas já seria o suficiente, e não posso. Sinto perseguição e abandono. Os que me perseguem não são os mesmos que me abandonam, e os que me abandonam apoiam aqueles que me perseguem. Todos querem me exterminar: uns pela caça, outros pelo esquecimento. Que cruzada de pernas seria suficiente para alguém tão sufocado driblar seu egocentrismo? Periculosidade, agressividade, longas faixas inúteis da mesma cor pálida, satanismo, maledicência, vergonha, cansaço, micro-humilhações disfarçadas no sorriso cínico amarelado, palidez, solidão, revolta, rebeldia, pequenas noites frias de pura e intensa vontade de desaparecer. Eis aí aqueles que me perseguem e que conseguem me exterminar: velam por mim nas pequenas e sucessivas noites frias, puxando meus cabelos quando quase adormeço, gritando nos meus ouvidos quando quase sonho. Fazem com que eu sinta vontade de desaparecer, de me exterminar. Do que eu falo, então, quando cito e sinto perseguição, abandono, extermínio, desaparecimento? Uma abordagem, uma amostragem da morte. Um mundo triste, enfim, do qual saio quando durmo (e se durmo), quando desmaio, quando procrastino. Um mundo duro e infértil onde sementes apodrecem. Paralisado perante sementes natimortas e árvores de folhas secas.
Ouvi fogos ao fundo. Me perguntei quem comemorava o quê. E há? O cheiro da comida ficou na minha roupa e circula, ainda, graças ao ar-condicionado. É uma coisa que fica impregnada na roupa e na pele. E dá vontade de comer, sabe? Um prato imenso, quase sem fim. Falei hoje sobre isso: um prato de comida sem fim; uma carteira de cigarros em que há sempre cigarros; uma taça ou uma garrafa sem fundo; um beque de maconha com uma seda eterna; uma carreira de cocaína que circunda a Via Láctea. Porque desconheço a finitute daquilo que dá prazer. A gente, por exemplo: nós. Nós que procuramos a vida, a vida acima de tudo. Uma coisa qualquer pra nos sentirmos vivos. O corpo é um pouco essa linha, essa coisa que pode matar e ser matada. Ou tudo. Uma cerveja eterna demanda uma ressaca eterna? Quem de nós vive na cerveja eterna ou na ressaca eterna? Temos um pouco de tudo. Mas um pouco pra nós é pouco. Queira fogos ao fundo. A ponta do cigarro que nunca se apaga. A chama, o som do estouro que nunca se desfaz. É uma vontade de durar, um duramento, uma conservação: um prolongamento de tudo que pede mais vida. Manter-se sempre na mais alta estima, na mais alta qualidade, no mais alto apreço: sempre tem o fundo da garrafa. E descemos, na baixa luz do ser. O que há de bom nos corpos, nas coisas das pessoas, nas barbas, nas calças apertadas? O que há de bom, enfim, e há. Assumir o fim, e assumir a ressaca, assumir que não há sempre tudo de bom. Assumir que o pouco é pouco. Eu fiz minha incursão diária na vida, e houve vida. Fiquei nu na janela do hotel fazendo poses para os pedreiros do prédio em obras, em frente: palhaça. O vidro da janela tinha um revestimento espelhado. Os pedreiros viam a si próprios e adoravam. Quem comemora com fogos? É quem se alinha ao fino fio da coisa que pode ser boa. Que pode bem ser má, tem todo o potencial pra ser má (a barba ruiva, a camisa xadrez, o rosto belo), mas que é boa. Eu, eu mesmo, eu duvido ser bom. Mas caminho na linha. Não solto fogos, mas regozijo. Adoro essa palavra, "rogozijo". Lembro das aulas de catequese: "regozijai e cantai louvor!" Cantemos louvor, pois, a quem e a quê? Eu não tenho lugar num mundo no qual regozijamos por um fim. Se o fim é a certeza, eu quero a incerteza: um prato de comida sem fim; uma carteira de cigarros em que há sempre cigarros; uma taça ou uma garrafa sem fundo; um beque de maconha com uma seda eterna; uma carreira de cocaína que circunda a Via Láctea. Aguentamos porque sabemos que haverá um fim? Porque sabemos que a vida terá um fim: e o corpo. Aguantamos! E aguantamos por isto: ficamos nus na janela sem saber que o vidro é espelhado. Porque fazemos pose sem saber que não somos olhados. É crer-se eterno, nu na janela onde ninguém te vê. Penso nas meninas e nos meninos, nas mensagens, nas lembranças de mim e para mim, nas coisas que fiz ingenuamente sem crer nas consequências (de novo, achando que tudo tem um fim). E tudo tem fim. Mais fogos, estouram e encantam. É carnaval, e eu ainda nem sei em que bloco, em qual escola. Cantarei louvor ao fim do carnaval e de todas as coisas.
Dormi contigo noite passada. E pouco dormi: acordei de hora em hora acreditando o dia. Virei umas quantas vezes pra puxar o cobertor até tua nuca, pra cobrir tuas cosas, já que tu dorme de bruços e o vento do ar-condicionado te gelava a pele. Dormi contigo e dormi pouco, dormi cuidando. A cama era grande, mas não nos perdemos um do outro. Tu dormiu rápido, com a cabeça encostada no meu ombro, enquanto eu assistia TV. Resmungou um pouco quando eu te acomodei nos travesseiros e te abracei de lado no momento em que pensei que eu iria conseguir dormir. Teu calor me deixou insone. Tu não roncou; apenas fez um barulho, um zunido, um ronrono de respiração calma e profunda de quem está descansando. Tu te espalhando na cama. E mais pro meio da noite, numa das vezes que eu acordei para te zelar, tu enroscou teus pés nos meus, um pouco sem querer e muito querendo: eu sorri. Quando eu finalmente peguei no sono, durou pouco: pelas cinco horas da manhã eu acordei. Te vi de barriga pra cima, pernas esticadas, uma mão por sobre o peito e rosto voltado pra mim. Tu dormindo. Só vi tuas feições graças à penumbra do amanhecer que brilhava nos cantos da cortina. Não consegui mais voltar a dormir. Tu me encantando, e eu acreditando, acreditando, acreditando: dormi contigo noite passada.
Acontecer pra dentro, se eu pudesse. Costear, margear a pele pelo lado de dentro, acontecendo-me na beirada da pele. Explodir, vez que outra, em buracos da pele, rasgando-me no meu acontecimento - só no meu acontecimento. Curvar a pele em gota, pro lado de dentro, num acontecimento explosivo. Costurar rasgos da pele e dar pontos pelo lado de dentro. Erodir a pele onde um rio poderá passar e desfazer a margem epitelial, a costa de um continente dérmico. Densificar, espessar a pele onde ela tem de mais frágil: acontecer uma carapaça nos buracos por meio dos quais o dentro vaza e pinga. Acariciar ao acontecer, afagar um acontecimento que traga viço à pele, pele sedosa, pele sem vincos. Não parar jamais de lamber a pele pelo lado de dentro, hidratando-a. Pentear a pele para desfazer-se dela: novas peles acontecendo em camadas que crescem em ondas e que se dissolvem na beirada, diluindo a bomba do acontecido em um som quase infinito de explosão. Acontecer vulcões em mim: queimar a pele com a lava do dentro. Sem jamais prestar a atenção na cor da tez, amar a pele. Sem jamais deixar-me enganar pelo desenho da tez, aguardar por outras peles. Viver sempre em dúvida sobre a pele. Acontecendo-me nesta pele, num brilho que a atravessa; nenhuma ferida é necessária para cura. Impedir que a pele se torne translúcida: é função da pele delimitar o acontecimento para mim e em mim. Uma pele invisível destrói a paixão de descobri-la, de afastá-la, de desvelá-la. Eu quero abraçar-me e ter-me por dentro, quero tocar nessa linha, nesse tecido, nessa membrana do meu acontecimento. Estilhaçar o fino cristal da minha redoma e sufocar com a rarefação do fora: matar a pele.
Hoje eu calcei teus sapatos e andei por quilômetros, sem meias.
Soube de todos os teus segredos e das perguntas que tu nunca quis fazer.
Apertaram-me os sapatos, e bolhas doeram nas laterais dos dedos.
Andaria novamente amanhã seu eu pudesse. E posso.
Calcei teus sapatos para andar, para ir até lá, para percursionar, para incursionar nos teus pés.
As bolhas doem, mas não não meus pés.
Meus pés já fazem parte dos teus sapatos.
Tua calçada é outra, contudo.
Contemplo meus pés machucados pelos teus sapatos.
Agora não temos mais como mentir. E não mentimos.
São apenas sapatos e pés, e bolhas, e dores. Diferentes calçadas.
Nossos dedos e nossos calcanhares andaram pelo mundo na mesma sola.
Não há segredo maior do que aquele dos pés doloridos.
A intimidade dos cadarços, das palmilhas; intimidade andarilha.
Eu sei onde aperta teu sapato. E aperta.
Descalcei teus sapatos e os abracei.
Doem as bolhas dos meus pés, mas eu sei das tuas perguntas não feitas.
Quanto tu calça? Tu calça o tamanho dos meus pés sem bolhas.
Hoje foi dia de saudade.

Eu não retornarei, jamais; tampouco pedirei abrigo. Não morrerei assim, bem como todos gostariam. Não voltarei, não pedirei perdão. Não serei eu a dizer que esqueci, que vacilei. Meu erro teria sido de não ter feito doer mais, muito mais, mas nem sempre a dor tem uma só medida. E nunca tem. A gritaria teria sido outra, em outro tom. Manteiga nos meus dedos. Solidão nos vincos, nas juntas, ali onde um azulejo encontra com outro. Uma reta infalível que dá exatamente na tua casa, no teu corpo. Duas virtudes, ou menos. Jamais morrerei como os outros gostariam. Morrerei do meu jeito, tranquilo, leve. Sem alguém pedindo pra eu voltar. Sem alguém querendo me redimir. Jamais voltarei.
Ninguém lê. E também não me explicarei sobre o porquê de não escrever. Mas há de se dizer que todas as noites eu me pergunto: por que não escrevi? De tudo, talvez a pior e a melhor parte é escrever. Porque dá pra fingir que escuta, fingir que olha, fingir que lê. Escrever não é fingimento, e se for é sinal de mau caratismo. Sonhei com um livro de três páginas nas quais cabiam todos os sonhos da minha mãe. Minha mãe sonha, eu é que raramente lembro dos meus sonhos. Que triste, um filho que não sonha. Dessa vez sonhei, e sonhei com os sonhos da minha mãe, que sonha sempre. Eu, que não sonho, sonhei o sonho transbordante de quem sonha. As rochas, as dunas, os lagos, as árvores. Uma mulher atropelada, estendida na maca, gritava e chorava e pedia pela ajuda de deus. Ninguém a ajudou. Ninguém a ajudou porque todos fingiram que não a escutavam, e eu acabei de sugerir que é muito fácil fingir que não escuta. Se a tivessem escrito, aquela mulher que gritava e chorava e pedia por deus, não teriam como ignorá-la. É como se eu não quisesse limpar a casa, as chaminés: eu não escrevo, e as coisas vão se acumulando nos meus cantos - que caem em degraus inalcançáveis para o sótão e para o porão. Fico eu em em desuso: ocupado pelos toques nas teclas, esperando o exercício de pensar sobre o que se vai escrever, as longas pausas entre uma frase e outra, ou entre as vírgulas ou entre as palavras, e a ansiedade de concluir logo a lauda ou o parágrafo. Para não limpar a casa de todo, para manter pedacinhos obscuros, desorganizados, desencadeados. Ontem meu corpo doía, e eu me vulnerabilizei. Vulnerabilizei a mim mesmo, no sentido de entregar-me a uma nudez fria e seca, surda. Ofereci-me ao acaso sabendo que o acaso era cruel. Ontem vi corpos mutilados e sofridos, ossos tortos e olhares de pessoas que sequer sabem que estão desoladas, perdidas, entregues à própria nudez. Elas ignoram seu próprio estado de fragilidade, de debilidade e de abandono. Elas não se sentem usadas. Talvez elas sonhem comigo. Minha vida toda em um livro de três páginas nos sonhos daquela gente desolada. Eu sou o sonho de gente nua. É por isso que não dá para fingir que escreve, porque não se pode fugir daquilo que escrevemos. É uma caça, as palavras te caçam. Ninguém realmente lê de cabo a rabo, ao fim e ao cabo. O final vem sempre antes, antes da terceira página, antes do atropelamento, antes da nudez. É sempre antes o desfecho de quem lê, e ninguém lê.